O MacGuffin: agosto 2003

quinta-feira, agosto 28, 2003

WITTY


"Ladies and gentlemen, we are now passing from sunscreen zone 12 to zone 15"
STEYN, MARK
Na edição de 30 de Agosto da Spectator, Mark Steyn escreve:
”Iraq certainly has difficulties, beginning with an insufficient electrical capacity for its needs. The Americans have certainly made mistakes, not least in things they’re supposed to do well: their Iraqi media activities are pathetic. But the only way the US can lose is if the media sufficiently rattle the American people that they elect Howard Dean. That aside, there are merely degrees of victory. The barest minimum victory has already been won: Saddam is gone, his entire leadership is dead or in US custody, his sons have been killed, stuffed, mounted and embalmed by the same guy who did Al Gore’s make-up in the 2000 presidential debate. Even if America handed over to the UN now, Iraq’s next dictator would come to power in the shadow of the cautionary tale of his predecessor: catch our eye and you’re dead.
The next degree of victory has also been achieved: the war on terror has been repatriated. 2001: Islamists kill Americans in New York and Washington. 2003: Americans kill Islamists in Iraq and Afghanistan.
The next notch up is also certain: if the US concluded they couldn’t get a free democratic republic up and running in Iraq, they could settle for the least objectionable authoritarian and establish a critical military base in the western desert that would seriously limit Syria’s room for manoeuvre.
If these definitions of victory sound too stunted, it’s only because the Bush administration has by choice taken a gamble on a much longer shot: the belief that it is in the long-term security interests of the United States that a region with no culture of liberty undergo a profound transformation. If they pull it off, that will be the greatest victory of all, with the most benefits. If they don’t, it’s Iraq’s loss, not Washington’s. Either way, that question is never going to be settled in four months. And nobody ever said it was.”


Leiam tudo aqui.
UM ACONCHEGO PARA A ALMA E PARA A VERVE
O título deste 'post' é piroso. Mas, que se lixe. Serve apenas para louvar o facto de um belo dia este homem ter acordado, de manhã, e ter decidido criar um blogue.

Mais duas coisas:
1) No que respeita à Joni Mitchell, pendo mais para a opinião do Francisco. A anciã Joni terá feito um, dois discos simpáticos (bom, mais do que simpáticos). Mas, na minha modesta opinião, esteve sempre a milhas de se poder considerar um Cohen de saias. E fartou-se de revisitar o revisitado. Bem espremida (a obra, não a senhora), tudo poderia ter sido condensado num excelente CD duplo;
2) Há anos que intermitentemente me babo – precisamente feito um idiota babado - quando assisto a determinados torneios de ténis no feminino. E lembro-me sempre do Seinfled: é, então, suposto não olharmos para os traseiros, pernas e seios (“sei os teus seios, sei-os de cor”) das tenistas? É precisamente isso que eu tenho feito este tempo todo e, sinceramente, não sei se devo continuar ou se me devo penitenciar. Dizia o mestre Seinfeld: “Já repararam na forma como as tenistas têm toda aquela parafernália de crachás publicitários cozidos à sua roupa e ao seu equipamento? Já pensaram na quantidade de dinheiro que poderiam fazer caso elas vendessem publicidade «naquele» local especifico? Seria o melhor espaço comercial de sempre: «Nós garantimos que todos olharão para a mensagem!»" Bem sei que uma Davenport ou uma Lisa Raymond não suscitarão sequer um perdigoto (e observá-las é já em si um acto de penitência), mas o circuito (como gostam de lhe chamar) está pejado de lindas moçoilas. Infelizmente, a maioria ainda não se encontra elegível para o desejável tempo de antena. A doce Maria Sharapova, graças a Deus, começa agora a aparecer. Não me interpretem mal: ela tem uma estupenda esquerda.

RIR É O MELHOR REMÉDIO
Eis a prescrição:

Gato Fedorento (Um clássico. E o bigode já mexe...)
A Armada Invisível (a piada rápida e por vezes nonsense)
O Meu Pipi (outro clássico do politicamente correcto)

Sem contra-indicações ou efeitos indesejáveis.

A FALAR É QUE A GENTE SE ENTENDE
João Pedro Henriques, do Glória Fácil, teve a amabilidade de responder às minhas inquietações.

Caro João Pedro: obrigado pela sua resposta. É sempre um prazer manter uma discussão com nível. Mais ainda quando se esclarecem posições e, neste caso, se convergem pontos de vista.
FOI VOCÊ QUE PEDIU UM EPC?
Eduardo Prado Coelho, na sua crónica de hoje no Público:

Seria totalmente absurdo que [António Guterres] se retirasse da política. O país deve-lhe muito e ele pode ainda dar muito ao país, à Europa, à causa de um socialismo moderno.”(sic)

Para, logo a seguir:

”Donde vêm as minhas reservas? De aspectos psicológicos de Guterres que marcaram a sua governação. A forma de afastar Manuela Arcanjo ou Fernando Gomes, o deixar arrastar a situação da RTP até ao pântano (arrastando consigo alguns dos seus colaboradores mais fiéis e competentes, como Arons de Carvalho), o lamentável episódio do queijo limiano, o lamentável episódio da taxa de alcoolemia (deixando Nuno Severiano Teixeira numa posição particularmente desconfortável), mostraram uma tendência para evitar os confrontos, para diferir decisões, para fazer política rasteira em vez de dignificar o político. Muitos aspectos negativos da segunda fase da governação do PS não resultam da incompetência dos responsáveis ministeriais mas do modo como o Governo adiava decisões, julgava fazer "marketing" político (no que se se enganava redondamente) e deixava os problemas enredarem-se até à náusea. Ou até à demissão abrupta do próprio Guterres. Os consensos de Guterres são sempre entre interesses, nunca são a síntese acima dos interesses.”

Em que ficamos? Não ficamos...

Em qualquer dos casos, gostei daquela dos “aspectos psicológicos”. E a dos “consensos” também está jeitosa.

PS: Caro António: não lhe ligue. Deixe-se estar, que está bem. Goze a vida. A malta cá se vai amanhando.
INQUIETAÇÕES DE UM LUSO-PAPAGAIO BRUTO
Na mais recente visita ao Glória Fácil, deparo com um ‘post’ de João Pedro Henriques onde se alinhavam umas considerações sobre o conflito israelo-palestiniano. Dirigindo-se ao Francisco José Viegas, João Pedro Henriques escreve: ”Alguma vez escreveste que é rigorosamente impossível a paz no Médio Oriente com Sharon a primeiro-ministro de Israel? Ou que a paz no Médio Oriente passa, necessariamente, pela democrática eliminação de Sharon como figura de primeira grandeza em Israel?”

A esta pergunta eu responderia: alguma vez João Pedro Henriques escreverá que será rigorosamente impossível a paz no Médio Oriente com Yasser Arafat?

Esta questão inquieta-me, na medida em que contínua a ser espantosa a forma como certos «especialistas», jornalistas e «opinion makers» insistem em omitir ou silenciar a verdadeira natureza do líder palestiniano. Paira no ar uma espécie de intocável e tácita respeitabilidade pela figura de Arafat.

João Pedro Henriques (JPH) fala da “democrática eliminação de Sharon”. Ainda bem que JPH sabe que, em Israel, os governantes mudam por força da chamada democracia representativa e do sufrágio universal (apesar da tão apregoada teocracia...). Uns mais moderados, outros mais «duros», os governos vão sendo sucessiva e “democraticamente eliminados”. E do lado de lá: pode esperar-se o mesmo? Não.

Em 1974 Yasser Arafat era sagrado como único e legitimo representante do povo da Palestina e, desde então, nada mais se alterou (sabe-se que, mesmo agora, é Arafat que mexe os cordelinhos). Há décadas que a sua imagem de “chefe de Estado”, respeitável e respeitado, ou de quase-mártir pela causa de um povo, é vendida, à escala mundial. A ONU, por exemplo, comprou-a de olhos fechados. E pagou o preço. A figura de Arafat tornou-se numa inevitabilidade histórica com direito, en passant, a Nobel da Paz.

Fala-se e vocifera-se muito contra Sharon – o qual, é bom que se diga, se assemelha a um elefante numa loja de porcelanas. Mas Sharon herdou uma situação que vinha de Barak, o qual, por sua vez, a herdou de Netanyahu, que por sua vez a herdou de Peres, etc. etc. Mas todos eles a herdaram do mesmo interlocutor de há décadas: Arafat. No mínimo uma figura difusa e sinistra.

Ao contrário do que o silêncio de uns, e a hipocrisia de outros, parecem fazer crer, Arafat não tem, nunca teve, noção alguma do que significa governar, para o desenvolvimento, um país e um povo. Por entre tímidas ou teatrais declarações de indignação e tristeza pelas acções das organizações terroristas palestinianas (muitas delas parte integrante da sua OLP), a sua grande aspiração continua a ser a de uma grande Palestina, sem um empecilho chamado Israel. Com ele no poder, é claro. Coisa, aliás, coerentíssima com a abordagem árabe para a região, desde a década de 30.

O Hamas, a Jihad, os Mártires atacam mas, onde estão as condenações? Onde estão as prisões? Onde está, por mais ínfimo que fosse, o eco do que poderá ser um futuro Estado de Direito palestiniano – um Estado que condene judicialmente os assassinos e as organizações terroristas?
Pode sempre dizer-se que Sharon dá argumentos aos terroristas e perturba as tréguas com incursões militares selectivas. É fácil. Mas será que JPH pretende convencer-nos de que as organizações terroristas nunca perturbaram as tréguas? Que o empurrão é sempre dado pelos israelitas? Que o Hamas apenas se limita a retaliar? É caso para perguntar: terá João Pedro Henriques a coragem de nos dizer que, quem tem sempre lançado a primeira pedra, têm sido os israelitas?

Que tal se os auto-proclamados “moderados e racionais” retirassem as palas e olhassem imparcialmente para todos os lados? Ah, já sei: é difícil ser imparcial neste conflito. Pois é...

quarta-feira, agosto 27, 2003

A QUESTÃO “FINO”
Escreve o leitor André Bonito:
”Em matéria de Imprensa [Pacheco Pereira] ferra o bico, sem escolher a carne.
Ele sabe, porque também vive da Imprensa/Rádio, que as coisas não são como afirma. E deixa de fora o cerne da questão. Serão os jornalistas, redactores, repórteres, fotógrafos, cameramen, cartoonistas, paginadores, os poderosos que decidem a linha editorial de um jornal/rádio/canal? A RTP é uma estação de televisão underground? Em autogestão? Claro que não. A escolha do pessoal tem de ter um critério.
Nos EUA, para falar sempre do mesmo, a Tina Brown, quando dirigiu a The New Yorker, foi buscar o Sy Hersh a peso de ouro, sabendo que ele é um jornalista (freelancer) com pontos de vista muito radicais, que a Condé Nast Inc. não subscreve. Mas o patrão da Condé Nast aceitou o plano da Tina, que era o de sacar leitores da Esquire , Rolling Stone, gajos e gajas de sectores liberais mais radicais que, no entretanto, tinham inflectido no sentido reformista (baby boomers) e estavam em processo de se tornarem cidadãos com apreciável peso simbólico e financeiro, na sociedade americana. E a The New Yorker aligeirou o low profile para os atrair. Por exemplo: os jovens craques informáticos, ou artistas que recusavam ser outsiders e começavam a estabelecer parcerias com o "establishment". Claro que essa gente ainda não estava nem nunca estará preparada para ler o Kristoll. Mas uma revista, um jornal ou uma estação de TV, são produtos e são negócio. E devem ter uma identificação clara para que o consumidor não pape gato por lebre.”

