O MacGuffin: janeiro 2004

sábado, janeiro 31, 2004

TENHAM MEDO, TENHAM MUITO MEDO
Como eles temem a democracia. (via Miniscente)
I REST MY CASE!
No Meridianos apelida-se este blog de «facho» e concede-se ao seu autor a designação de "anti-surfista" (vá-se lá saber porquê). A malta da esquerda adora rótulos, epítetos definitivos e umas suaves injurias à mistura. Parece que não gostaram do link aqui 'postado' sobre o alegado suborno de que o Sr. Chirac terá sido alvo, por parte do Sr. Saddam. AC considera que quem 'posta' uma notícia dessas só pode ser adepto de cabalas e conspirações. Mais: deixa no ar a ideia de que, tendo a notícia partido do Washington Times (uma publicação «facho»), só pode ser "conversa de porteira". Nada como o Le Monde, evidentemente. O AC lá sabe.
EXPLICAÇÕES PEDIDAS, EXPLICAÇÕES DADAS
No Cruzes Canhoto pedem-se explicações aos blogues pró-americanos relativamente a uma recente notícia ("EUA libertam três menores detidos em Guantanamo"). Assumindo sem qualquer problema a qualidade de pró-americano, relembro apenas o que escrevi em 11 de Abril de 2003, neste blogue:

"Só uma pessoa insensível e cega pode deixar de criticar a forma como se cometeram excessos e violaram regras, no decurso do aprisionamento de terroristas da Al Qaeda e de militantes Talibans [em Guantanamo] (nem se sabe muito bem em que estatuto ali estão)."

Está respondido?

sexta-feira, janeiro 30, 2004

NÃO!
Camomila, caro JMF. Camomila para acalmar. Quanto ao Saussure, outra coisa não seria de esperar do Terras do Nunca... Por último: "como é que um fulano destes tem tão bom gosto musical"?. Vislumbrarei, por aí, tímida mas perniciosamente, a velhinha tese de que fulanos como moi même - leia-se: de direita, conservadores, anglófilos etc. - não podem ter gostos musicais razoáveis? Cala-te MacGuffin, isso vai dar pano para mangas.

PS. As minhas desculpas ao Cláudio por mais esta miscigenação. Atenuante: desta vez foi em francês.

PPS: E não é que o Cláudio escreveu "cardio-fitness"!?
O INDIGNADO, O HOMEM DOS PERDIGOTOS, O ARTISTA DE CIRCO DECADENTE,
O O HOMEM QUE SÓ DIZ MAL DE TODA A GENTE, ESTÁ DE VOLTA
(Graças a Deus, né?)


"Candidatos"
por Vasco Pulido Valente

"A esquerda europeia odeia Bush como nunca odiou um Presidente americano; e a esquerda americana também o odeia - talvez mais do que odiava Reagan. Há mesmo por aí muito português modesto que acha uma indecência não poder, com o seu voto, remover o homem. Quando apareceu Dean, vociferando contra a guerra, e com ele, alguns milhares de maníacos da Internet, a brigada anti-Bush julgou que a salvação chegara. Bastaram as «primárias» do Iowa (no fundo, uma reunião informal do partido) para desfazer esta consoladora esperança. Quem assistiu, até às quatro da manhã, ao frenesim do Iowa e do New Hampshire ficou a perceber porquê: a guerra no Iraque foi ignorada. Não se falou pura e simplesmente no assunto. O desinteresse do eleitorado não encorajava a especulação geoestratégica, e o próprio Dean reconheceu, já tarde, que tinha de inventar outra conversa. O programa «Democrático» é agora o programa populista clássico: contra o privilégio, contra os políticos, contra o Estado e contra o capitalismo (que «deslocaliza» emprego); e a favor dos «pequeninos», dos trabalhadores, do cidadão anónimo. À defesa disto, chamam os peritos lá da terra, «elegibilidade»; e a um ataque ao Presidente por causa do Iraque uma «catástrofe». De qualquer maneira, nenhum dos candidatos dá ideia de ser elegível. No Iowa, Dean gritou e saltou como um verdadeiro alucinado: precisa de uma camisa-de-forças, não precisa de Washington. Kerry saiu ontem de um filme de terror, com um sorrisinho de gelar o sangue e dentes de vampiro. John Edwards é um galã simpático com gel no cérebro. E Wesley Clark, como bom militar, oscila entre a gabarolice e a parlapatice. Se alguém espera deste belo grupo a humilhação de Bush, a paz no mundo e a ordem internacional dos «justos», tem muito que esperar."
in Diário de Notícias, 30/01/2004
AVASSALADOR?
O André Figueiredo ironiza, apelidando o meu estilo de “avassalador”. Para quem me apelida – sem paralelo - de “reaccionário”, “demagogo” e insinua que eu sou indiferente (desprezarei?) em relação aos que decidem fazer greve, não está nada mal. Diz, ainda, que as minhas perguntas (V. post É a greve, segunda parte) são retóricas. O André ainda não percebeu que não se trata de uma questão de aceitar, ou não, a greve. Eu aceito tudo. Greves, petições, etc. Respeito o principio. Aceito a liberdade de reivindicação. Acho que os Sindicatos fazem parte do «jogo». Desempenham uma função de informação, formação, aconselhamento que importa preservar. Recuso-me, contudo, a aceitar, ou a concordar, de forma cega e comformista, com todas as razões e com todas as greves. Este ponto nada tem de retórico: até o Winnie The Pooh o percebe. Não se trata de relativizar os motivos ou os fins de uma greve. Trata-se, tão só, de perceber que nem tudo se justifica. É verdade: nem tudo se justifica. Até um grevista ou um Sindicato tem de saber respeitar as proporções e medir até que ponto podem ser ridículas as suas opções. O que é que um sindicato, pela mão dos grevistas no local, pretende provar quando afixa, dois dias antes, um cartaz numa escola primária incitando à adesão e, ao mesmo tempo, pretende deliberadamente baralhar os pais das crianças (de 6 anos), sonegando informação para que, no dia seguinte, estes batam com o nariz na porta da escola às 8h, em dias de intempérie? O André achará isso razoável? Eficaz? Uma forma de luta? Justificar-se-á? Em que é que isso ajuda a perceber os motivos da greve? Não perceberá que estas jogadas tipo «chico-esperto» provocam o efeito contrário ao pretendido? É assim que pretendem «compreensão»?
Por outro lado, assiste-me o direito de não compreender ou aceitar certos protestos. Ou não? Repito: há sindicalistas que continuam a fazer uso de um discurso anacrónico, demagógico, irrealista, repleto de invectivas contra o «patronato» ou o «capital», de «jornadas de luta», etc., por vezes exigindo o que não é exequível. Aos sindicalistas também se exige seriedade e responsabilidade – tal como ao patrão ou à administração. A posição dos sindicatos pode facilmente ser contaminada pela demagogia e por um apelo fácil a uma cumplicidade barata (é essa a diferença entre um homem chamado João Proença e outro chamado Carvalho da Silva). Qual é o trabalhador que aceita, de bom grado, uma diminuição de regalias ou um aumento que fica aquém das suas expectativas? Qual é o trabalhador que não se sente compelido a concordar e a apoiar quem, em seu nome, reivindica mais e mais e mais? Os sindicatos cumprem o seu papel, mas o seu papel tem de ser razoável, credível, realista. Depois, existe uma questão concreta que não pode ser escamoteada: existe uma diferença de estatuto entre os que trabalham na função pública (o palco privilegiado das movimentações sindicais) e os que trabalham no sector privado, com desvantagem para estes. Só uma pessoa insensível ou desconhecedora do mercado de trabalho não percebe isso. O que os Sindicatos muitas vezes reclamam é a perpetuação de uma descriminação positiva sobre os funcionários públicos, que passa por situações de privilégio insustentáveis (passando, inclusivamente, por uma sensação de perenidade no vínculo sem paralelo). Existe uma imensa massa anónima de trabalhadores que não se ouvem. Que aceitam, muitas vezes contra a sua vontade mas compreendendo os condicionalismos de uma conjuntura económica desfavorável, aumentos inferiores aos do sector público. Porque sabem o que custa a perda de um emprego, porque conhecem a fragilidade das organizações onde trabalham, porque aceitam negociar com o empregador contrapartidas doutro tipo, diferidas no tempo, e porque cada vez mais observam a relação empregador/empregado como uma relação de equipa e não de força. Não, não estou a defender um nivelamento por baixo. Estou antes a falar de situações de privilégio que precisam de ser limadas. Em suma: se fui avassalador, demagógico ou reaccionário, desculpe lá, caro André.

