O MacGuffin

segunda-feira, agosto 25, 2003

A PIANISTA
Revi, este fim-de-semana, a “Pianista” de Michael Haneke. Tinha adquirido o DVD no principio do ano mas, como é habitual em mim, ficou esquecido, no meio da confusão. É sempre assim: pareço gostar de amadurecer os livros, filmes e discos que vou adquirindo, a um ritmo cada vez menor.

Sobre a “Pianista” já muita tinta foi gasta. Em primeiro ligar, é um filme de Haneke - o que significa uma de duas coisas: ou se gosta ou se detesta. Com Haneke parece não haver lugar para ‘rodriguinhos’ ou ‘nins’. Pela minha parte, considero-o uma obra maior do cinema contemporâneo. Passo a explicar porquê.

O argumento da Pianista pode resumir-se da seguinte forma: professora de piano respeitável e austera (na casa dos quarenta), vive ainda sob a alçada de uma tutela maternal opressiva, moralista e doentia (ela ainda dorme com a mãe), tendo desenvolvido, com os anos, uma série de patologias do foro mental que a conduzem à auto-mutilação genital e a comportamentos sexuais desviantes e doentios. Freud meets Sade and Classical Music.
Mas o filme é bem mais do que isso.
Há, no contraste entre o belo (a música e a figura de Erika), a simplicidade monocromática do teclado, a racionalidade do jogo de dedos da pianista, o obsceno e o visceral, algo que nos prende e perturba. O grande trunfo do filme de Haneke está na forma absolutamente contida como retrata uma mulher dividida entre dois mundos completamente antagónicos, oscilando, conforme as horas do dia, entre o patético, o belo, o execrável, a comiseração, o desejo ordinário e vulgar. Huppert está sublime e deixa-nos completamente hipnotizados.
Depois, a figura do rapaz – do jovem e inocente aprendiz. Figura que, a certa altura, contrariamente ao que desejaríamos, é violentamente banalizada. O anti-amor de Erika, embora de natureza diferente, passa também a estar presente no rapaz. A construção romantizada do rapaz sensível é, a partir de certa altura, totalmente subvertida pela postura bestial, grosseira e dúbia deste, à medida que Erika tenta explorar, comandando (como falsa submissa), as suas fantasias sado-masoquistas mais sombrias. A figura de Walter a «apanhar papéis», perante o turbilhão sentimental de Erika (cujo comportamento passivo-agressivo é entremeado por Schubert), serve também para enfatizar o choque entre uma inocência tardia e uma imaturidade que é ainda fruto do desejo carnal da posse – neste caso não correspondida.
“A Pianista” não é um filme «fácil». É um filme que caminha sempre sobre o fio da navalha. Parece faltar-lhe a tal “elipse cinematográfica” (que em tempos discuti com a minha dearest friend Zazie). Ficam muitas dúvidas no ar. Explicações a dar. E aquele final, resolve alguma coisa? Nada. Mas o que seria de Tchekhov ou de Carver, se fosse esse o critério?
Por último, o grande trunfo do filme passa, também, pelo olhar de Erika. Por detrás daquele declínio moral e da iniquidade cultural da sua triste existência; por detrás do facto de Erika ter perdido o contacto com o «humano» e de ser uma impotente do sentimento; existe no seu olhar - e a cena final é disso uma prova - um constante grito mudo por ajuda, como se ela continuasse disponível para ser resgatada da sombra. Existe uma integridade formal que é feroz e pulsa no interior de Erika. E Huppert é contundente e persuasiva nessa tarefa.
O filme de Haneke, longe de ser uma “obra-prima”, é um excelente, provocador e negro filme sobre a face mais perversa, marginal e extrema do amor. Levado à cena por actores e actrizes em estado de graça. Nos dias de hoje, pouco mais se pode pedir.


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