NOTAS SOLTAS E BREVES SOBRE O CONSERVADORISMO

”It is a general popular error to imagine the loudest complainers for the public to be the most anxious for its welfare.” Edmund Burke

”To complain of the age we live in, to murmur at the present possessors of power, to lament the past, to conceive extravagant hopes of the future, are the common dispositions of the greatest part of mankind”. Edmund Burke

1. Por definição, uma tradição comporta uma série de elementos que foram alvo de um teste: o do tempo. Consequentemente, foram sendo transmitidos, de geração em geração. Em princípio, esses elementos são elementos que importa preservar. Mas nem todos. Olhadas uma a uma, nem todas as tradições são boas. E há tradições que nem sequer o são (cf. “The Invention of Tradition”, edição de Eric Hobsbawm e Terence Ranger).
A filosofia do tradicionalismo é uma filosofia selectiva. Qualquer injustiça social que derive da tradição, qualquer perigo potencial associado à tradição, é - com o tempo, raramente por decreto - abandonado ou ultrapassado.
Em termos de princípio, há, de facto, um atributo na veneração dos conservadores pelo que é «antigo» e tradicional: a crença de que, por muito obsoleta que uma dada estrutura ou modus vivendi possa ser, pode existir nela uma função progressiva e ainda vital, de que o homem tira proveito psicológica e sociologicamente. O factor tempo - aliado ao «preconceito» no comportamento humano, onde se joga o tipo de conhecimento de que William James e Oakeshott falavam (um «conhecimento de» e não um «conhecimento acerca») – é seminal no conservadismo.

2. O que muitas vezes está por detrás da tradição, e que é querido ao conservador, é uma forma de conhecimento adquirido através da experiência e da revelação da vida prática, incapaz de ser transmitido by the book. É esse aspecto prático - esse sentido de oportunidade - que é próximo do ideário conservador, e que colide com a maneira como o utopista e o reformista exercem uma devoção por regras, princípios e abstracções que levam a uma voragem e a uma vertigem para, por exemplo, lidar com as «massas», em vez de lidar com pessoas heterogéneas: pais, trabalhadores, consumidores, eleitores, clientes, munícipes, etc. Todas elas com diferentes aspirações, capacidades, motivações e objectivos.

3. O conservador recusa veementemente o denominado “espírito da inovação” quando alicerçado no culto da mudança pela mudança. O conservador é incapaz de dar ênfase a essa necessidade superficial de excitação e motivação por meio de incessantes novidades; a fraqueza idiota de pensar que só na «reforma» e na «mudança» o homem se realiza. Da mesma forma que Disraeli declarou guerra aos estadistas que procuraram formar instituições políticas com base em princípios abstractos de ciência teórica (em vez de lhes permitir que brotassem da evolução natural), o conservador percebe que o conhecimento e a organização de uma sociedade deve ser fruto de um processo lento e aturado, onde estão envolvidas pessoas e não teorias ou modelos abstractos. E que esse processo é muitas vezes inter-geracional. Uma espécie de contrato de continuidade. ”Society is indeed a contract. It becomes a partnership not only between those who are living, but between those who are living, those who are dead, and those who are to be born”, escreveu Burke. O espírito subjacente a esta frase é completamente acessório para o progressista ou para o utopista reformador. Para estes o importante não é o que foi feito, mas sim o que se vai fazer. Os edifícios do passado são só isso: passado. ”Quando não é necessário mudar, é necessário não mudar”, afirmou Falkland. É este o contributo do conservador no mundo de hoje: colocar algumas pitadas de bom senso na cabeça de quem tenta mudar o mundo, chamando a atenção para o facto de já existirem experiências, vivências e resultados no terreno que funcionam e que se devem aproveitar. Sob pena de cairmos num vazio. Um hiato que pode levar à deriva.

4. Hoje em dia, o conservador tem a noção de que existem reformas que importa fazer. Assim como existem mudanças que ansiosamente se aguardam. Mas a «base de trabalho» do conservador assenta na ideia de que, a ser necessária (poderá não o ser), a mudança deve ser feita moderada e calmamente. Passo a passo. Com e para as pessoas. E com o ênfase no aperfeiçoamento do que já existe e não no corte abrupto.

terça-feira, agosto 26, 2003

A BLOGOSFERA MINGUA
Recentemente foi o Guerra e Pas. Já antes o Picuinhices havia entrada em ponto morto. Depois, Pedro Mexia anunciou, no regresso ao seu Dicionário do Diabo (após umas "mini-férias insuportáveis"), a intenção de esvaziar o blog de temas mais políticos. Até à data, nada mais escreveu (já lá vão mais de dez dias). Agora foi a vez de Pedro Lomba interromper, por tempo indeterminado, a sua participação como blogger. Pelo meio, o Nuno Miguel Guedes anunciou, mais ou menos, o mesmo.

Será este o Outono da blogosfera?

Será só impressão minha ou, de repente, a blogosfera empobreceu escabrosamente?
A BLOGOSFERA ADENSA-SE
Só hoje dei uma vista de olhos ao Glória Fácil, blogue de Maria José Oliveira, João Pedro Henriques, Nuno Simas e Ana Sá Lopes (uma espécie de wonder team). Se a minha opinião vale alguma coisa, aqui vai: gostei. Apesar de não concordar com muito do que por lá é escrito (aquele posição corporativa do "nós fomos todos contra a guerra e quem o não foi é tótó" revela, desde logo, o desejo de separar bem as águas), tenho de admitir que os rapazes e as raparigas escrevem bem, têm sentido de humor (coisa rara, hoje em dia) e são viperinos q. b.
Partilham comigo a mesma estratégia. Quando eu, aqui há uns dias, «bati» nos CTT de Évora, sei muito bem porque o fiz: mais dia menos dia receberei uma avultadíssima soma para publicitar os eus serviços e, com isso, calarem este puto embirrante e maldizente. Aguardo tranquilamente o dia C. De "Corrompido".

segunda-feira, agosto 25, 2003

A PIANISTA
Revi, este fim-de-semana, a “Pianista” de Michael Haneke. Tinha adquirido o DVD no principio do ano mas, como é habitual em mim, ficou esquecido, no meio da confusão. É sempre assim: pareço gostar de amadurecer os livros, filmes e discos que vou adquirindo, a um ritmo cada vez menor.

Sobre a “Pianista” já muita tinta foi gasta. Em primeiro ligar, é um filme de Haneke - o que significa uma de duas coisas: ou se gosta ou se detesta. Com Haneke parece não haver lugar para ‘rodriguinhos’ ou ‘nins’. Pela minha parte, considero-o uma obra maior do cinema contemporâneo. Passo a explicar porquê.

O argumento da Pianista pode resumir-se da seguinte forma: professora de piano respeitável e austera (na casa dos quarenta), vive ainda sob a alçada de uma tutela maternal opressiva, moralista e doentia (ela ainda dorme com a mãe), tendo desenvolvido, com os anos, uma série de patologias do foro mental que a conduzem à auto-mutilação genital e a comportamentos sexuais desviantes e doentios. Freud meets Sade and Classical Music.
Mas o filme é bem mais do que isso.
Há, no contraste entre o belo (a música e a figura de Erika), a simplicidade monocromática do teclado, a racionalidade do jogo de dedos da pianista, o obsceno e o visceral, algo que nos prende e perturba. O grande trunfo do filme de Haneke está na forma absolutamente contida como retrata uma mulher dividida entre dois mundos completamente antagónicos, oscilando, conforme as horas do dia, entre o patético, o belo, o execrável, a comiseração, o desejo ordinário e vulgar. Huppert está sublime e deixa-nos completamente hipnotizados.
Depois, a figura do rapaz – do jovem e inocente aprendiz. Figura que, a certa altura, contrariamente ao que desejaríamos, é violentamente banalizada. O anti-amor de Erika, embora de natureza diferente, passa também a estar presente no rapaz. A construção romantizada do rapaz sensível é, a partir de certa altura, totalmente subvertida pela postura bestial, grosseira e dúbia deste, à medida que Erika tenta explorar, comandando (como falsa submissa), as suas fantasias sado-masoquistas mais sombrias. A figura de Walter a «apanhar papéis», perante o turbilhão sentimental de Erika (cujo comportamento passivo-agressivo é entremeado por Schubert), serve também para enfatizar o choque entre uma inocência tardia e uma imaturidade que é ainda fruto do desejo carnal da posse – neste caso não correspondida.
“A Pianista” não é um filme «fácil». É um filme que caminha sempre sobre o fio da navalha. Parece faltar-lhe a tal “elipse cinematográfica” (que em tempos discuti com a minha dearest friend Zazie). Ficam muitas dúvidas no ar. Explicações a dar. E aquele final, resolve alguma coisa? Nada. Mas o que seria de Tchekhov ou de Carver, se fosse esse o critério?
Por último, o grande trunfo do filme passa, também, pelo olhar de Erika. Por detrás daquele declínio moral e da iniquidade cultural da sua triste existência; por detrás do facto de Erika ter perdido o contacto com o «humano» e de ser uma impotente do sentimento; existe no seu olhar - e a cena final é disso uma prova - um constante grito mudo por ajuda, como se ela continuasse disponível para ser resgatada da sombra. Existe uma integridade formal que é feroz e pulsa no interior de Erika. E Huppert é contundente e persuasiva nessa tarefa.
O filme de Haneke, longe de ser uma “obra-prima”, é um excelente, provocador e negro filme sobre a face mais perversa, marginal e extrema do amor. Levado à cena por actores e actrizes em estado de graça. Nos dias de hoje, pouco mais se pode pedir.


RECOMENDAÇÃO
"Our Shadowed Present: Modernism, Postmodernism and History". De Jonathan Clark, um dos melhores historiadores britânicos no activo.

domingo, agosto 24, 2003

GRANDE HELENA
Helena Matos, no Público (23/08/2003):

"Para não ofender os terroristas, para não lhes dar argumentos, o ideal seria que não existissem americanos nem israelitas. Mas, como tal é impossível, esses povos deviam adoptar face ao terrorismo uma atitude expiatória do seu pecado original de existir. Um pouco como fazem as antigas potências coloniais europeias em relação a África: enviam-lhes alimentos e equipas médicas de vez em quando. Quando chegam notícias de catástrofes um pouco maiores que aquelas que se tornaram rotina, fazem-se muitas campanhas com artistas. As audiências televisivas sobem e a auto-estima também. Faz-se o bem e não se passa por imperialista.
E se, mesmo assim, dessas profundezas onde ninguém os incomoda, e onde governam a seu bel-prazer, alguns desses líderes terroristas convertidos em carismáticos caudilhos, se lembrarem de desviar aviões e atirá-los cheios de gente contra edifícios? Ou se os fizerem despenhar num qualquer local? Ou se tentarem envenenar as redes de água potável? Ou se sequestrarem pessoas? Se entrarem nas casas e as degolarem como fazem na Argélia? Ou se explodirem camiões carregados de explosivos em Beirute ou Bagdad?...
Mais uma vez vai haver quem conclua que foi porque demos argumentos aos terroristas. Mais uma vez vai haver quem defenda que se combate ou convive com o terrorismo sobrevivendo de cócoras e calçando sapatinhos de lã no terror de ser apanhado pelo argumento dos terroristas. Mais uma vez também haverá quem ache que os terroristas não podem escrever esse argumento que se chama História."
THE ECONOMIST
Excelente artigo sobre o «império».
CARLOS FINO
Pacheco Pereira escreveu, no seu Abrupto:

"A RTP enviou Carlos Fino de novo ao Iraque. Fino é um jornalista experimentado, seguro, que não hesita em correr riscos para estar no sítio certo no tempo certo. Essa capacidade permitiu-lhe momentos de reportagem que qualquer jornalista gostaria de ter.
Mas Fino não é um jornalista objectivo, nem nada que se pareça. Já me reduzo a considerar objectividade, apenas a procura de objectividade, que isso qualquer pessoa sabe o que é , sente se existe. Fino é um jornalista programático, que desenvolve o seu trabalho em função da sua opinião e só vê e só comenta o que com ela coincide. Se analisarmos os seus relatos da guerra, na estadia anterior, eles revelam um enorme desequilíbrio, insisto, enorme. O que Fino relatou, dia após dia, não só não se verificou como foi contrariado pelos factos de forma gritante. Fino continuou na mesma, imperturbável, mesmo quando a queda de Bagdad de Saddam, foi um desmentido flagrante do que ele dizia na véspera.
Na RTP, ninguém quer saber destas minudências e Fino foi de novo enviado para o Iraque. E, desde o primeiro minuto, está a repetir o mesmo que já fez: as suas intervenções nos noticiários são completamente programáticas e tão previsíveis que as podia fazer de Lisboa. A linha actual é simples e repisada a propósito de tudo: o Iraque está mais inseguro do que alguma vez esteve, tudo corre mal aos americanos, nada se estabiliza e a situação é um beco sem saída. Todos os dias ele vai dizer o mesmo, todos os dias ele vai procurar um pretexto de reportagem para dizer o mesmo.
Que a situação no Iraque é de insegurança, nós sabemos. Que nem tudo corre bem para os americanos, nós também sabemos. Se é um beco sem saída, isso não sabemos. Agora o que sabemos certamente é que o Iraque de Saddam , há meia dúzia de meses, era um regime de torturas, fuzilamentos sumários, prisões e espancamentos , opressão da maioria chiita, de violência absoluta. Talvez por isso, quando vemos numa reportagem de Fino, um iraquiano exaltado à frente de uma manifestação de desempregados, com muito pouco gente aliás, a berrar que “hoje se está pior do que no tempo de Saddam” , nos faça falta algum enquadramento, que um jornalista isento faria sobre o valor deste “testemunho”. É um pouco a mesma coisa que ver o 25 de Abril em 1975 pelos olhos de um legionário."