PS: só mais uma coisa: os professores não são os bons da fita. O pessoal auxiliar não é o mau da fita. Não sou adepto de maniqueísmos. Por vezes discordo com os professores, por vezes concordo com o pessoal auxiliar. Por vezes discordo das opções do Eng. Santos no Sporting. Outras vezes não. Por vezes divirto-me com os "não é" do Ruben de Carvalho. Outras vezes detesto-os. Por vezes desiludo-me com o que escrevo. Outras vezes não. E por aí fora.

quinta-feira, janeiro 29, 2004

PATCHWORK



ESTA NOITE...

A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO PODER DE ENCAIXE
JMF comenta a minha posta sobre o Vasco Pulido Valente. Utiliza, para o efeito, uma afirmação de mau gosto. Não faz mal. A urbanidade e a subtileza podem nem sempre habitar as Terras do Nunca, mas está visto que a perspicácia e a clarividência são presença assídua. Mais uma vez, JMF topou a natureza deste blogue. Confesso, pejoso: eu ando nisto para alinhar com os senhores que escrevem nos jornais. Por exemplo: com os JPC’s do seu descontentamento. Passo a vida a inaugurar alamedas, ruas e avenidas com o nome de quem venero, obviamente de forma cega, seguidista, acrítica. No fundo, o meu blogue não passa de um chorrilho de «indignações», por um lado, e de reverências amorfas, por outro. Tudo a anos-luz da ponderação, sofisticação e originalidade da pena de JMF: o homem que, quando lhe convém, generaliza. Mas quando as generalizações – quase sempre injustas para uns, mas muitas vezes legítimas e úteis – o atingem, torce o nariz, aproveitando para atacar e apontar o dedo aos outros. Eu compreendo-o. O ataque é a melhor defesa. Parabéns, João. E obrigado pela boquinha. Exquisite.

PS: Afinal, a boca era para o outro. O VPV. Pois. A coisa prestava-se a confusões... Olha aí o Stephen Merritt outra vez: "I'm Absolutely Cuckoo!"...
PARA QUE CONSTE
Amigo Vasco: eu escolhi uma moldura em tons de preto. A minha cor favorita.

quarta-feira, janeiro 28, 2004

MELHOR NOTÍCIA DO ANO
ou Como Uma Bofetada de Realismo e Desassombramento (Só) Nos Pode Fazer Bem

Já tinha sido avisado por um amigo. Agora, outro amigo faz referência à notícia: Vasco Pulido Valente regressa às páginas dos jornais, no DN da próxima sexta-feira.
Transcrevendo do blogue do Ricardo, eis um excerto da sua mais recente entrevista:

NM-"Fiz uma pesquisa na Internet à procura de opiniões sobre si, e..."
VPV-"Posso dizer uma coisa? As pessoas que escrevem nos blogues, como muitas das que escrevem nos jornais, como as que falam na televisão, dão aquilo que elas julgam que serão opiniões. Políticos falhados, jornalistas frustrados e tanta outra gente completamente iletrada, que não conhece os assuntos, e podiam dizer aquilo, ou o contrário, que era igual ao litro. Mesmo a maior parte dos cronistas são ignorantes, e o que escrevem são crónicas desnecessárias ou desabafos, aquilo a que chamo jornalismo da indignação. Mas faz muito sucesso, porque como as indignações são básicas, há muita gente a partilhá-las, e a ficar feliz por o senhor X, que até escreve no jornal, pensar como elas."

