AINDA PORTAS
Transcrevo, na integra, a referida crónica de Paulo Portas.
Quando eu tinha 12 anos
por Paulo Portas
“Lembro-me perfeitamente. Como se fosse hoje. Vasco Gonçalves apareceu na televisão mais despenteado do que nunca. Parecia sentado numa cadeira, mas na verdade deitava-se nela. Fazia gestos brutos e metralhava palavras de irritação geral com o mundo. Havia baba e raiva. Ele coçava-se e a câmara tremia. Punha e tirava os óculos ao compasso dos amores e dos ódios. Era uma cena de pura violência política no Estado à beira do colapso.
Eu tinha onze anos e espantei-me. Desde pequenino ouvia falar de política em casa, vagamente no colégio dos jesuítas, às vezes na missa. O meu pai achava que a vida faria sentido para mudar o mundo, a minha mãe suspeitava que a desordem do mundo podia dar cabo da nossa vida. Como é natural, eu não tinha opiniões, só impressões. Nem sabia de razões, só de emoções. A aparição do companheiro Vasco teve o efeito de me decidir. A imagem dele faz parte da minha memória do mal. Porque há sempre um momento, sei que Vasco Gonçalves teve a maior importância na minha iniciação militante. Se a primeira vez é importante, ele foi a minha primeira vez em política. Podia tê-lo seguido e ficaria do lado de lá da barricada: talvez fosse hoje um desses homens de esquerda que todos os dias matam a sombra, apagam o lastro e gozam o sistema. Mas não. Devo a Vasco Gonçalves o facto de ser uma criatura irremediavelmente de direita. Olhei para ele e fiquei contra-revolucionário. Daí para a frente, passei a desconfiar dos militares e a detestar o comunismo. Quanto aos militares, façam lá o que fizerem as fardas oficiais, quero-os longe. Quanto aos comunistas, levei tempo a digeri-los. Só agora consigo respeitar um camarada disposto a morrer camarada: é um facto mais digno e humanitário do que a massificação da dissidência. Não passou mais do que um mês. O Império desapareceu num ápice e Portugal tornou-se na pequena República de moda para fotógrafos, sociólogos e curiosos barbudos. O socialismo irreal nascia cá, por aqui se praticava o perfeito suicídio ocidental. Direita não havia: o último mito foi o monóculo de Spínola, homem que se celebrizou por ir à televisão anunciar que, estando o país a saque como estava, ia-se embora como foi. A burguesia tratou de salvar os haveres mais secretos e partiu. No dia em que eu fiz doze anos ganhei um direito que já não se usa: podia filiar-me num partido. Fui a correr pedir uma ficha no grémio juvenil dos laranjinhas. Como se fosse um escuteiro de Sá Carneiro. Vi por lá uma fotografia de Marx e trouxe para casa um livrinho de Bernstein. Não gostei do que vi, nem entendi o que li. Estranhei e por momentos hesitei. Mas não havia muitas opções. Atribuo a um conceito de educação nunca ter acreditado numa só palavra que Mário Soares dissesse. Enquanto as tias que sobravam iam de vison posto para os comícios dele – ‘se isto não é o povo, onde está o povo?’, perguntavam elas – eu achava-o leviano como não se pode ser e mentirolas como não se deve ser. Quanto a Freitas do Amaral, era difícil ouvi-lo nesse tempo. As vezes que o ouvi, parecia-me um bispo; e soava-me de menos, porque uma contra-revolução não se faz pedagogicamente.
Escolhi Sá Carneiro por uma irracionalidade lúcida; e por exclusão de partes. Devo a Sá Carneiro duas coisas: ser democrata e não gostar de política. Na idade que eu tinha e no estado em que o país estava, a tentação natural era tornar reaccionário. Mas Sá Carneiro, a quem segui sem me interrogar, jogava por fora do sistema e por dentro do regime. Marcou as fronteiras do que a direita portuguesa devia ser sempre e nunca mais foi: não há compromisso com a esquerda do sistema nem há compromisso à direita do regime. Era de uma solidão radical, facto dez vezes preferível ao consenso universal. Tinha sinais naturais de classe e por isso é que não parecia frequentável para a maioria dos amigos e inimigos. Conseguiu uma coligação raríssima: era um homem de dizer o que pensava e ao mesmo tempo era um político de pensar o que dizia. E coincidia. Morreu em campanha mas nunca se mortificou pelo Estado.
Nisso, era exemplar. O costume bem conservador e bem possidónio em Portugal é que a política se faz por sacrifício e com sofrimento. Sá Carneiro era um profissional, gostava de jogar e punha tudo em risco. Provou a toda a gente que a direita podia governar Portugal e provou a Portugal que a direita podia ser moderna.
Já passaram muitos anos e Sá Carneiro ainda é a última prova de ambas as teses. Pergunto-me se não foi uma ilusão. Como a águia real no país dos corvos.”
in Revista K (número 1, Outubro de 1990)
Tantas pistas por aqui espalhadas para o presente...
PS: o número 1 da revista K, contava com a participação de: Alberto Castro Nunes, António Cerveira Pinto, António Maria Braga, Francisco Sande e Castro, Graça Lobo, João Bénard da Costa, Manuel Hermínio Monteiro, Pedro Ayres de Magalhães, Pedro Rolo Duarte, Vasco Rosa, Agustina Bessa-Luís, Maria Filomena Molder, Leonardo Ferraz de Carvalho, Paulo Portas, Vasco Pulido Valente, Inês Gonçalves, Álvaro Rosendo, Augusto Brázio, entre outros. E, claro, o núcleo duro: Miguel Esteves Cardoso, Nuno Miguel Guedes, Carlos Quevedo e Rui Henriques Coimbra. Um luxo. Deixou muitas saudades.