Como é habitual em relação ao que escreve Pacheco Pereira, assino por baixo, dos lados, em cima.
ACENTO O ASSENTO
Numa anterior 'posta', escrevi "acento" em vez de "assento". Envergonhado, peço desculpa.

sábado, agosto 23, 2003

SE ME DÃO LICENÇA...
Se me dão licença, gostaria de dizer duas coisas (ou melhor, três).

A primeira, sobre o blogue do Francisco José Viegas. O Aviz. É uma coisa que ando para dizer há muito. Aqui vai: obrigado Francisco. Bem haja.

A segunda, para pedir desculpas ao Pedro Rolo Duarte. Com este mimo a um colega blogger, adensei a teia. Reforcei o «acorrentamento». Numa frase: alimentei o «monstro». Paciência.

PS (esta é a terceira): ainda sobre o comentário de Pedro Rolo Duarte acerca da blogosfera, no DNa de hoje – eu que defendi as suas anteriores intervenções sobre o assunto – devo dizer que não compreendo onde está o «encanitamento». Acho até desonesta a forma como PRD retira umas frases de contexto, para extrapolar que a blogosfera é «aquilo»: um role infindável de frases ocas de sentido, de recadinhos sobre e para os amigos. PRD sabe perfeitamente que a blogosfera é «aquilo», mas é também muito mais. Eu podia (e ele também) retirar frases que provariam o contrário: que a blogosfera é um espaço onde se escrevem coisas bem interessantes, e se lançam discussões valiosas. Incluindo os tais blogues de onde PRD retirou, de forma injusta, umas frases. Será que PRD nunca falou sobre os seus amigos e para o seu umbigo?
Acima de tudo, a blogosfera é um espaço heterogéneo, despretensioso, onde cabem as mais diversas sensibilidades e os mais diferentes géneros. Um espaço de liberdade. Que eu saiba – pelo menos é assim que a entendo – a blogosfera não surgiu para arrebatar o que quer que seja ou como alternativa à comunicação social «tradicional». Cada blogue constitui uma espécie de diário inconsequente, transmissível ou não, cuja credibilidade depende exclusivamente da vontade de quem por lá navega (não têm a «rede» de pertencerem a uma publicação). Uns são mais sérios, outros menos sisudos. A lógica que lhe está subjacente, e os critérios editoriais que os suportam, nada têm que ver com os de outras realidades (como é o caso da imprensa escrita dita séria). PRD sabe isso perfeitamente. E sabe que existem blogues de eleição (nem vale a pena aqui mencioná-los), que importa ler, diária e militantemente. No fundo, caro PRD, é tudo uma questão de filtros. O resto, é embirração temporária...

ALGUMAS LIÇÕES A RETIRAR
Se os EUA não tivessem decidido avançar sem o aval do Conselho de Segurança da ONU, nada disto teria acontecido. Se a intervenção militar tivesse sido levada a cabo por uma coligação internacional, com um mandato da ONU e reunindo um consenso alargado, não teriam eclodido os focos de resistência, as pilhagens ao Museu de Bagdade, as sabotagens avulsas e as piores acções terroristas. E, claro está, Sérgio Vieira de Mello estaria ainda vivo. Mais: o Iraque seria hoje um país estabilizado, onde as etnias e as facções conviveriam em alegre comunhão, sob a batuta de um governo estável, consensual, implantado num Estado onde o «rule of law» seria senhor. Ou isto ou nada deveria ter sido feito. Aí, mais uma vez, Sérgio Vieira de Mello ainda estaria vivo. Bagdade não estaria a ser varrida por ondas de atentados terroristas. Saddam estaria no poder. Em vez de Sérgio Vieira de Mello, seriam os anónimos iraquianos que, de tempos a tempos, acabariam numa vala comum, algures nos arredores de Tikrit ou Bagdade. E se Saddam não tivesse nascido? E se o ideal kantiano de «paz perpétua» estivesse em vigor? Blá, blá, blá.
Dispensem-se as elucubrações desta natureza. Não são estas as lições a retirar. Pela minha parte, vislumbro outras, bem mais óbvias e realistas: 1ª) Foi a ONU que foi atacada. Os membros do conselho de segurança da ONU, bem como os países que têm assento na Organização, terão de reavaliar a sua atitude face ao terrorismo (ver ‘post’ anterior). O que não vai ser fácil: a organização apresenta os piores tiques de um albergue espanhol; 2ª) A ONU continua a ser uma entidade sem força e determinação. A prová-lo está a forma ingénua como deixou de reforçar a segurança da sua própria sede em Bagdade, para que a mesma não fosse confundida como uma sede militar ao serviço da «potência ocupante». O mundo está demasiado perigo, Sr. Annan; 3ª) O trabalho de reconstrução e estabilização do Iraque requer mais meios – humanos e materiais. Os EUA terão de perceber isso. E têm a obrigação de não fugir a essa responsabilidade. Custe o que custar; 4ª) A estabilização de um país como o Iraque não pode ser feita em três ou cinco meses. Não é justo que certa gente se indigne com o aparente «impasse». Não há «impasse». Não há «desnorte». A situação não pode ser resolvida by the book. A questão é complexa e requer tempo - um tempo diferente do tempo mediático. Há gente no terreno a morrer para melhorar a situação. Por uma vez, deixemo-nos de utopias e respeitemos quem por lá anda. Não estão propriamente sentados num sofá a ouvir a opinião da Dra. Gomes na SIC, com um gin tónico por companhia; 5ª) Passámos do cínico “Saddam é um problema interno e não uma ameaça internacional” para o hipócrita “O Iraque pós-Saddam é um problema do Sr. Bush”. O Iraque tem de deixar de ser olhado como um problema norte-americano. As humanistas e altruístas «pombas» terão de perceber que chegou a hora de ajudar, de agir e de pactuar. Nem que, para isso, tenham - horror dos horrores - de dar a mão ao «inimigo». O tal texano de olhar símio. Se ele, é claro, deixar.
MORRER EM VÃO?
Sérgio Vieira de Mello era um homem bom. Um ser humano decente. Morreu no dia 19 de Agosto, vitima de um ignóbil e brutal atentado terrorista.
Como é habitual, as carpideiras e luminárias do costume aproveitaram o facto para, mais uma vez, zurzirem contra o império de todos os males e respectivos acólitos. Segundo a cartilha, Sérgio Vieira de Mello terá morrido por culpa dos EUA. Razões? Várias: falta de empenho na segurança do edifício da ONU; ocupação hostil de um país (situação propícia a focos legítimos de «resistência»); unilateralismo contrário ao direito internacional.
Mais uma vez, é bom lembrar o óbvio: Sérgio Vieira de Mello foi vitima do terrorismo. Puro e duro. Não foi um soldado americano que o matou (deliberada ou inadvertidamente), não foi um 'rocket' norte-americano que caiu onde não era suposto cair, não foi alvo de uma dano colateral ou de «friendly fire».
Sérgio Vieira de Mello estava em Bagdad numa missão humanitária. A ONU estava no Iraque com o intuito de auxiliar a reconstrução de um país, do ponto de vista humanitário. As justificações habituais e o bode-expiatório da praxe já não colhem. A lógica e o alcance do terrorismo não são, nunca foram, o bem estar das suas populações, o desenvolvimento dos países que supostamente representam, retaliações acidentais contra agressões de igual proporção. O terrorismo serve uma lógica enviesada: um misto de ressabiamento ideológico, fundamentalismo religioso e sede de poder. O terrorismo não sai da esteira de um desinteressado grupo de injustiçados anónimos. Não representa um grito de raiva espontâneo. O terrorismo tem uma marca e uma organização. O atentado que vitimou Sérgio Vieira de Mello deveria servir, antes de mais, para provar que o terrorismo não deve, nem pode, continuar a ser visto com complacência. Não pode haver justificação e compreensão para actos desta natureza. O terrorismo não tem raízes benignas. Tem de ser combatido cara a cara, com firmeza, sem paninhos quentes ou espaço para estéreis dissertações em colóquios de hotel.
No dia em que certas luminárias deixarem de transferir para os outros as culpas de certos problemas; no dia em que os hipócritas e cínicos do costume deixarem de pensar em função da sua clubite ideológica – fazendo um aproveitamento obsceno dos acontecimento para salvar a sua face -; no dia em que os terroristas sentirem que os seus apoiantes - reais, virtuais, românticos, etc. – já não estão lá para desculpar, relativizar e compreender a sua amargurada existência; no dia em que a comunidade internacional – incluindo a França, a Alemanha e a Rússia – se inteirarem da verdadeira natureza do terrorismo e da urgência de unir esforços para o combater; nesse dia Sérgio Vieira de Mello não terá morrido em vão. Até lá, morreu.
HUMOR, II

HUMOR

O CONFLITO ISRAELO-PALESTINIANO
De JMF, do Terras do Nunca, recebi a seguinte missiva: ”Dois dias depois de um louco terrorista ter feito explodir um autocarro cheio de crianças em Jerusalém, o governo israelita mandou matar com cinco mísseis um dos dirigentes mais moderados do Hamas. Quem o considerava moderado não era o José Goulão ou o Francisco Louçã. Eram os media americanos e o primeiro-ministro palestiniano, o único interlocutor válido para os americanos. E, na qualidade de moderado, era um dos dirigentes do Hamas com quem o governo palestiniano dialogava na tentativa de levar o movimento a abandonar as armas. Essa é, como se sabe, uma das condições essenciais para que o road map e a paz possam ter sucesso.
Pois foi precisamente esse o homem que Israel matou.
Eu, que nunca tive a mais pequena dúvida em condenar o terrorismo e que nunca chamei terrorista ao governo de Israel, gostaria de saber como classificar o que Israel fez ontem.”