O Vasco está de volta. Igual a sim mesmo.

UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
N’ O Quinto dos Impérios, FMS escreveu:

”Aparte uma ou outra nota esporádica do Alberto e do Carlos, não tenho visto na blogosfera melómana a homenagem devida ao génio de Stephin Merritt(…)”

Para que deixem de ser “esporádicas”, aqui me penitencio, transcrevendo uma das minhas favoritas de entre as 69:

Epitaph for My Heart
por Stephin Merritt

“Caution: to prevent electric shock
do not remove cover
No user-serviceable parts inside
Refer servicing to qualified
Service personnel”

Let this be the epitaph for my heart
Cupid put too much poison in the dart
This is the epitaph for my heart
Because it’s gone, gone, gone
And life goes on and on and on
And death goes on, world without end
And you’re not my friend
Who will mourn the passing of my heart
Will its little droppings
Climb the pop chart
Who’ll take its ashes and, singing, fling
Them from the top of the Brill Building
And life goes on, and dawn, and dawn
And death goes on, world without end
And you’re not my friend.

in “69 Love Songs”


terça-feira, janeiro 27, 2004

O ABORTO. ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES
(actualizado)
Criou grande celeuma (ok, estou a exagerar) a minha afirmação de que era favorável à descriminalização do aborto, embora contrário à sua despenalização. O assunto foi comentado aqui e aqui, por exemplo. À conta dessa afirmação recebi, também, algumas missivas algo inflamadas (a inflamação é reacção recorrente), no meio de outras bem mais interessantes. Em suma: levei porrada de ambos os lados da barricada – se é que podemos colocar a questão recorrendo a esta terminologia marcial. Seja como for, cumpre-me colocar os pontos nos is. Pela última vez.

Para que conste, condeno a prática do aborto. Por princípio, sou contra a sua legalização. Não posso aceitar que o aborto venha a ser banalizado, tornando-se a saída mais fácil para a desresponsabilização de uns e o facilitismo de outros. Assusta-me a leviandade dos jovens nesta matéria, olhando o aborto como um mero método contraceptivo de último recurso. Ou seja, como tábua de salvação face à desatenção, ao facilitismo e à falta de responsabilidade. Contudo, pior ainda é a irresponsabilidade dos adultos na educação dos seus filhos e na sua própria conduta. Irrita-me a forma como em Portugal se tenta mascarar a questão essencial – a da gravidez não desejada - optando-se por uma solução de recurso a jusante. Ninguém parece interessado em, primeiro que tudo, minimizar o problema por via das únicas soluções duradouras e inócuas do ponto de vista moral (planeamento familiar, diálogo e educação). Poder-me-ão dizer: uma coisa não invalida a outra. E eu respondo: viveremos nós na Suécia? Não viveremos nós num país onde se usa e abusa do recurso a soluções de remendo, relegando as verdadeiras soluções - que passam pela prevenção - para as calendas gregas?

Sei que a prática do aborto nunca será erradicada. Sei que será minimizada sobretudo por via da educação sexual, do planeamento familiar, da pregação moral e da manutenção de um canal aberto de comunicação entre pais e filhos. E entre adultos. Mas também sou dos que acreditam que a lei tem um poder dissuasor que não pode ser menosprezado. Ou seja, a existência de uma lei que proíba o aborto desencoraja a sua prática. Ao colocar sobre essa questão um estigma de infracção/punição, está-se a enviar um sinal inequívoco para a sociedade: é errado abortar. Neste contexto, há quem consiga separar a questão legal da questão moral. Há quem afirme, e com razão, que “moral e lei são planos diferentes”. Mas eu não posso esquecer que são planos que se entrecruzam. Não são dimensões estanques. A lei (latu sensu) reflecte invariavelmente preceitos de ordem moral. Poderá a lei ser boa e útil menosprezando qualquer tipo de aspiração moral correcta?

Mas para quê, então, uma lei que ninguém respeita? Para quê proibir uma prática que, nalguns casos, é levada a cabo por razões moralmente válidas? Está assim justificada a sua legalização, descriminalização e/ou despenalização? A meu ver não. Recorro a um exemplo retórico: há quem roube por razões moralmente aceitáveis – de subsistência, por exemplo; há quem infrinja o código da estrada por motivos justificados – o limite de velocidade em caso de emergência médica; há, ainda, quem fuja ao fisco – por exemplo para não despedir pessoal ou para poder pagar ordenados. Mas as regras proibitivas subsistem. O plano moral cruza-se com o legal, obrigando a que a lei perdure no tempo e reflicta a ordem moral vigente. Esta conclusão desmonta um dos argumentos dos que são favoráveis à despenalização do aborto. Porque mesmo que se identifiquem razões válidas para justificar o crime ou a infracção, isso não implica que se tenha de aligeirar a lei ou simplesmente suprimi-la. Do ponto de vista do «confronto» legalidade vs moralidade, a grande questão que se deve colocar é esta: a sociedade portuguesa deve, ou pode, continuar a categorizar a prática do aborto (sendo certo que, à partida, ela é condenável) como um crime? Dito de outra forma: será o aborto moralmente tão condenável que se deve tipificar legalmente como crime? O sinal a ser enviado à sociedade, no que respeita à condenação da prática do aborto, deve ser assistido por uma norma legal que puna com pena de prisão quem o pratique?