Transcrevo, na integra, a referida crónica de Paulo Portas.
Quando eu tinha 12 anos
por Paulo Portas
“Lembro-me perfeitamente. Como se fosse hoje. Vasco Gonçalves apareceu na televisão mais despenteado do que nunca. Parecia sentado numa cadeira, mas na verdade deitava-se nela. Fazia gestos brutos e metralhava palavras de irritação geral com o mundo. Havia baba e raiva. Ele coçava-se e a câmara tremia. Punha e tirava os óculos ao compasso dos amores e dos ódios. Era uma cena de pura violência política no Estado à beira do colapso.
Eu tinha onze anos e espantei-me. Desde pequenino ouvia falar de política em casa, vagamente no colégio dos jesuítas, às vezes na missa. O meu pai achava que a vida faria sentido para mudar o mundo, a minha mãe suspeitava que a desordem do mundo podia dar cabo da nossa vida. Como é natural, eu não tinha opiniões, só impressões. Nem sabia de razões, só de emoções. A aparição do companheiro Vasco teve o efeito de me decidir. A imagem dele faz parte da minha memória do mal. Porque há sempre um momento, sei que Vasco Gonçalves teve a maior importância na minha iniciação militante. Se a primeira vez é importante, ele foi a minha primeira vez em política. Podia tê-lo seguido e ficaria do lado de lá da barricada: talvez fosse hoje um desses homens de esquerda que todos os dias matam a sombra, apagam o lastro e gozam o sistema. Mas não. Devo a Vasco Gonçalves o facto de ser uma criatura irremediavelmente de direita. Olhei para ele e fiquei contra-revolucionário. Daí para a frente, passei a desconfiar dos militares e a detestar o comunismo. Quanto aos militares, façam lá o que fizerem as fardas oficiais, quero-os longe. Quanto aos comunistas, levei tempo a digeri-los. Só agora consigo respeitar um camarada disposto a morrer camarada: é um facto mais digno e humanitário do que a massificação da dissidência. Não passou mais do que um mês. O Império desapareceu num ápice e Portugal tornou-se na pequena República de moda para fotógrafos, sociólogos e curiosos barbudos. O socialismo irreal nascia cá, por aqui se praticava o perfeito suicídio ocidental. Direita não havia: o último mito foi o monóculo de Spínola, homem que se celebrizou por ir à televisão anunciar que, estando o país a saque como estava, ia-se embora como foi. A burguesia tratou de salvar os haveres mais secretos e partiu. No dia em que eu fiz doze anos ganhei um direito que já não se usa: podia filiar-me num partido. Fui a correr pedir uma ficha no grémio juvenil dos laranjinhas. Como se fosse um escuteiro de Sá Carneiro. Vi por lá uma fotografia de Marx e trouxe para casa um livrinho de Bernstein. Não gostei do que vi, nem entendi o que li. Estranhei e por momentos hesitei. Mas não havia muitas opções. Atribuo a um conceito de educação nunca ter acreditado numa só palavra que Mário Soares dissesse. Enquanto as tias que sobravam iam de vison posto para os comícios dele – ‘se isto não é o povo, onde está o povo?’, perguntavam elas – eu achava-o leviano como não se pode ser e mentirolas como não se deve ser. Quanto a Freitas do Amaral, era difícil ouvi-lo nesse tempo. As vezes que o ouvi, parecia-me um bispo; e soava-me de menos, porque uma contra-revolução não se faz pedagogicamente.
Escolhi Sá Carneiro por uma irracionalidade lúcida; e por exclusão de partes. Devo a Sá Carneiro duas coisas: ser democrata e não gostar de política. Na idade que eu tinha e no estado em que o país estava, a tentação natural era tornar reaccionário. Mas Sá Carneiro, a quem segui sem me interrogar, jogava por fora do sistema e por dentro do regime. Marcou as fronteiras do que a direita portuguesa devia ser sempre e nunca mais foi: não há compromisso com a esquerda do sistema nem há compromisso à direita do regime. Era de uma solidão radical, facto dez vezes preferível ao consenso universal. Tinha sinais naturais de classe e por isso é que não parecia frequentável para a maioria dos amigos e inimigos. Conseguiu uma coligação raríssima: era um homem de dizer o que pensava e ao mesmo tempo era um político de pensar o que dizia. E coincidia. Morreu em campanha mas nunca se mortificou pelo Estado.
Nisso, era exemplar. O costume bem conservador e bem possidónio em Portugal é que a política se faz por sacrifício e com sofrimento. Sá Carneiro era um profissional, gostava de jogar e punha tudo em risco. Provou a toda a gente que a direita podia governar Portugal e provou a Portugal que a direita podia ser moderna.
Já passaram muitos anos e Sá Carneiro ainda é a última prova de ambas as teses. Pergunto-me se não foi uma ilusão. Como a águia real no país dos corvos.”
in Revista K (número 1, Outubro de 1990)
Tantas pistas por aqui espalhadas para o presente...
PS: o número 1 da revista K, contava com a participação de: Alberto Castro Nunes, António Cerveira Pinto, António Maria Braga, Francisco Sande e Castro, Graça Lobo, João Bénard da Costa, Manuel Hermínio Monteiro, Pedro Ayres de Magalhães, Pedro Rolo Duarte, Vasco Rosa, Agustina Bessa-Luís, Maria Filomena Molder, Leonardo Ferraz de Carvalho, Paulo Portas, Vasco Pulido Valente, Inês Gonçalves, Álvaro Rosendo, Augusto Brázio, entre outros. E, claro, o núcleo duro: Miguel Esteves Cardoso, Nuno Miguel Guedes, Carlos Quevedo e Rui Henriques Coimbra. Um luxo. Deixou muitas saudades.
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