Caro JMF: obrigado pela sua mensagem. Como deve calcular, não creio que as acções do governo de Ariel Sharon sejam imunes à critica. Não concordo – não posso concordar – com o velho conceito do “olho por olho, dente por dente”. Mas compreendo. Caramba: se por todo o lado se tenta «compreender» porque razão homens e mulheres se fazem explodir (há quem, simplória e ingenuamente, acredite tratarem-se de acções de gente desesperada perante a miséria em que vive...), ceifando a vida a civis inocentes, assiste-me o direito de tentar compreender porque razão Israel retalia. Até porque não estamos em presença de retaliações cegas. Elas têm um alvo: os terroristas e os membros das organizações radicais que têm sonhos húmidos envolvendo a pulverização de Israel (se Israel quisesse retaliar da mesma forma, seria fácil. Extremamente fácil.) E um terrorista, para mim, não merece compreensão. Mereceria uma eventual condenação. Mas, caro JMF, 'cadê elas'? Quem, do lado de lá, as aplica? Nessas circunstâncias, não terá um Estado o direito a se proteger? Não terá o direito de prevenir futuras acções terroristas?
Volto atrás: nesta história, ninguém está isento de culpas. Estamos em presença de um longo conflito – impregnado de ódios recalcados, de promessas quebradas, de traições, de equívocos, de uma violência diária, permanente. Dir-me-ão que o outrora David se transformou num Golias. Não creio. O problema reside no facto de, em Israel, se ter acabado por produzir, ao longo de décadas, um excesso de anticorpos que não hesitam em manifestar-se contra os focos de infecção que insistem em ceifar a vida das suas crianças, mulheres e homens - que «apenas» se encontram no lugar errado, à hora errada. Mas essa é uma questão que não pode resumir-se em meia dúzia de parágrafos.
Quanto à sua observação sobre a natureza supostamente moderada do recentemente falecido membro do Hamas, parece-me um pouco inconsequente dissertar sobre o assunto. Ele foi morto depois do atentado. Não foi a sua morte que desmotivou o Hamas a “abandonar as armas”. E, desculpe a questão: um membro do Hamas "moderado"? Pois...

quarta-feira, agosto 20, 2003

MENCKEN, HENRY LOUIS
"O governo ideal de qualquer homem dado à reflexão, de Aristóteles em diante, é aquele que deixe o indivíduo em paz - um governo que praticamente passe despercebido. Este ideal, acredito, concretizár-se-á no mundo cerca de vinte ou trinta séculos depois de eu ter partido e assumido as minhas funções públicas no Inferno"
PS: via Nokia Communicator, algures na planicie alentejana
A POLÍTICA E A GUERRA
Mais uma discussão acalorada, mais um olhar de esguelha do gerente. É sempre assim. Sai-se com os amigos para jantar. Juntam-se à mesa personalidades tão diferentes como o Major Tomé, o Winnie The Pooh e Derrida. Rega-se a acidental perdiz com néctar de trincadeira e aragonês. Escolhem-se os temas da praxe (imperialismo, Iraque, EUA, imperialismo, EUA, imperialismo). A língua solta-se. Os gestos alargam-se. Os olhares afiam-se. O circo fica montado.
Desta vez, um dos meus amigos lançou para a mesa a seguinte tese: as guerras estão a matar a política. A prová-lo estão as intervenções bélicas norte-americanas: acções esvaziadas de conteúdo político, favoráveis a consensos forçados e não «naturais», impregnadas de interesses económicos, contrárias ao pluralismo e à diversidade.
Ora, eu pergunto: desde quando a guerra não é um acto político –de excepção, é certo, mas político? Desde quando a “acção”, sob as mais diversas formas (bélica, diplomática, económica, etc.), deixou de ser o fim último do exercício da política? Desde quando, em política, a união e a procura de consensos, em torno de uma determinada decisão, deixaram de ser comportáveis ou passaram a representar um sinal de despolitização? Será que em política a procura de unidade e de consensos não faz sentido ou enfraquece o seu exercício?
Não pretendo defender a ideia de que a unidade é boa e a multiplicidade ou a pluralidade inconsequentes. Nem sequer estou a defender a ideia de que a “política” é o “governo” e que, para “governar”, têm, por vezes, de ser tomadas decisões não necessariamente «honráveis». Na sua essência, a política é sobretudo um exercício de decisão, de acção e de poder. Quando os EUA, a Inglaterra e outros países ocidentais apoiaram a acção militar no Iraque, estivemos na presença de um acto político puro. Quando Tony Blair afirmou, após o 11 de Setembro, que “os perigos da inacção suplantariam em muito os da inacção”, essa frase está impregnada de política. Ela reflecte uma tomada de posição derivada da análise de uma realidade (mesmo que os “perigos” incluam também os de natureza económica, face à posição estratégica do Iraque em matéria de petróleo).
Quando o meu amigo reclama por espaço para «pensar», «compreender» e «analisar»; quando ele coloca a política numa extensão metafísica e imaterial, é bom não esquecer que em política poderá revelar-se totalmente inconsequente encetar um levantamento exaustivo de todas as mais diversas causas à face da terra para determinado problema - sejam elas objectivas e subjectivas, directas e indirectas, prováveis ou improváveis. Ir por esse caminho poderá ser a forma mais rápida de se chegar a um estado labiríntico de inacção face ao mal.
Há um tempo para pensar e outro para agir. Agir é, por vezes, a única saída que nos permite escapar da encruzilhada produzida por eternas reflexões – redondas, relativistas, inconsequentes – que concorrem para a tal “ingovernabilidade”.
No meio da confusão, esqueci-me de perguntar ao meu amigo: será que, ao contrário da “guerra”, o “terrorismo” já é um acto político?
O VELHO E CÍNICO RELATIVISMO MORAL
Na SIC Notícias, Cáceres Monteiro acaba de afirmar que, no conflito israelo-palestiniano, estamos em presença de "terrorismo contra terrorismo". Trata-se da velha equivalência entre “terrorismo de Estado” e “terrorismo de sobrevivência”. Para certa gente, claro está, não há diferenças de ordem moral.
Cáceres Monteiro devia saber que existe uma diferença entre: a) um Estado que promove ou fecha os olhos ao terrorismo instituído contra outro Estado vizinho, envolvendo alvos indiscriminados e não militares; e b) a intervenção de forças militares, pertencentes a um Estado de Direito, sobre alegados membros de organizações terroristas, mesmo sem julgamento ou condenação formal (aliás, falar em "julgamentos" ou "condenações formais" à luz de princípios legais tal como nós os conhecemos no Ocidente, quando um dos Estados falha nas condenações ou se recusa a entregar ao Estado atacado os autores materiais ou morais desses crimes, é conversa da treta).
Quando um suicida faz explodir um autocarro carregado de mulheres e crianças, ou provoca uma explosão à porta de uma discoteca frequentada por jovens, é sua intenção causar o maior número de mortes em inocentes. Indiscriminadamente. Quando os helicópteros israelitas disparam sobre alvos palestinianos, a sua intenção não é a de matar inocentes civis (embora colateralmente o possam fazer), mas antes a de aniquilar objectivamente quem perpetra o terror e quem o planeia. É uma diferença abismal. Não perceber isto é não perceber nada. É aceitar a barbárie e desviar o olhar sobre a lógica assassina e abjecta do terrorismo. Pior: é banalizar o terrorismo, através da equivalência dos males. E digo isto mesmo tendo em linha de conta os atropelos que Israel tem perpetrado, incluindo a sua nefasta política de colonatos.

terça-feira, agosto 19, 2003

DOIS. SOBRE ÉVORA. DO SR. AVIZ
Dois poemas lindissímos de Francisco José Viegas, dedicados a Évora.

Na branca e azul luz de Évora
É assim a luz, encantamento e euforia.
Nela estou intenso e exausto, ela me acolhe
entre muros,

dela acolho o tempo, a finíssima alegria
do tempo. É nas suas margens que vive
esse rosto infinito, a altura do anjo
debruçado na solidão,

na branca e azul luz de Évora, no sul,
onde apetece a alegria, uma casa abrigada
da tempestade.



Évora
Tudo o que sonhei, no arco das ruas e canaviais
estava já inscrito como um nome de ave nos lagos
antes da cidade, mas mesmo assim o que levanta voo
ao anoitecer, entre trilhos de migrações, vapor, cinza,

é essa imagem de um longo claustro onde a sombra
nunca adormeceu. O sol cansa os olhos mais do que
a dor de estar só no meio da planície, quieto, esperando
a neblina, o silvo, os juncos, Outubro, a folhagem

ardendo nas margens de um lago. A sul da cidade
os muros morrem lentamente, tristes, junto às primeiras árvores, ninguém pisa esses caminhos esses segredos

por onde o escorpião lembra o orvalho no musgo,
um santuário branco, sem abelhas nos arbustos verdes,
sem rosas, o que no branco se transfigura em silêncio.
RUI RAMOS
Em Fevereiro de 2003, numa homenagem a John Rawls promovida pelo IEP da Universidade Católica, dei de caras com uma figura que, desde logo, me cativou. Tratava-se do Prof. Dr. Rui Ramos do ICS-UL. Em plena homenagem a um filósofo – facto que, por si só, como dita uma certa tradição escolástica portuguesa, pressuponha a tradicional atitude de vassalagem e a previsível babugem intelectual em torno da personagem – Rui Ramos ousou quebrar o unanimismo e a deferência até então denotada (João Pereira Coutinho também o fez, de seguida).
Falando de improviso, num tom eloquente, persuasivo e fazendo uso de um vocabulário rico, Rui Ramos prendeu a atenção de todos os que se encontravam naquela pequeníssima sala da Universidade Católica, lembrando que uma homenagem também passa por discutir, criticando, a obra de qualquer homenageado - tendo, no entanto, bem presente o respeito e o reconhecimento que se exige.
Infelizmente, desconheço o trabalho académico de Rui Ramos. Desconheço se tem obras publicadas. Agora, tendo em conta o que assisti em Fevereiro deste ano, e lendo as suas intermitentes intervenções no Independente, solicitava a quem de direito: dêem voz a este homem.
LARKIN, II

The Literary World
I
’Finally, after five months of my life during which I could write nothing that would satisfied me, and for which no power will compensate me…’

My dear Kafka,
When you’ve had five years of it, not five months,
Five years of an irresistible force meeting an
Immoveable object right in your belly,
Then you’ll know about depression.
LARKIN, I

Next, Please
Always too eager for the future, we
Pick up bad habits of expectancy.
Something is always approaching; every day
Till then we say,

Watching from a bluff the tiny, clear,
Sparkling armada of promises draw near.
How slow they are! And how much time they waste,
Refusing to make haste!

Yet still they leave us holding wretched stalks
Of disappointment, for, though nothing balks
Each big approach, leaning with brasswork prinked,
Each rope distinct,

Flagged, and the figurehead with golden tits
Arching our way, it never anchors; it’s
No sooner present than it turns to past.
Right to the last

We think each one will heave to and unload
All good into our lives, all we are owed
For waiting so devoutly and so long.
But we are wrong:

Only one ship is seeking us, a black-
Sailed unfamiliar, towing at her back
A huge and birdless silence. In her wake
No waters breed or break.
LEMBRAM-SE?



Segundo li, numa daquelas irritantes notas de rodapé que insistem em passar nos telejornais, Martin Stephenson vem a Portugal, a propósito da reedição do álbum “Handsome, Humor & Blue” (de 1988). Não se sabe se virá com os Daintees. Mas já valeu a pena: por causa da notícia, voltei a colocar no gira-discos o seu primeiro trabalho. Não há amor como o primeiro. “Boat to Bolivia” é essencial para a genealogia da pop.

PS: Curiosidade. Em 1997, Stephenson lançou um livro intitulado Bairro Alto: “a short tour - trip of prose through Lisbon's beautiful Bairro Alto”


BOAS NOTÍCIAS
De regresso estão Pedro Lomba e Pedro Mexia. Se no mundo houvesse justiça, haveria gente que não teria direito a ir de férias.
LA PASSIONARA
Tem a palavra a Dra. Ana Gomes: “Há aqui mais uma moderna amostra da gestão pouco escrupulosa, da gestão desastrosa que o ministro Paulo Portas faz – neste caso do Ministério da Defesa – e do aproveitamento político entre as discotecas por onde se passeia e as homenagens oportunisticas (sic). É triste que o faça, dividindo os portugueses e criando esta polémica, num dia em que a família, mais do que nunca, tinha direito ao recolhimento.”(sic)

Repare-se na subtilíssima referência inicial à “moderna amostra” (que graciosidade!). Depois, avance-se para o comentário sobre a vida intima do Dr. Paulo Portas (“discotecas por onde passeia”). Finalmente, relembre-se o facto de ter sido o então ministro socialista Rui Pena que assinou o despacho que autorizou a prestação de honras militares nas cerimónias fúnebres de Maggioro Gouveia.