Nesta matéria, não alinho em fundamentalismos. Da mesma forma que detesto o fundamentalismo “na-minha-barriguinha-mando-eu”, detesto o fundamentalismo “mulher-que-aborta-deve-ser-presa” ou “mulher-que-engravide-mesmo-por-violação-não-pode-abortar”. Entendo que há casos em que se justifica o aborto - já, aliás, contemplados na lei. Por outro lado, como já afirmei noutras ocasiões, sou solidário com algumas mulheres e não posso estar ao lado dos "idiotas da objectividade" (perdoar-me-ão a expressão) que as pretendem sumariamente ver presas. Assim como não posso concordar com o aborto numa fase avançada. Existe, para mim, um point of no return nos casos ditos «normais». Mas a questão fundamental que sustenta a minha posição parte de um exercício de suposição.

Tenho uma filha com 7 anos. No seguimento do que tenho sido como pai (com todos os defeitos e qualidades), pretendo continuar a educá-la convenientemente (ou o melhor que sei). Com o avançar da idade dos porquês, pretendo informá-la de tudo. Pretendo prepará-la para a vida, tal qual ela é. Mas coloco, muitas vezes, esta questão: quem me garante que, mesmo com toda a informação, formação, compreensão, etc.; mesmo com todo o tipo de avisos que lhe possam ser enviados e por ela assimilados; quem me garante, dizia, que um dia ela não seja alvo de uma gravidez indesejada? Então, coloco as seguintes hipóteses: imagina que a tua filha aparece grávida aos quinze ou aos dezasseis anos; imagina que ela não quer ter esse bebé; imagina que o namorado também não quer assumir a paternidade; ou seja, imagina que a tua filha, aos quinze ou dezasseis anos, se vê na circunstância de ter de decidir – pela sua cabeça e com a ajuda dos pais - o destino de uma gravidez para a qual ela não está minimamente preparada e que porá em risco projectos legítimos de uma jovem de quinze anos. Estarei assim tão seguro e convicto ao ponto de permitir que a sua juventude seja «ceifada» por culpa de uma gravidez indesejada? Serei capaz de a «obrigar», mesmo contra a sua vontade, a ter esse filho? Serei capaz de permitir o recurso ao aborto? A todas estas questões, respondo: não sei. A verdade é que, hoje, não sei se permitiria o aborto, não sei se uma gravidez indesejada na juventude “ceifaria” alguma coisa, não sei se esse filho seria uma tragédia ou, pelo contrário, uma dádiva. Sinceramente, não sei. Mas, se permitisse o aborto (e eu coloco essa hipótese), a minha filha deveria ir presa? Aceitaria e consideraria essa punição como razoável, apropriada, proporcional?
Perceberão agora porque é que, na questão do aborto, não consigo deixar de me contradizer? Perceberão agora porque é que, ainda que inconsistentemente, sou contrário à despenalização e, ao mesmo tempo, não consigo apoiar a criminalização?

PS: O João Noronha, sempre rápido e atento, já comentou este 'post', escrevendo, a propósito da expressão "idiotas da objectividade": "Vou agora retirar o barrete para poder continuar a ler o post" e "nunca ninguém falou em prisões sumárias". Se assim é, caro João, não tens de enfiar o barrete. Aliás, a referência aos "idiotas da objectividade" não foi colocada a pensar no Valete. Quanto ao "ninguém falou", bom... sabes perfeitamente que há quem vá por aí. Por último, escreves: "O Contra-a-Corrente é incoerente porque o amor que sente pela sua filha é superior ao amor que sente pelas crianças não nascidas." Sim, nesta matéria sou incoerente. Contradigo-me. Meto os pés pelas mãos. Defeito meu. Mas atrevo-me a colocar a questão: a partir de quando podemos falar em "crianças não nascidas"?
É A GREVE, SEGUNDA PARTE
O André Figueiredo escreveu-me:

“Com o devido respeito - que é algum, principalmente por causa dos óptimos
discos que comprei depois de ler o seu blog - deixe-me dizer-lhe que o seu
post sobre a greve é do mais reaccionário e demagogo que já por aí se
escreveu.
As greves são mesmo assim... se não, não eram greves... Cumprimentos.”

“São mesmo assim”… Significa isso, caro André, que a greve é intocável? A greve é uma vaquinha sagrada, que a carneirada tem de aceitar pacífica e prazenteiramente? A greve é um exercício que deverá sempre infligir o maior incomodo sob pena de perder o seu simbolismo e eficácia? Significa isso que apontar-lhe defeitos quanto à forma é sinal de reaccionarismo? Apontar-lhe defeitos quanto ao conteúdo é sinal de demagogia? A greve, como forma de «luta» e tal como está a ser conduzida por certos sindicalistas, não é sinónimo de anacronismo? Esse reaccionarismo de que fala não será antes visível no jargão e na postura de certos sindicalistas? Por último: as greves serão todas justas? O “a greve é mesmo assim” justifica tudo?

