O MacGuffin

sexta-feira, agosto 08, 2003

AFUNILAMENTO MENTAL
O Alberto que me perdoe a eventual mas acidental apropriação de temas, mas sinto que devo comentar o lamento do Sr. Sebastião Lima Rego.
A carta deste senhor, encabeçada por um enigmático “A Morte de ‘Uma Certa Ideia da França’”, é o exemplo acabado de como o preconceito e a ignorância andam, muitas vezes, de mãos dadas. Desgraçadamente, o texto não passa de um chorrilho de ideias fixas, encharcado indelevelmente pelo mais puro preconceito. Desde as referências aos “boys”(sic), passando pela “globalização anglossaxonizante”(sic) e acabando no “afunilamento cultural americano”(sic), tudo soa a intolerância, ressabiamento, superstição, ignorância. Lima Rego chega mesmo a delirar quando escreve: ”A França não é um país qualquer, a França tem uma responsabilidade, a França tem a Revolução Francesa, tem Descartes, tem Voltaire, tem Stendhal, tem Proust, tem Sartre, a França, que raio, tem até o Maio de 68!”. Patético.
Para Lima Rego a questão é claríssima: a cultura anglo-saxónica tem vindo a conspurcar a «boa» cultura francesa e a alienar as incautas mentes europeias. A anunciada morte de uma livraria francófila – em si mesma um sinal dessa corrupção – serve para, mais uma vez, voltar a denunciar o flagelo que nos é infligido. O filme, da autoria de Lima Rego, conta com um vilão (os EUA e a língua inglesa), duas vítimas (a França e a Europa) e um conjunto difuso de heróis (um grupo de iluminados a que Lima Rego obviamente pertence, que trava uma dura luta pela libertação da humanidade contra o jugo anglo-saxónico).
Por sua conta e risco, Lima Rego parece ter passado, irremediavelmente, ao lado de um universo de escritores, filósofos, músicos, pintores, cineastas, dramaturgos, jornalistas, investigadores e cientistas, responsáveis pelas mais belas páginas do grande livro da História da humanidade - só porque pertenceram, ou pertencem, à «cultura» anglo-saxónica.
Lima Rego parece querer insinuar que os europeus – onde se incluem os portugueses – só consomem os produtos da cultura anglo-saxónica porque uma mão invisível, comandada pelos interesses americanos, os obriga a tal sacrifício. Porque, para Lima Rego, nada mais se produz no mundo anglo-saxónico do que a porcaria da ‘fast food’, o cinema-para-idiota-ver, a literatura de cordel, o jornalismo sensacionalista e parcial, as séries de televisão estupidificantes, etc. etc. etc. No lado oposto encontra-se a França, onde, claro está, só se produz boa literatura, bom cinema, bom teatro, boa televisão, bom jornalismo. Um espanto.
Eu, ao senhor Lima Rego, aconselhava-o a visitar os EUA e Inglaterra. Aconselhava-o a conhecer as universidades americanas. Aconselhava-o a pegar em jornais e revistas anglo-saxónicas (o New York Times, a Vanity Fair, a New Yorker, a TLS e a Literary Review). Aconselhava-o a ler Philip Roth ou Saul Bellow. Aconselhava-o a ver umas quantas séries televisivas produzidas pela HBO. Obrigava-o a descobrir o cinema independente americano e a descobrir quatro ou cinco realizadores da ímpia Hollywood. Talvez um dia ele pudesse reler o que escreveu e conseguisse pensar: “tão absurdo que eu era”.

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