Não restam muitas dúvidas sobre quem terá dividido os portugueses e criado uma polémica – desnecessária e estúpida.

sexta-feira, agosto 15, 2003

ADENDA AO “FOGO (DO) AMIGO”
Ainda sobre o “Rule of Law”. A lei – o conjunto de regras evolutivas cuja observância formam e mantêm a denominada (e espontânea) ordem liberal – toma geralmente a forma de proibições negativas que delimitam a esfera privada dentro da qual é garantido um raio de acção livre, por sua vez protegido da acção de terceiros.
A função da lei é a de criar uma estrutura estável de expectativas para que cada indivíduo saiba até onde pode ir e com o que pode contar. A lei existe para tendencialmente reduzir o conflito, estabelecer certezas, e permitir uma coordenação pacífica de uma multiplicidade de actividades. Hayek tinha razão: o reforço da lei, ou nomos, constitui o único bem comum identificável nas sociedades liberais.
Como bem lembrou o Arq. Ribeiro Telles, em entrevista à revista Visão, no caso do ordenamento do território há que estabelecer regras, normas e princípios gerais bem definidos – e, de seguida, garantir que sejam cumpridos. É essa a única saída (até porque, como recordou o Arq. Ribeiro Telles, foi o Estado, no passado, que lançou a modinha do eucalipto e do pinheiro). A alternativa é entregar ao Estado o paternal papel de aglutinador de responsabilidades, baseada numa espécie de benigna presunção quanto à sua sabedoria e racionalidade (que a História prova não estar provada). Ou seja: é insistir na ideia de um Estado forte, pesado, que insiste em considerar os indivíduos um conjunto de babados idiotas, incapazes de chamar a si a obrigação de gerir o que é seu, e, com isso, de assumir as suas responsabilidades.
WITTY


We're letting you go, Lassie - Timmy got a cell phone.
AZUL

APAGÃO
Este desterrado em NY, não vai postar nada hoje. Vai uma aposta? Ivan, Tulius ou Difool: we want details!
EURONEWS
Ouve-se o locutor da Euronews afirmar: “Euronews: informação na perspectiva europeia”. Mentira. Errado. A frase certa é: “Euronews: informação na perspectiva dos jornalistas, editores e directores da estação de notícias Euronews”.
RESPOSTA AO FOGO (DO) AMIGO
O meu amigo Maradona (um centímetro mais alto do que eu), um blogger absolutamente obrigatório, resolveu, e muito bem, responder ao meu post sobre as “Razões do Estado” – o qual, por sua vez, era já um comentário a um texto seu. Pelo meio, o também imprescindível João Miranda, no seu Liberdade de Expressão, debruçou-se sobre o tema em debate.

E o tema é: o papel do Estado no ordenamento do território –tema suscitado pela vaga de incêndios que assolou, e ainda assola, o país.

De um lado, uma posição que pretende atribuir ao Estado um papel tutelar e controlador – por estarmos em presença de uma matéria de vital importância para o futuro, com um horizonte temporal de longo prazo - de modo a corrigir os «excessos» da iniciativa privada em pleno free-market, e a própria lógica que lhe está subjacente, i. e., uma lógica de curto prazo.

Do outro lado, encontramos uma posição que insiste na responsabilização dos particulares, dos privados e da sociedade civil, professando uma sólida fé na putativa racionalidade (latu sensu) dos mecanismos de mercado, aliada à descrença na suposta omnisciência e bondade do Estado.

Eu, que detesto as meias-tintas e as confortáveis posições equidistantes, tenho de confessar que, nesta matéria, em concreto, me encontro dividido. A questão em apreço – a do ordenamento do território – é uma questão de importância capital para a sobrevivência do mundo tal como nós o conhecemos (ou queremos continuar a conhecer). É uma questão que deve, e só pode, ser pensada a longo prazo. Ou seja: deve conter em sim mesma uma ideia de continuidade e de consistência. O meu pendor conservador – aliado a um pessimismo em relação à natureza humana – leva-me a não estar totalmente de acordo com o João Miranda (facto que me incomoda, porque eu gosto de me sentir em sintonia com ele). Percebo, em todo o seu esplendor, o argumento do João, quando ele refere: ”o dono de uma floresta ganha mais se vender a floresta a quem a gerir melhor do que vendendo todas as árvores destruindo a sua fonte de rendimento e o valor da propriedade. Ou, dito de outra formar, ninguém mata a galinha dos ovos de ouro para tirar lá de dentro um único ovo.”. Mas eu penso que esta racionalidade nem sempre está presente no dono da galinha. Por estupidez, mesquinhez, desconhecimento ou simplesmente burrice, há quem mate a galinha. Uma, duas, n vezes. Há quem não compreenda, uma vida inteira, que “a gestão sustentável de um recurso próprio é sempre mais lucrativa que a gestão destrutiva desse recurso porque se a gestão for destrutiva, a propriedade desvaloriza-se”. Em condições normais, eu até nem me importo que matem a galinha. E que, depois, se arrependam e aprendam, se o conseguirem, com os erros (embora há quem nunca aprenda nada nesta vida). Mas quando o assunto é vital – como referiu o Maradona – a coisa pia mais fino. Não estamos a falar de galinhas, laranjas, uvas ou caramelos. Estamos a falar de recursos naturais que, por erros cometidos, estratégias irreflectidas ou pressas irresponsáveis, podem ficar delapidados por 30, 40, 50 anos (no caso dos solos muito mais) - por muito que, a posteriori, se multem ou punam os prevaricadores (quer pela via legal, quer pelas lições de mercado). Convenhamos: é muito tempo. São os solos que se empobrecem, é a paisagem que definha é a desertificação que se promove. Com uma agravante: recuperar o que se perdeu, corrigir os erros que se cometeram, irá levar o tempo de uma geração. É assustador pensar que, provavelmente, eu já não vou conseguir ver, em plena forma, o substituto do sobreiro que acabou de arder. O que nos remete para o sentido de continuidade de que falava Burke no Reflections: “Society is indeed a contract. It becomes a partnership not only between those who are living, but between those who are living, those who are dead, and those who are to be born.” É este sentido de continuidade, tão querido ao conservadorismo, que está em causa.

Dito isto, apetece perguntar: o que me separa, então, do Maradona? Chegou a vez de me encostar ao João Miranda: ”o estado não é nem omnisciente, nem omnipotente nem infinitamente bondoso. Os políticos são os agentes menos motivados para tomar decisões com efeitos a longo prazo. Um político é um fulano que toma as suas decisões a pensar nas próximas eleições porque os eleitores pensam com a carteira em vez de pensarem com a cabeça.” Meu caro Maradona: o que fazer quando o próprio Estado mata a galinha? O que fazer quando o Estado, mesmo não a matando, a deixa entregue à fome e às intempéries? O que fazer quando o Estado, pela via do poder governativo, negligência a galinha porque está mais empenhado em dar de comer aos patos? Dir-me-ás: o Estado é menos propenso ao erro e ao interesse cínico. Em determinadas situações talvez. Eu escrevi, no tal post sobre as putativas razões do Estado, que percebia o teu ponto de vista e, até, concordava com ele. Mas “em parte”.
Em parte porque, repetindo o que escrevi, “não me basta saber que o ordenamento do território está entregue ao Estado”. Bem sei que o Estado é, supostamente, o agente preferencial do common good e do "interesse público”. Acontece que eu não sei muito bem o que é isso do common good. A História está repleta de decisões do Estado Central, supostamente racionais e com o “interesse público” no horizonte, estrondosamente erradas e perniciosas. Mais: essa lógica conduz à crónica dependência dos cidadãos em relação ao Estado (e vice-versa), bem como à concentração do poder. O que é perigoso, na tese inicial do Maradona (não agora no segundo ‘post’ dedicado ao assunto), é que, pegando na sua lógica, nada nos impede que partamos para a expropriação em massa dos solos, para a nacionalização das azinheiras, sobreiros, carvalhos, etc., em nome do bem comum e das gerações vindouras. Entrei, obviamente, no campo da caricatura. Mas, em bom rigor, se vamos por aí, ou seja, se entendemos que existem determinadas áreas – e existem, de facto – cuja importância e tipologia as obriga a um tratamento especial, e a um estatuto de excepção - fora dos mecanismos «naturais» do mercado (latu sensu) – pode abrir-se a porta à paternalização do Estado por parte da sociedade, à desresponsabilização dos cidadãos e a uma espécie de confiança cega no papel do Estado que pode conduzir a resultados desastrosos.
Daí que eu tivesse falado no “Rule Of Law” e tenha evocado Hobbes. Tal como, aliás, Oakeshott quando afirma ser o “Rule of Law” a única resposta prática contra o prejudicial e mítico laissez-faire, por um lado, e o “central social planning”, por outro. Nesta matéria, em concreto, há aqui um ponto de equilibro que tem de ser evocado. E alcançado. Daí que seja por via da lei e dos seus mecanismos que poderemos obter algumas garantias.
Vou, pela enésima vez, repetir-me: “Tranquilizar-me-á muito mais saber que vivemos sob o primado da lei - com leis bem feitas, mecanismos de controlo eficazes, um poder judicial independente, mecanismos penais prontos a ser activados para penalizar quem violou a lei. A pedra de toque, aqui, como em quase tudo, chama-se, então: “Rule of Law”.” O que não difere muito da tua afirmação: “se não queres que governos futuros sejam obrigados a restrições ainda maiores, aconselho vivamente a que se comece esta noite a legislar forte e feio contra as demasiadas liberdades que agora se concede ao meio empresarial que até aqui tem actuado em território nacional no âmbito das florestas (ou, num caso infelizmente mais comum, que se comece a aplicar em condições as leis que existem).” Nada mesmo. Estamos, por isso, entendidos?

quinta-feira, agosto 14, 2003

DESESPERAR
Começo a desesperar com este bilhetinho!

terça-feira, agosto 12, 2003

AINDA PORTAS
Transcrevo, na integra, a referida crónica de Paulo Portas.

Quando eu tinha 12 anos
por Paulo Portas

“Lembro-me perfeitamente. Como se fosse hoje. Vasco Gonçalves apareceu na televisão mais despenteado do que nunca. Parecia sentado numa cadeira, mas na verdade deitava-se nela. Fazia gestos brutos e metralhava palavras de irritação geral com o mundo. Havia baba e raiva. Ele coçava-se e a câmara tremia. Punha e tirava os óculos ao compasso dos amores e dos ódios. Era uma cena de pura violência política no Estado à beira do colapso.
Eu tinha onze anos e espantei-me. Desde pequenino ouvia falar de política em casa, vagamente no colégio dos jesuítas, às vezes na missa. O meu pai achava que a vida faria sentido para mudar o mundo, a minha mãe suspeitava que a desordem do mundo podia dar cabo da nossa vida. Como é natural, eu não tinha opiniões, só impressões. Nem sabia de razões, só de emoções. A aparição do companheiro Vasco teve o efeito de me decidir. A imagem dele faz parte da minha memória do mal. Porque há sempre um momento, sei que Vasco Gonçalves teve a maior importância na minha iniciação militante. Se a primeira vez é importante, ele foi a minha primeira vez em política. Podia tê-lo seguido e ficaria do lado de lá da barricada: talvez fosse hoje um desses homens de esquerda que todos os dias matam a sombra, apagam o lastro e gozam o sistema. Mas não. Devo a Vasco Gonçalves o facto de ser uma criatura irremediavelmente de direita. Olhei para ele e fiquei contra-revolucionário. Daí para a frente, passei a desconfiar dos militares e a detestar o comunismo. Quanto aos militares, façam lá o que fizerem as fardas oficiais, quero-os longe. Quanto aos comunistas, levei tempo a digeri-los. Só agora consigo respeitar um camarada disposto a morrer camarada: é um facto mais digno e humanitário do que a massificação da dissidência. Não passou mais do que um mês. O Império desapareceu num ápice e Portugal tornou-se na pequena República de moda para fotógrafos, sociólogos e curiosos barbudos. O socialismo irreal nascia cá, por aqui se praticava o perfeito suicídio ocidental. Direita não havia: o último mito foi o monóculo de Spínola, homem que se celebrizou por ir à televisão anunciar que, estando o país a saque como estava, ia-se embora como foi. A burguesia tratou de salvar os haveres mais secretos e partiu. No dia em que eu fiz doze anos ganhei um direito que já não se usa: podia filiar-me num partido. Fui a correr pedir uma ficha no grémio juvenil dos laranjinhas. Como se fosse um escuteiro de Sá Carneiro. Vi por lá uma fotografia de Marx e trouxe para casa um livrinho de Bernstein. Não gostei do que vi, nem entendi o que li. Estranhei e por momentos hesitei. Mas não havia muitas opções. Atribuo a um conceito de educação nunca ter acreditado numa só palavra que Mário Soares dissesse. Enquanto as tias que sobravam iam de vison posto para os comícios dele – ‘se isto não é o povo, onde está o povo?’, perguntavam elas – eu achava-o leviano como não se pode ser e mentirolas como não se deve ser. Quanto a Freitas do Amaral, era difícil ouvi-lo nesse tempo. As vezes que o ouvi, parecia-me um bispo; e soava-me de menos, porque uma contra-revolução não se faz pedagogicamente.
Escolhi Sá Carneiro por uma irracionalidade lúcida; e por exclusão de partes. Devo a Sá Carneiro duas coisas: ser democrata e não gostar de política. Na idade que eu tinha e no estado em que o país estava, a tentação natural era tornar reaccionário. Mas Sá Carneiro, a quem segui sem me interrogar, jogava por fora do sistema e por dentro do regime. Marcou as fronteiras do que a direita portuguesa devia ser sempre e nunca mais foi: não há compromisso com a esquerda do sistema nem há compromisso à direita do regime. Era de uma solidão radical, facto dez vezes preferível ao consenso universal. Tinha sinais naturais de classe e por isso é que não parecia frequentável para a maioria dos amigos e inimigos. Conseguiu uma coligação raríssima: era um homem de dizer o que pensava e ao mesmo tempo era um político de pensar o que dizia. E coincidia. Morreu em campanha mas nunca se mortificou pelo Estado.
Nisso, era exemplar. O costume bem conservador e bem possidónio em Portugal é que a política se faz por sacrifício e com sofrimento. Sá Carneiro era um profissional, gostava de jogar e punha tudo em risco. Provou a toda a gente que a direita podia governar Portugal e provou a Portugal que a direita podia ser moderna.
Já passaram muitos anos e Sá Carneiro ainda é a última prova de ambas as teses. Pergunto-me se não foi uma ilusão. Como a águia real no país dos corvos.”

in Revista K (número 1, Outubro de 1990)

Tantas pistas por aqui espalhadas para o presente...