Aponte aí, caro André: de cada vez que tiver de acordar a minha filha às 6:45 minutos para, uma hora e quinze minutos depois, com os pés todos molhados e os ossos enregelados, batermos com os narizes no portão da escola só porque alguém decidiu não avisar os pais no dia anterior e decidiu cortar os telefones da escola para evitar esclarecimentos de última hora - “as greves são mesmo assim” -, eu permanecerei militantemente reaccionário, demagogo, __________, ___________ (preencha com os epítetos que lhe derem mais jeito). Com o devido respeito. Um abraço, escreva sempre.

segunda-feira, janeiro 26, 2004

É A GREVE
Na escola que a minha filha frequenta – a E. B. n.º 7 de Évora – o ritual que antecede um dia de greve é, em sim mesmo, um espectáculo. Nas vésperas dos heróicos “dias de luta”, que antecedem geralmente um fim-de-semana ou um feriado (curioso, não é?), o cenário é de guerra. De nervos, entenda-se. Os pais das criancinhas que frequentam a escola no horário da manhã (grupo ao qual pertenço) aguardam, como sempre, o toque de saída. Mas, nestes dias, aguardam, também, um sinal de magnanimidade, de misericórdia por parte dos iminentes grevistas. Pretendem, apenas, uma pequeníssima informação: há greve ou não há greve? Os professores são, regra geral, expeditos a transmitir a sua vontade. Mas a sua vontade não é para ali chamada. O problema não reside aí. Os professores podem não querer fazer greve – normalmente não querem – mas o pessoal auxiliar tem as chavinhas dos cadeados, das portas e portões. Controlam a logística e os aquartelamentos. E fazem questão de o demonstrar, sorrindo, maliciosamente, na direcção dos pais. São dias em grande: por umas horas, eles têm o poder. E greve que é greve tem de irritar, incomodar, tornar mais difícil a vida dos outros. O pessoal auxiliar segue à risca a voz de comando. Disciplina é a palavra chave. Eles sabem que, sem a presença deles, não há escola para ninguém. Eles têm a faca e o queijo nas mãos. Posicionados num dos lados da barricada, o pessoal auxiliar cruza os braços. Envergam um olhar e uma fácies que parecem dizer: “Com que então queriam saber se amanhã poderiam ficar na caminha até mais tarde? Não queriam mais nada, não?” Os pais, por seu lado, de semblante angustiado, querem apenas saber se terão de acordar os seus filhos duas horas antes (por volta das 6:45 da matina), para os levar à escola, ou se, pelo contrário, terão de organizar as suas vidas no sentido contrário. Mas não vale a pena. Ninguém se descose. Ordens do sindicato.
CRÓNICA SOCIAL I
Sexta-feira, dia 23. Hora de almoço. Restaurante Mercado do Peixe, Monsanto. A deglutir peixinhos estão: Joaquim Letria, Julião Sarmento, um conhecido futebolista, dezenas de yuppies e o Sr. Bibi. Não o da Casa Pia. O do Benfica, construtor civil e dono do estabelecimento. A reter: como um bom peixinho derruba barreiras culturais, sociais, económicas, estéticas etc. etc. etc.
CRÓNICA SOCIAL II
Sábado, dia 24. Dirijo-me à Tabacaria do Sr. Ferrão para comprar o Independente. Aproveito para comprar o Expresso. O Sr. Ferrão mete-se comigo: “agora já compra o Expresso? Ena, ena.” Saio, acabrunhado, com o saco plástico pendurado numa das mãos. Avanço pela Rua João de Deus (em Évora). Olho em frente e que vejo eu? O Pedro Lomba com o saco de plástico num dos braços (no outro trazia outra coisa...). Em passo aceleradíssimo. Como eu te compreendo, caro Pedro...

quarta-feira, janeiro 21, 2004

GENIAL
Eu não percebi nada do que foi escrito pela Charlotte, a propósito da «sua» tradução do poema de Kavafis, mas declaro, para os devidos efeitos, que estou com ela.
O HOMEM VOLTOU
De volta está o Homem a Dias. E logo para nos explicar em que é que consiste o método da Contemplação da Tromba!
É A VIDA
O Sr. Claudio, do blog Meia Livraria, considera despropositada e hilariante a forma como os blogues de direita, em geral, e o meu, em particular, misturam expressões ou palavras inglesas com o português. "Que mania!" desabafa, enfadado, o Sr. Claudio.
É, de facto, uma mania. No meu caso, tem uma explicação. Mas seria fastidioso explicar ao Sr. Claudio porque o faço (quais as minhas referências, que cultura me influenciou mais, o facto de escrever e ler bastante em inglês, o facto de gostar de transcrever frases ou textos na sua língua original, etc. etc.). Assim como seria perfeitamente inútil tentar convencê-lo de que o faço marginalmente (como se poderá comprovar no blogue) e não militantemente. Digamos, apenas, que o faço por uma só razão: puro snobismo e pedantismo. Desta forma o Sr. Claudio fica todo contente (topou, mais uma vez, a verdadeira natureza dos «direitistas») e todos nós podemos prosseguir com as nossas vidinhas. Ámen.
UM CUMMINGS EM POTÊNCIA
A minha amiga Cristina Oliva enviou-me a dissecação do hit "Um Resto de Tudo" do poeta/cantor João Pedro Pais:

Um Resto De Tudo

Desce pela avenida a lua nua (Estou a descer uma avenida à noite)
Divagando à sorte, dormita nas ruas (Estou desorientado e com sono. Ao usar ruas em vez de "avenidas" já consigo quase rimar com lua nua)
Faz-se de esquecida, a minha e tua (Não sei o que acabei de escrever mas pelo menos "tua" também rima com lua nua)
Deixando um rasto, que nos apazigua (Lua, nua, ruas, tua, apazigua. Boa. Vem aí o refrão!)