PS: o número 1 da revista K, contava com a participação de: Alberto Castro Nunes, António Cerveira Pinto, António Maria Braga, Francisco Sande e Castro, Graça Lobo, João Bénard da Costa, Manuel Hermínio Monteiro, Pedro Ayres de Magalhães, Pedro Rolo Duarte, Vasco Rosa, Agustina Bessa-Luís, Maria Filomena Molder, Leonardo Ferraz de Carvalho, Paulo Portas, Vasco Pulido Valente, Inês Gonçalves, Álvaro Rosendo, Augusto Brázio, entre outros. E, claro, o núcleo duro: Miguel Esteves Cardoso, Nuno Miguel Guedes, Carlos Quevedo e Rui Henriques Coimbra. Um luxo. Deixou muitas saudades.
CORREIO
Do Nova Frente, recebi a seguinte missiva:
”Adorei o seu notável post "Para Sorrir", a propósito das declarações do então só-jornalista-só Paulo Portas à Kapa. É um post e pêras... Não admiro especialmente o ministro da Defesa, como deve calcular. Acho, todavia, que o rapaz se distingue por um bom discurso, ideias claras, aviando mais bem que outros (eu sei que não é difícil...)as suas ideias, quer oralmente quer por escrito. Eu sei, eu sei. A gente habitua-se aos "hadem" e aos "estéjamos" e depois, quando dá por si, já aprecia alguém que fale de modo escorreitinho... Mas quanto à política propriamente dita, não me fio no sujeito, bem entendido. Quanto às declarações de 1990, vamos por partes: não conheço a entrevista. De que militares estavam eles a falar? Seria uma entrevista política em que se abordava o tema do PREC e em que a vocábulo "militar" só podia ser entendido "stricto sensu"? É que, convenhamos, quando a gente inculca a ideia do coronel Vasco Gonçalves é bem legítimo tecer toda a espécie de comentários ordinários sobre militares. Não se quer por em causa a necessidade das Forças Armadas, antes exprimir a nossa repulsa pela actuação de certos militares, justamente por essa actuação ir contra tudo o que as Forças Armadas devem ser. Será isto? De resto, gostei muito de ler o post. Sabe que desde começámos a ter, com Salazar, ministros da Defesa que nunca tinham cumprido serviço militar, pode-se esperar tudo.”

Caro BOS: não se trata de uma entrevista, mas sim de um artigo. Um artigo onde Paulo Portas explicava a sua tendência e as suas referências políticas. Hoje Paulo Portas não o escreveria. Não por medo ou receio em ferir susceptibilidades. Simplesmente porque Paulo Portas é hoje 13 anos mais velho e a tarimba da vida tê-lo-á ensinado a evitar as declarações definitivas e as generalizações potencialmente injustas e não rigorosas. Não deixa, contudo, de ser verdade: a figura e os delírios de Vasco Gonçalves não eram propriamente abonatórios para a classe e facilmente provocavam o efeito contrário.
Ainda assim, tenho saudades «daquele» Paulo Portas. Um jornalista workaholic, contundente, por vezes excessivo e injusto, mas lúcido e extremamente inteligente. Um jornalista que escrevia de forma primorosa. Uma pessoa que não se prestava a beijocarias em mercados de peixe.
Era, seguramente, um homem mais livre.
THELONIOUS
“This week I will be mostly hearing Monk”. Mais concretamente este excelente disco.



Eu não resisto à caótica matemática deste homem de dedos tortos.
PARA SORRIR
É sempre curioso, e por vezes divertido, compararmos o que dizíamos ou pensávamos há dez ou vinte anos atrás, com o que agora professamos. O tempo prega-nos partidas. Com ele vamos aprendendo, mudando, amadurecendo. Numa palavra: evoluindo. Disso mesmo dei conta no regresso à mítica revista K, a propósito do já referido encontro com o Nuno Miguel Guedes.
Voltei a pegar nas já amarelecidas revistas (que coleccionei e guardo religiosamente) e, logo no número 1, de Outubro de 1990, dou de caras com um artigo de Paulo Portas que, passados estes anos, à luz dos actuais acontecimentos, não deixa de provocar um sorriso. Deixo aqui um excerto:

”Devo a Vasco Gonçalves o facto de ser uma criatura irremediavelmente de direita. Olhei para ele e fiquei contra-revolucionário. Daí para a frente, passei a desconfiar dos militares e a detestar o comunismo. Quanto aos militares, façam lá o que fizerem as fardas oficiais, quero-os longe.”

E longe vão os tempos...
INFATIGÁVEL
Na coluna “Do que é que gostou mais e menos no DN de ontem?”, na edição do passado domingo, Jamila Madeira aproveita o ensejo para praticar a mais pura propaganda política. Em escassas vinte cinco apertadas linhas, Jamila é incapaz de despir a camisola de militante e secretária-geral da Juventude Socialista. Tudo o que diz está impregnado de recados, combate político e ataques gratuitos. Como ‘jotinha’ padrão, segue fielmente a cartilha e o modus operandi da seita. Tudo parece calculado. Em primeiro lugar, aproveita para dizer que o número de hectares ardidos são “mais do dobro da média dos últimos dez anos”(sic). Depois, em relação a uma notícia sobre trabalho infantil, afirma que é um problema para o qual “a JS tem sempre alertado – e que este Governo, muito em particular, tem desprezado”(sic). Segue para o artigo de opinião de Adriano Pimpão, concluindo, da sua leitura, que “após os fogos florestais será certamente devastada a educação”(sic). Termina com a descoberta dos “[por causa dos incêndios] novos heróis – os bombeiros, os autarcas e os cidadãos anónimos”. Jamila parece ter escolhido as notícias certas para ‘bater’ em quem lhe ensinaram que deve bater. Mas podiam ter sido outras. Tanto faz. Os jotas são assim: incisivos, irreverentes, sempre prontos a fazer uso da cassete – mesmo que, neste caso, colidam com a postura mais regrada e comedida de um ultimamente calmo (?) Ferro Rodrigues. Há gente assim: infatigável. O que ela provavelmente não saberá, é que os “cidadãos anónimos” que refere, são precisamente os mesmos que colocaram no poder o PSD e o PP, tendo voltado as costas ao PS - o tal que nunca, em seis anos, teve a mínima mácula na boca esclarecida da doce Jamila. Aí, dou-lhe razão: eles foram, e são, uns heróis.
CELINA DA PIEDADE
É este o nome da acordeonista/cantora que acompanha Rodrigo Leão. Se possível, não percam. Ficarão encantados com a sua alegria em palco e com o fabuloso som do seu acordeão. Mais uma vez: thanks major.
FOSSILIZAÇÃO
Mário Soares é uma figura incontornável da história portuguesa contemporânea. Falo de uma pessoa que influenciou para sempre o destino do pais – antes e depois de 74. A ele, embora não só, devemos a instauração de um regime democrático. Devemos à sua perseverança e coragem - bem como à de Sá Carneiro, Adelino Amaro da Costa, Ramalho Eanes e outras figuras de back-office - a travagem que impediu a estalinização e militarização do Portugal (no PREC e no seu aftermath). Também a ele devemos a boa negociação que permitiu a entrada de Portugal na então CEE. Como governante, Soares não teve tarefa fácil. Governou em períodos conturbados, com o pais em constantes derrapagens orçamentais e financeiras. Mais tarde, assistimos a um Soares em grande forma, a arrecadar de forma surpreendente a corrida para a presidência da república. Sobre o cargo, pode hoje dizer-se que o desempenhou de forma mais ou menos pacífica, tendo sido um apologista da tolerância, do bom senso e da pacificação entre órgãos de soberania. Entre alfinetadas aos governos de Cavaco – umas vezes injustas, outras vezes justíssimas - lá foi levando a sua água ao moinho. Tudo isto corporizado numa figura bonacheira, simpática, com uma postura fleumática e denotando, por vezes, um excelente sentido de humor. Este é, em traços gerais, o retrato rosáceo de um político que todos se habituaram a respeitar e, nalguns casos, a venerar. Uma espécie de referência do Portugal democrático.
Mas, como em tudo na vida, existe um outro lado. Existe um Soares mais obscuro, difuso, incerto e, certamente, menos pacífico. E é esse o Soares que, de há uns anos a esta parte, tem vindo a surgir à superfície.
O Soares de agora – o da defesa da corporação ‘Soarista’, o da anti-globalização e do anti-americanismo mais primário, o do esquerdismo radical-chic, o dos “tumores” - sempre existiu. É o Soares da vaidade e da presunção. É o Soares da boa e velha «ética republicana», reminiscência de um «velho mundo»: um mundo lodoso de amigalhaços e intocáveis; um mundo de sombras, manipulações e influências; um mundo de pequenos favores, de telefonemas oportunos, de pressões mesquinhas, de tacticismo, de eminências pardas e de seitas obscuras; um mundo onde é totalmente inconcebível que um «puto» de trinta e poucos anos, envergando uns ténis e uma t-shirt, possa decretar a prisão preventiva de um amigalhaço, ou autorizar a escuta dos telefonemas de outro. Neste mundo não se toleram tamanhas ousadias e alarvidades. É um mundo onde perdura e reina um respeitinho reverencial e uma babugem em torno dos chefes.
Poderão dizer que Soares é hoje um homem livre e que, como tal, ousa exprimir aos sete ventos a sua cosmivisão sobre o mundo e as suas convicções mais profundas. Pessoalmente, não dou um tostão por essa tese. Aquilo a que assistimos é a uma tentativa desenfreada de protagonismo. Uma tentativa de realinhamento e de resgate de um mundo em vias de extinção. Mete dó assistir ao desnorte de um ‘senador’. Mas, infelizmente, Mário Soares parece empenhado em destruir o que resta da sua imagem de estadista, de homem de bom senso, contrário a radicalismos e a maniqueísmos de pacotilha. É pena. Alguém o deveria avisar que o mundo mudou. E que, muito provavelmente, este já não lhe pertence.
NOVO BLOG
De Évora chega-nos, também, o Miniscente, o blogue pessoal de Luis Carmelo. Vale a pena passar por lá.

segunda-feira, agosto 11, 2003

VOLTA FRANCISCO!
O Francisco José Viegas, no seu incontornável Aviz, dedicou-me um texto. Deixou-me sem palavras. Meio «aparvalhado». O texto chama-se simplesmente “Évora”. E, como é habitual no Francisco, é excelente. O que eu gostava mesmo era que ele voltasse a viver em Évora. Évora precisa.
BLOGOSFERA, ANO I APP
Pedro Correia escreveu sobre blogues, no Diário de Notícias. ”José Pacheco Pereira deu o mote. Há escassos meses, o eurodeputado do PSD lançou entre nós a moda dos blogues.” Errado. A «moda» dos blogues é anterior a Pacheco Pereira. Ele que me perdoe, mas é bom lembrar que existia uma blogosfera antes do seu incontornável Abrupto. Um universo pré-Abrupto repleto de excelentes blogues – vivos, dinâmicos, atentos, polémicos, etc. Posteriormente, Pacheco Pereira – pela sua notoriedade e pela qualidade do seu blogue - ajudou a difundir o universo dos Web Logs.
THE FAT LADY SINGS HEAVENLY
Domingo, 10 de Agosto, 22 horas. Jardim Público de Évora. Noite fabulosa para se ouvir Rodrigo Leão. Fiquei surpreendido com a enigmática e corpulenta presença de uma acordeonista/cantora. Uma figura fascinante, portadora de um swing e de uma presença contagiante. Infelizmente, esqueci o seu nome. Alguém me pode dar uma ajuda?

Mas o meu domingo ficou indelevelmente marcado por um acontecimento: conheci, pela primeira vez «ao vivo e em directo», o Nuno Miguel Guedes – o major scobie do Tradução Simultânea. Confirmei todas as expectativas. O Nuno é a simpatia e a educação em pessoa. Há pessoas assim, às quais «aderimos» imediata e incondicionalmente. Falámos um pouco de tudo: de Larkin, da revista K, da blogosfera (confirmando a nossa mútua admiração por esse blogue de referência chamado Voz do Deserto), de gastronomia, de filhos. O Nuno sempre atento, a tomar notas num impecável caderninho preto.
Foi um prazer, caro Nuno. E perdoa o meu declarado nervosismo e a minha timidez latente. Ao fim destes anos, permaneço um eminente provinciano.

domingo, agosto 10, 2003

ÉVORA NA BLOGOSFERA
À blogosfera chegou o Évorablog, um espaço a cargo do Giraldo e do Sertório - nicknames de dois “eborenses de gema”(sic). Propõem-se discutir a cidade do ponto de vista de quem a vive - real e quotidianamente.
São agora dois os blogues dedicados à cidade de Évora (o outro é da responsabilidade do escritor e ensaísta Luis Carmelo e chama-se Évora Sim). Desejo longa vida a ambos. Que sirvam para discutir – e com isso melhorar – a minha cidade. Estarei atento e, sempre que possível, participativo.

sexta-feira, agosto 08, 2003

O INFONABO ARMOU-SE EM 'EXPERT' E...
...deu cabo do Template.

Tive de recorrer a outro. Infelizmente. Já estou com saudades daquele azul.

PS: mas, agora que acertei as cores, gosto mais deste.
”’TÁ A VER?”
Eu gosto dos CTT. Considero os CTT uma das empresas públicas que tem prestado um bom serviço ao país. Daquelas de que nos podemos orgulhar. Mas, de tempos a tempos, lembro-me que exerce a sua actividade em regime de monopólio. Em boa verdade, eu até nem queria lembrar-me, mas a empresa faz questão disso. Dois exemplos. Actualmente, uma pessoa dirige-se ao balcão de uma das três estações de correio de Évora, por volta das 17h. Espera-a, invariavelmente, uma lista de espera de cerca de 30 pessoas. A razão é simples: falta de pessoal (e o desemprego aumenta, não é?). Assiste-se, por isso, ao aterrador cenário de cinco lindos balcões inactivos e um completamente entupido. Outro exemplo. Em Évora, a generalidade das empresas da Zona Industrial e do Pargue Industrial não recebe correio vai para dois dias. Telefona-se para o responsável da distribuição, e a resposta é peremptória: “Estamos com falta de pessoal. É o período de férias, ‘tá a ver?” Estou. Estou a ver. “Então vamos nós aí, levantar a correspondência.” “Não podem. Aqui não fazemos distribuição.” E os pagamentos, as declarações, os contratos, as comunicações que aguardamos? “Amanhã logo se vê.” “Amanhã logo se vê” – eis o epíteto perfeito para um país que encerra portas durante dois longos meses.
O MELHOR CARTOON DOS ÚLTIMOS MESES. G-E-N-I-A-L

AFUNILAMENTO MENTAL
O Alberto que me perdoe a eventual mas acidental apropriação de temas, mas sinto que devo comentar o lamento do Sr. Sebastião Lima Rego.
A carta deste senhor, encabeçada por um enigmático “A Morte de ‘Uma Certa Ideia da França’”, é o exemplo acabado de como o preconceito e a ignorância andam, muitas vezes, de mãos dadas. Desgraçadamente, o texto não passa de um chorrilho de ideias fixas, encharcado indelevelmente pelo mais puro preconceito. Desde as referências aos “boys”(sic), passando pela “globalização anglossaxonizante”(sic) e acabando no “afunilamento cultural americano”(sic), tudo soa a intolerância, ressabiamento, superstição, ignorância. Lima Rego chega mesmo a delirar quando escreve: ”A França não é um país qualquer, a França tem uma responsabilidade, a França tem a Revolução Francesa, tem Descartes, tem Voltaire, tem Stendhal, tem Proust, tem Sartre, a França, que raio, tem até o Maio de 68!”. Patético.
Para Lima Rego a questão é claríssima: a cultura anglo-saxónica tem vindo a conspurcar a «boa» cultura francesa e a alienar as incautas mentes europeias. A anunciada morte de uma livraria francófila – em si mesma um sinal dessa corrupção – serve para, mais uma vez, voltar a denunciar o flagelo que nos é infligido. O filme, da autoria de Lima Rego, conta com um vilão (os EUA e a língua inglesa), duas vítimas (a França e a Europa) e um conjunto difuso de heróis (um grupo de iluminados a que Lima Rego obviamente pertence, que trava uma dura luta pela libertação da humanidade contra o jugo anglo-saxónico).
Por sua conta e risco, Lima Rego parece ter passado, irremediavelmente, ao lado de um universo de escritores, filósofos, músicos, pintores, cineastas, dramaturgos, jornalistas, investigadores e cientistas, responsáveis pelas mais belas páginas do grande livro da História da humanidade - só porque pertenceram, ou pertencem, à «cultura» anglo-saxónica.
Lima Rego parece querer insinuar que os europeus – onde se incluem os portugueses – só consomem os produtos da cultura anglo-saxónica porque uma mão invisível, comandada pelos interesses americanos, os obriga a tal sacrifício. Porque, para Lima Rego, nada mais se produz no mundo anglo-saxónico do que a porcaria da ‘fast food’, o cinema-para-idiota-ver, a literatura de cordel, o jornalismo sensacionalista e parcial, as séries de televisão estupidificantes, etc. etc. etc. No lado oposto encontra-se a França, onde, claro está, só se produz boa literatura, bom cinema, bom teatro, boa televisão, bom jornalismo. Um espanto.
Eu, ao senhor Lima Rego, aconselhava-o a visitar os EUA e Inglaterra. Aconselhava-o a conhecer as universidades americanas. Aconselhava-o a pegar em jornais e revistas anglo-saxónicas (o New York Times, a Vanity Fair, a New Yorker, a TLS e a Literary Review). Aconselhava-o a ler Philip Roth ou Saul Bellow. Aconselhava-o a ver umas quantas séries televisivas produzidas pela HBO. Obrigava-o a descobrir o cinema independente americano e a descobrir quatro ou cinco realizadores da ímpia Hollywood. Talvez um dia ele pudesse reler o que escreveu e conseguisse pensar: “tão absurdo que eu era”.

quinta-feira, agosto 07, 2003

O SISTEMA ESTÁ CONTRA NÓS!
Julgando eu que a senhora se encontrava em prolongado retiro espiritual, na pré-reforma ou já refomada (por favor deixem-me sonhar), eis senão quando, através do Alberto Gonçalves, tomo conhecimento de um facto perturbador: Dulce Pontes esteve presente na festa de inauguração do Estádio Alvalade XXI (o melhor estádio do mundo). Mais: não só esteve presente como... cantou. É por estas e por outras que eu digo: o sistema está podre. As cabalas e os golpes baixos sucedem-se. E o Sporting Clube de Portugal tem de se por a pau.
DE REPENTE, CHOVEU EM ÉVORA
Choveu. Começou a chover às 17:20. Choveu durante breves, salvíficos, minutos. E a temperatura baixou para os 35ºC. É caso para gritar: hip hip hurrah!
ESCLARECIMENTOS

1. O leitor Miguel Nogueira considera incoerente o facto de eu considerar de “insidioso mau gosto” a observação de Pedro Adão e Silva (PAS) sobre “o verdadeiro Pulido Valente”, e não achar o mesmo do termo “esquerdalha”, incluído na frase que há dias aqui reproduzi (da autoria do blog Nova Frente): “A telenovela das escutas telefónicas, cujo teor foi democraticamente divulgado em tudo o que é órgão de comunicação, teve o condão de revelar que a esquerdalha, nas suas conversas íntimas, continua a utilizar o "pá" em doses insuportáveis”.
Aceitando respeitosamente a crítica, entendo que existem diferenças de tom e de contexto que importa dissecar.
A frase da “esquerdalha” tinha uma carga nitidamente humorística. E o alvo era abstracto. Foi nesse sentido que aqui a coloquei. Admito que o termo “esquerdalha” possa parecer ofensivo, mas quantas vezes já fui apelidado, em tom de provocação graciosa, de “reacças” e de “conservas”? Será caso para me sentir ofendido? Não creio. Volto, por isso, à provocação: a esquerda perdeu o sentido de humor?
Já a ‘boca’ de PAS estava incluída num registo sério, onde se falava da morte de uma pessoa (neste caso de João Pulido Valente). Não me parece que PAS estivesse a brincar com a situação, nem que a expressão “verdadeiro Pulido Valente” devesse ser entendida como uma tirada humorística. Aliás, PAS escreve, mais tarde: ”O verdadeiro tinha apenas a ver com o facto de Vasco Pulido Valente não ter o apelido Pulido Valente, apesar de muito se aprazer a utilizar frequentemente o truque de chamar depreciativamente as pessoas por metade do apelido que têm.” O tom é nitidamente sério e revela uma postura de ataque pessoal e objectivo.
Ora, eu classifiquei-a de “mau gosto” por duas razões. Em primeiro lugar, porque se insere na longa lista de ataques pessoais a Vasco Pulido Valente, com base no facto de ele fazer uso de um apelido que não é o seu. Há quem recorra a esse facto para gozar com o Vasco ou para o acusar de 'pedante'. Entendo que é uma forma de ‘bater’ não só estúpida e deselegante, como, até, cobarde. Como toda a gente sabe, o Vasco Pulido Valente (VPV) ainda pertence à família Pulido Valente (era neto de Francisco Pulido Valente). Por contigências e razões previsíveis (Francisco Pulido Valente era seu avô materno; José Emídio Correia Guedes o paterno), o seu nome acabou por não conter o apelido "Pulido Valente". Talvez fosse interessante saber porque razão ele os utiliza. Mas são razões que só a ele dizem respeito. Há, por isso, que respeitar. Se se respeitam os heterónimos, porque razão não se respeita o "Pulido Valente" no Vasco? Arrisco uma resposta, em forma de pergunta: será porque VPV bate habitualmente na esquerda e no Partido Socialista? Quem conhece o Vasco sabe perfeitamente que não se trata de uma tentativa de embuste. Ou seja, não há aqui «verdadeiros» e «falsos» Pulidos Valentes. A não ser que o PAS se atreva a escrever, um dia (que espero longínquo): “morreu o «falso» Pulido Valente”.
Em segundo lugar, achei a ‘boca’ despropositada numa altura em que o próprio Vasco Pulido Valente enfrenta problemas de saúde e recupera de uma intervenção cirúrgica – facto noticiado no DN e que, inexplicavelmente, PAS afirma não ter conhecimento.