Refrão:
Sou um ser que odeias mas que gostas de amar (Uma contradição fica sempre bem)
Como um barco perdido à deriva no mar (Grandiosa comparação: "Um ser que odeias mas gostas de amar como um barco perdido à deriva no mar". As outras hipóteses eram "como um pássaro ferido a tentar voar" e "como um bife vendido, num talho do Lumiar")
A vida que levas de novo outra vez ("De novo outra vez", espero que seja suficiente para passar a ideia de repetição)
O mundo que gira sempre a teus pés (A Terra gira sobre si própria. É um facto. Já Copérnico o afirmava, mas nunca foi Disco de Platina)
Sou a palavra amiga que gostas de ouvir (Tu e mais 120 mil que compraram a merda do cd)
A sombra esquecida que te viu partir (Pá, fica mesmo giro isto de meter sempre um adjectivo estranho à frente dos nomes: palavra amiga, sombra esquecida, noite vadia...)
A noite vadia que queres conhecer (Abordagem a problemas sociais como a vadiagem e a prostituição)
Sou mais um dos homens que te nega e dá prazer (Mais uma contradição, estou imparável!)
A voz da tua alma que te faz levitar (Um certo exotismo oriental)
O átrio da escada para tu te sentares (Não rima muito bem com levitar, damn it!)
Sou as cartas rasgadas que tu não lês (Não entendo pá, será que ela não gosta dos meus poemas?)
A tua verdade, mostrando quem és (O que é a Verdade? Quem somos? Para onde vamos?)

Entra pela vitrina surrealista (Eu optava pela porta, mas isso sou eu)
Faz malabarismo a ilusionista (Ou "faz contorcionismo a trapezista")
Ilumina o céu que nos devora (Estou completamente pedrado)
Já se sente o frio, está na hora de irmos embora (Devora, hora, embora...)

Sou um ser que odeias mas que gostas de amar
Como um barco perdido à deriva no mar... (gostava mais do bife no talho do Lumiar, mas o que fazer...)"

terça-feira, janeiro 20, 2004

DE LONGE
Vi, de soslaio e em doses espartanas, o Prós & Contras (RTP1) da última segunda-feira, dedicado ao tema da interrupção voluntária da gravidez (vulgo “aborto”). Do «painel» (termo fetiche em programas deste tipo) de convidados, não se safou um. Quem os escolheu deve ser pessoa que sente prazer em irritar os outros. Excessiva politização, deficit de razoabilidade, laivos de fundamentalismo de parte a parte. A intervenção do representante dos magistrados foi, de longe, a mais interessante. E, no meu caso, utilíssima. Posso, agora, afirmar que sou contra a despenalização e não contra a descriminalização. Mas sobre este ponto, prometo desenvolvimentos futuros. Termino com um comentário sobre a anfitriã. Fátima Campos Ferreira fez a diferença e foi, de longe, a mais corajosa: envergou o mais horrendo vestido de que há memória em televisão (pelo menos desde que Valentina Torres ganhou o Festival da Canção). Grande Fáfá!

segunda-feira, janeiro 19, 2004

SERÁ?


in Daily Telegraph
UM TEXTO ESTAPAFÚRDIO
Ou simplesmente estúpido. Certo é que, no caso do aborto, ainda não passei da fase pueril e idiota da «confusão». Eu explico: faz-me «confusão» ver a prática do aborto descriminalizada; mas faz-me igualmente «confusão» saber que há mulheres que são condenadas por abortarem. Faz-me «confusão» saber que, uma vez descriminalizado, o aborto pode passar a ser visto como uma prática anti-conceptiva de recurso, à falta da pílula do dia seguinte; mas também me faz «confusão» saber que há mulheres que, por razões válidas, não podem nem devem engravidar. Faz-me imensa «confusão» saber que muitos abortos são praticados numa fase em que se estava na presença de um ser humano qualitativa e clinicamente formado; mas faz-me igualmente «confusão» saber que muitas mulheres sofrem por culpa de uma gravidez indesejada. Faz-me «confusão» saber que há mulheres que sofrem, ao longo de anos, o estigma de não conseguirem engravidar e outras que, levianamente (mesmo sabendo que nunca é uma decisão fácil), recorrem ao aborto - para não prejudicarem a carreira, a linha ou um affair.
Ou seja, a questão do aborto é, para mim, ao fim destes anos, uma enorme confusão, embora confesse ser mais contra a descriminalização do que o contrário. Sou, portanto, uma besta. Um anarca espanhol. E este meu post um vómito. Que me desculpem os meus leitores.

domingo, janeiro 18, 2004

SÓ PODE
Um blogger que cita Nelson Rodrigues, faz referências ao North By Northwest e ao Notorious do Hitchy, não esconde simpatias por blogues politicamente antagonistas, considera Mystic River um dos melhores filmes dos últimos anos, que se enoja com o cartaz publicitário do Record e que gostou do Kill Bill, só pode ser uma excelente pessoa.


CHAMEM-ME SAUDOSISTA A VER SE ME IMPORTO
Revi hoje este grande, grande filme de Wyler, com o não menos grande Bogart:

O MANO É QUE SABE
O post "Explorem-me" do maradona é tão verdadeiro que apetece espetar com ele na cara... bom, deixemo-nos de abrir hostilidades. Pelo sim, pelo não (não se lembre o Diego de o apagar), aqui fica o dito:

Explorem-me!
"Para além do Custódio como trinco do Sporting, das coisas mais me afligem é ver pessoas genuinamente boas mais preocupadas com a sua consciência do que com as consequências práticas decorrentes das suas especiais sensibilidades; isto porque, à custa do sono descansado de meia dúzia de bem pensantes e de três ou quatro almas absolvidas, quem se fode são uns bons milhões de indefesos.