2. Já por diversas vezes me acusaram de ser excessivamente violento e preconceituoso para com a esquerda. Queria aqui esclarecer este ponto.
A grande maioria dos meus amigos é de esquerda. Com eles tenho discussões poéticas, nas quais voam objectos inanimados e se espantam inocentes que se cruzam connosco. Mas essas diferenças não significam nada. Eu avalio e valorizo pessoas, não ideias, ideologias ou retóricas.
A dicotomia esquerda/direita existe – existirá sempre. Não nego, por isso, a minha simpatia clubista pela direita. Não gosto de meias-tintas e de sentimentos dissimulados, pelo que digo aquilo que penso e assumo aquilo que sou. Embora ache a direita mais sensata, mais realista, menos assombrada e presunçosa, reconheço que a esquerda deu, e ainda dá, o seu contributo positivo para a evolução das sociedades.
Reconheço, também, alguma fogosidade e «corrosividade» em certas observações por mim proferidas. É uma questão de estilo. Mas sempre tentei ser justo. Assim como sempre respeitarei a diferença de opiniões - desde que, como é elementar e óbvio, as mesmas sejam encabeçadas pela boa fé, pela urbanidade e pela honestidade intelectual. À esquerda e à direita há quem não veja as coisas assim. Há quem insista em radicalizar posições, atacar de forma vil e desonesta o outro, segregar aprioristicamente quem se encontra do «lado de lá». Como diria um amigo meu, para esses não estou.
AS RAZÕES DO ESTADO
O meu amigo Maradona (que eu trato carinhosamente por ‘mano’) é incapaz de esconder o seu lado conservador. O seu ‘post’ sobre os incêndios, as florestas e o ordenamento do território (não necessariamente por esta ordem), espelha na prática a diferença entre um pensamento liberal e um pensamento conservador. Escreve o Maradona: “Sucede que existem coisas, meia dúzia delas, que quero ver sob a alçada estrita e bruta de um Estado Central despótico! E entre essa meia dúzia está o ordenamento do território, nomeadamente no que concerne (sim, utilizei a palavra "concerne", que é das palavras feias aquela que eu gosto mais) ao povoamento animal e vegetal dos territórios sob a alçada de cada Estado Central.
Acredito que o Estado Central é o único garante contra a miopia de quem, legitimamente, apenas pode pensar nas possibilidades de lucro no mais breve espaço de tempo possivel; que é ele também a única âncora contra a profunda especialização técnica que qualquer tipo de actividade que envolva a exploração dos bens que a natureza nos proporcionou exigem!”

Percebo o Maradona – e concordo, em parte, com ele. Mas eu tenho uma costela liberal que me vai moendo. Uma costela que vai resmungando com o meu temperamento conservador. Embora com o passar dos anos ela tenha vindo a acomodar-se, ameaçada que foi com uma intervenção cirúrgica, de quando em vez volta à carga. E mói – silenciosa e insidiosamente. Desta vez, a dita obriga-me a colocar a questão que importa colocar: e se o Estado Central – o tal Estado forte, bruto e implacável, como sugere o Maradona – falhar no desempenho das suas funções? E se o Estado Central, a quem se atribuiram determinados poderes «despóticos», para o cumprimento cabal e pacífico das mais importantes funções em áreas de vital importância nacional e intergeracional (como seja a do ordenamento do território, contra os caciques, os patos bravos e os especuladores), e se o Estado Central, dizia, estiver desorganizado? E se o Estado – que longe de ser uma instituição abstracta, é na prática constituído por homens e mulheres de carninha e osso – for fraco, medíocre, desatento? O que ou quem nos poderá proteger disso? Que garantias têm os cidadãos de que o Estado será sempre fiel aos seus compromissos, eficaz no seu trabalho, que se regerá sempre pelo mais alto e puro interesse público? Quem nos poderá garantir que as suas decisões serão sempre certeiras? Essa lógica, caro Maradona, apesar de compreensível, é sinuosa e abre caminho a muitos perigos. Veja-se o caso concreto, em apreço: o Estado português não é um dos co-responsáveis pelo que se passou? Não assistimos diariamente a uma longa lista de factos que indiciam uma clara negligência por parte do Estado português - não só em termos dos mecanismos de controlo, como da própria organização, classificação e manutenção do parque florestal público?
A solução não passará, necessariamente, por colocar sob a jurisdição protectora e paternal do Estado determinadas áreas e níveis de responsabilidade. Por detrás do exercício do poder – governativo, militar, económico – pode esconder-se um exercício pernicioso e arbitrário desse mesmo poder, servido por uma presunção e por uma profissão de fé: a que considera o "Estado" como perfeito. Não me basta saber que o “ordenamento do território” está entregue ao Estado, ponto final, parágrafo. Tranquilizar-me-á muito mais saber que vivemos sob o primado da lei - com leis bem feitas, mecanismos de controlo eficazes, um poder judicial independente, mecanismos penais prontos a ser activados para penalizar quem violou a lei. A pedra de toque, aqui, como em quase tudo, chama-se, então: “Rule of Law”. Todos, incluindo o Estado, têm que estar subordinados à lei. E será essa lei - derivada de preceitos e princípios gerais claros, imparciais, inequívocos - que garantirá que o Zé Maria, a Empresa XPTO S. A. ou o próprio Estado irão cumprir o que está estipulado. Porque até o Estado deve assumir as suas responsabilidades. A bem ou a mal.
AS ÁRVORES
Por causa de um texto no Aviz e de outro no A Causa Foi Modificada, decidi contar duas histórias.

Há dois anos atrás, a câmara municipal de Évora – cidade onde nasci e teimo em viver -, ainda sob a batuta da CDU, avançou com uma série de obras no centro histórico a que denominou de “Requalificação Urbana”. De entre as obras, uma houve que prendeu a minha atenção: a intervenção no Largo d’Álvaro Velho.
O executivo em causa tinha-me habituado a ver tratar a temática da arborização, criação e manutenção dos espaços verdes de uma forma a que chamaria, no mínimo, de infeliz. Ao longo de anos, os eborenses assistiram à decadência do Jardim Público (era, por exemplo, sujeito a um verdadeiro calvário durante as semanas em que decorria a Feira de S. João); ao empobrecimento (num caso ao quase desaparecimento) dos jardins da cidade (varridos por intervenções guiadas pela lei do menor esforço, encabeçadas pelo mais pobre e medíocre sentido paisagístico, consubstanciado pela simplista solução de plantar relva, relva e mais relva); ao corte quase indiscrimnado de árvores, revelando o tipo de tenacidade e voluntariedade empregue por certos dentistas perante a visão de uma boca aberta; a um deficiente trabalho de replantação, onde se assistia à colocação de pauzinhos que, após meses de previsível incúria, pareciam cometer uma espécie de suicídio colectivo - um grito mudo que ninguém parecia querer ouvir; observaram, ainda, a chegada da moda das palmeirinhas, as quais, como qualquer alentejano devia saber, são uma espécie autóctone; ao desleixamento no tratamento de recantos e pequenos espaços ajardinados (tanta vezes já tenho questionado se ainda existirão jardineiros a sério em Évora); em suma, a um role infindável de asneiras, descuidos e negligência pura que só parecia agredir alguns eborenses, já que o eterno executivo do Dr. Abilio Fernandes via o seu mandato renovado por sistema, com os elogios de fundo de meia dúzia de intelectuais e notáveis da capital, que por aqui passavam e bradavam: “Évora é o máááximo!”. Pois.
Eis senão quando, na azáfama da «requalificação», se transladaram para o Largo d’Álvaro Velho duas frondosas árvores, acompanhadas por dois bancos de jardim, dotando o espaço de um ambiente quase poético. E os eborenses, a pouco e pouco, aperceberam-se do impacto estético da presença de duas singelas e enigmáticas árvores. Da riqueza da sombra, em dias de canícula. Da hipótese de fruição do espaço, proporcionada pela presença marcante de duas árvores. Ainda hoje penso que foi aquela visão que fez despertar os eborenses para os anos de atraso, que uma intervenção de última hora (estávamos a dois meses das eleições) não poderia voltar a apagar.
Dizem agora que, com este novo executivo, tudo vai mudar, incluindo, claro está, a temática dos espaços verdes - das árvores, da arborização, da sua limpeza e manutenção. Até à data, apraz-me contar um pormenor: nas avenidas novas, insiste-se em plantar as árvores no enfiamento dos lugares de estacionamento que se encontram longitudinalmente contíguos aos passeios. Ou seja: as árvores são colocadas literalmente fora dos passeios. Elas parecem não estar ali para fazer sombra aos pedestres. Não. Elas estão ali para assegurar que o feliz proprietário do Fiat Uno ou do BMW encontre o seu carrinho fresco.

Por causa dos incêndios, o meu pai falou da Serra d’Ossa - frequentada por ele quando era miúdo (anos 50). A Serra d’Ossa de então era um regalo para os sentidos: encostas coberta de sobreiros, azinheiras, pinheiros, alguns castanheiros e medronheiros, envolvidos por uma riquíssima fauna e flora. A serra era ainda pontuada por fontes, riachos e recantos húmidos e frescos. A abundância de água era tal que, em certos sítios, escorria para a estrada. No Verão, a serra era escolhida como refúgio por quem procurava um ar límpido, refrescante, suavemente perfumado. Uma espécie de oásis no meio da abrasadora planície alentejana – a mesma planície onde muito gente labutava, de sol a sol. São memórias muito queridas as que o meu pai guarda, de quando percorria, a pé ou de bicicleta, as estradas e veredas da Serra d’Ossa.
Hoje, passados 40 anos, não se vislumbra uma gota de água na Serra d'Ossa. As fontes secaram, o ar tornou-se áspero, doentio. A carga térmica sente-se - pesada, omnipresente. A mais famosa fonte – a do Convento da Serra, agora transformado em hotel -, local de romagem onde os locais se iam abastecer da “melhor água do mundo” (a mesma que servia para fabricar os famosíssimos ‘pirolitos’), está condenada a um fio. Um triste, angustiante e sintomático fio de água. Mas a serra está «verde», dirão alguns. Sim, o verde é rei. As árvores estão lá. Mas a serra ficou confinada a praticamente duas espécies: pinheiros bravos e eucaliptos.

Com o tempo, tudo se perde. Pouco ou nada se transforma, para melhor. E a culpa vai morrendo solteira - perdida na memória dos locais e das suas gentes.

terça-feira, agosto 05, 2003

OBSERVAÇÃOZINHA SACANA
Lê-se, no País Relativo: ”O verdadeiro Pulido Valente morreu hoje.”. Numa altura em que o «falso» Pulido Valente recupera de uma intervenção cirúrgica, serei o único a vislumbrar um mau gosto insidioso nesta observação? Há boquinhas que se dispensam.
FINALMENTE!
A direcção editorial do jornal Público ensaiou hoje um acto de contrição pelo facto de ter permitido a publicação de dois asquerosos artigos, de um tal Pedro Almeida, sobre o Holocausto. Na nota da direcção, pode ler-se: ”No balanço entre a nossa cultura de abertura e de promoção do debate democrático e a necessidade de não autorizar que se ultrapassem linhas que consideramos civilizacionais, assumimos hoje que a edição desses dois textos, sem qualquer explicação aos leitores, foi um erro pelo qual pedimos desculpa.”
Esta confissão só peca por ser tardia. E não apaga o que aconteceu. O Público – o melhor jornal diário português, um jornal que cresceu muito sob a direcção de José Manuel Fernandes – manchou as suas páginas com dois textos abjectos, que eu nunca esperei ver publicados na imprensa portuguesa. Embora a atitude dos responsáveis do jornal, ao reconhecer o erro, seja louvável e consonante com a seriedade a que o Público nos habituou, a verdade é que mesma não apaga o mal feito. Quantas pessoas, mal informadas, ignorantes ou tendencialmente preconceituosas, terão lido aqueles artigos e com eles terão concordado? A recusa em publicar esses textos não teria sido um acto de censura ou de impedimento do exercício da liberdade de expressão. Pelo contrário. Recusar a sua publicação teria sido um acto de sensatez e lucidez. Um acto de justiça. Mesmo em democracia e em liberdade, há limites. Tem de haver limites. Nem que sejam os limites impostos pelo bom senso.
É pena que, só agora, passados tantos meses, o Público tenha despertado para a questão. Apesar de tudo, congratulo-me com o acto de penitência. Ainda há gente fiel à verdade, que não alinha em nojentos exercícios revisionistas. Num mundo mergulhado no relativismo moral, onde nada mais é certo e onde tudo parece ser questionado, será sempre reconfortante ler o que se leu hoje no editorial do Público. Como diz o povo, mais vale tarde do que nunca.
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