A conversa comigo normalmente descamba quando a pessoa que se me opõe fala das fábricas que fogem 'daqui' para 'ali' apenas porque 'ali' os ordenados são mais baixos, causando desemprego 'aqui' e 'mais' miséria 'ali'. Essas pessoas deviam conhecer Chanda, 17:

".... one of hundreds of Cambodians who toil all day, every day, picking through the dump for plastic bags, metal cans and bits of food. The stench clogs the nostrils, and parts of the dump are burning, producing acrid smoke that blinds the eyes."

Que afirma:

"I'd like to work in a factory, but I don't have any ID card, and you need one to show that you're old enough,"

Pois é: há quem prefira que as multinacionais nascidas no leito farto do capitalismo neoliberal selvagem ocidental as explorem animalescamente! Mas deste lado do mundo, há quem não queira que elas sejam exploradas: que continuem a escarafunchar no lixo!"
LEMBRAR O «PAI»
As crónicas de Miguel Esteves Cardoso para o DNA são MEC vintage. A desta semana, sobre os «cheiros» na cozinha portuguesa, em especial na alentejana (a minha), é um mimo:

“Tenho para mim que os «cheiros» de Portugal – as nossas ervinhas – são tão importantes e essenciais para a nossa identidade como o peixinho da nossa cosa atlântica. Não sei como hei-de dizer isto, mas estão para a nossa comida como uma pessoa bem lavadinha para a mais pura e fresca água de colónia.(...) Os lavadinhos são os peixinhos e as carnuchas, os feijões e grãos, as batatolas novas, as alfaces e os tomates. Com a alface, oregãos frescos ou coentros; com os tomates, oregãos secos ou manjericão...”

Não foi por acaso que almocei uma valente, embora espartana (para ser verdadeira), Açorda Alentejana, cuja maior riqueza reside na sua «pobreza». Fica, contudo, a dúvida: qual será o restaurante alentejano, recentemente transplantado para a capital, que serve ensopados de borrego com tanto sebo que daria para lubrificar uma frota camiões?

PS: ainda sobre o último DNa e sobre a crónica de Pedro Rolo Duarte: alguém lhe poderá dar um espacito na nova :2?
CÁ VAMOS NÓS OUTRA VEZ II
(Nota prévia: para que conste, não sou defensor oficioso do JPC.)
JMF volta à carga (assim é que é, homem de Deus!), desta vez com direito a trocadilho (”Um texto que é um verdadeiro aborto”). Escreve no Terras do Nunca:

” o que João Pereira Coutinho escreveu no Expresso sobre o aborto seria um sério candidato à Palermice Mais Cómica e Descabelada de 2004”

Que palermices escreveu, então, o pobre João? Estas:

1. O aborto não deve ser descriminalizado;
2. As sete mulheres, julgadas pela prática de aborto, em Aveiro, não devem ser condenadas;
3. A contradição pode ser gerida tendo em conta que é possível estabelecer uma linha legal sobre aquilo que uma sociedade civilizada considera como moralmente aceitável, i. e., “é possível, perante casos concretos, exibir uma sensibilidade sobre a matéria que não passa por uma condenação em tribunal”;
4. Certos membros de certos partidos têm sido verdadeiros «abutres» na forma como aparecem nos lugares certos às horas certas de modo a aproveitar o capital de notoriedade e de «bondade» que a cobertura mediática, aliada à demagogia do exercício, lhes proporciona.

Conclusão: só mesmo um «indefectível da objectividade» para vislumbrar nestes quatro pontos palermice atrás de palermice. E, ainda por cima, descabelada!

sábado, janeiro 17, 2004

E...
Belíssimo o poema de Konstandinos Kavafis, a que a inestimável Charlotte tratou de fazer justiça:

MAR DA MANHÃ
Que eu me detenha aqui. E que também eu veja um pouco a natureza.
De um mar da manhã e de um céu sem nuvens
roxas cores brilhantes e margem amarela; tudo
belo e grande iluminado.

Que eu me detenha aqui. E que me engane para ver isto
(vi de verdade isto por um instante quando primeiro me detive);
e não aqui também os meus devaneios,
as minhas recordações, os modelos da volúpia.
DO ESQUECIMENTO
Belíssimo o texto de Luis Carmelo "Tragédia de um esquecimento".
SAI UMA RUA ALBERTO-A-DIAS PARA A MESA DO CANTO!

A opinião lúdica
por Alberto Gonçalves
“Todos os dias, as televisões mostram-nos atentados ou confrontos no Iraque. Todos os dias, as televisões insistem em sublinhar que o Iraque vive imerso num tenebroso caos - decerto por oposição à estabilidade que o país se habituara a gozar. A maioria das vezes, as televisões sugerem que a responsabilidade cabe aos Estados Unidos, o império sedento de petróleo que a "opinião pública mundial" cedo desmascarou.

Justamente, há cerca de um ano, o próprio Saddam confessava profunda identificação com a "opinião pública mundial", confiante de que essa valente instituição impediria a guerra. Por manifesta infelicidade, os EUA exibiram lamentável autismo, e, em curtos meses, o Grande Líder desceu da bazófia ao buraco. A "opinião pública", porém, jamais calou a revolta, e não se tem cansado de berrar contra o satã americano e a conspiração sionista, sua natural aliada. Os "pacifistas" apontam para o pandemónio iraquiano e denunciam: "Vêem? Eles causaram isto."

Resta saber o que "isto" significa. Sendo do género cínico, podemos discutir se o povo do Iraque ganhou na transferência de um regime totalitário e particularmente assassino para uma relativa anarquia, alimentada por bandos vários (por acaso não americanos) e cujo fim é incerto. Mas também conviria olhar em volta e notar que, somente nas últimas semanas, o "coronel" Kadhafi deu sinais de abdicar do terrorismo; têm decorrido encontros mais ou menos assumidos entre Israel e dirigentes líbios, sírios e iranianos; o Irão ameaça uma revolução social que será interessante acompanhar.

A "isto", a "opinião pública" (no fundo a esquerda maluca, o anti-semitismo tradicional e o jornalismo de "causas") não tem prestado a devida atenção. Percebe-se: a mera hipótese de que a intervenção aliada contribua para um mundo mais decente é demasiado dolorosa para ser encarada. Muito preferível é fingir sarcasmo e perguntar pelas armas de destruição massiva. As tais que os EUA iriam com certeza forjar, para ilusão dos simples.

E se, como talvez fosse evidente desde o princípio, as armas químicas não passassem de um pretexto barato para a invasão do Iraque, a remoção de Saddam e, afinal de contas, a instalação no Médio Oriente de uma força dissuasória capaz de impor, de dentro, um mínimo de civilidade na zona? Há quem não goste? Milhões, pelos vistos. Eles lá sabem, mas é sempre engraçado observar o empenho dos "pacifistas" em combater a paz.”

in Correio da Manhã 17/01/2004

sexta-feira, janeiro 16, 2004

CÁ VAMOS NÓS OUTRA VEZ
(Actualizado)
Miguel Sousa Tavares volta hoje, nas páginas do Público, ao seu desporto favorito: cascar em George W. Bush. Teses? Várias: (1) Bush veio para “transformar o superavit herdado de Clinton em novo deficit galopante”; (2) Bush “desprezou qualquer preocupação ambiental, em benefício das indústrias poluentes”; (3) gastou “em armamento e no Iraque o que poderia ter gasto em educação, em saúde e assistência social, interrompendo drasticamente a revolução silenciosa a favor dos deserdados da América que Clinton tinha posto em marcha”; (4) é cobarde e não passa do “mais banal dos homens”: basta observar a sua reacção ao 11 de Setembro, fugindo e “embarcando no Air Force One durante longas horas, nas quais a América pareceu completamente à mercê dos terroristas”; (5) “a decisão de invadir e ocupar o Iraque estava tomada desde o primeiro dia da governação de Bush e não teve nada que ver com a ameaça terrorista ou com o embuste das pretensas armas de destruição maciça prontas a serem activadas em 45 minutos”; (6) Bush “queria uma guerra, uma que pudesse ganhar e que lhe desenhasse a imagem de "tough guy", tão cara ao eleitor-tipo americano”; (7) a resposta ao problema do terrorismo “é política e ideológica e assenta na superioridade moral e cívica das democracias sobre os fanatismos, do Estado de direito sobre o terrorismo”; (8) "Não há só os bons e os maus - há também maus que podem ter algumas boas razões e bons que podem ter comportamentos maus", escreve, no final, Sousa Tavares.

Miguel Sousa Tavares volta a criar-me um problema: não resistir a comentar estas «verdades inabaláveis» e, ao mesmo tempo, correr o risco de ser atirado para a prateleira dos «belicistas», «bushistas» e outros palavrões do género. Que se lixe.

(1) Falso. Não foi Bush que transformou o superavit em deficit. Está visto que MST não percebe patavina de economia. Nunca terá ouvido falar em ciclos económicos. Esqueceu-se de voltar um pouquinho atrás no tempo para perceber que, ainda no mandato de Clinton, havia sinais claros de que o período de vacas gordas que os EUA atravessavam estava condenado a acabar. O que aconteceu na era Bush foi previsto pelos mais eminentes economistas, ainda com Clinton na Casa Branca. E, depois, aconteceu uma coisa chamada “9/11”. Coisa pouca, não é?
(2) Se a desprezou, desprezou-a no mesmo sentido que Clinton. Aliás, essa ideia de que entre Clinton e Bush há diferenças abissais é um logro. No essencial, os EUA têm mantido uma coerência notável (e o "notável" aqui não contém juízos de valor)que só os mais distraídos teimam em não reconhecer.
(3) Demagogia. Pura demagogia. Faz lembrar a afirmação de Durão Barroso quando dizia, em plena campanha eleitoral, que “o dinheiro do TGV seria aplicado na Saúde e na Educação”. Como se os meios e as dotações orçamentais se pudessem trocar como quem troca de camisa.
(4) A opção tomada nos minutos e horas que se seguiram fazia parte de uma estratégia de segurança mais do que estudada, face a situações limite. Uma estratégia dirigida ao Presidente dos Estados Unidos da América - fosse ele Bush, Clinton, Al Gore, etc. De resto, a cadeia de comando funcionou. Mais um argumento da treta.
(5) Que tenha sido com Bill Clinton (elevado, entretanto, à categoria de “O Saudoso”) que o Senado aprovou o “Iraq Liberation Act”, ou tenha dado luz verde à intervenção no Kosovo (haveria lá petróleo?), não interessa. Como diria Orwell: “The truth, it is felt, becomes untruth when your enemy utters it”.
(6) Eis uma explicação deveras sensacional: Bush & Ca., com a ajuda do Senado e, no limite, com a aquiescência do povo americano (por definição ‘estúpido’ e ‘inculto’), conduziram milhares de soldados e milhões de dólares em meios e armamento para o Iraque com a intenção de, tchan tchan, promover a imagem de «tough guy» de Bush. Tipo Marvel Comics. Melhor é impossível.
(7) Eu gostava, a sério que gostava, que Miguel Sousa Tavares explicasse o que é isso de uma “solução política” para o terrorismo. Convidar Bin Laden a debater, em Camp David, as condições e termos de um armistício? Pedir ao Dr. Soares para organizar uma acção de formação dirigida a fanáticos religiosos e terroristas encartados, sob o lema "As vantagens do Estado de Direito e da Democracia"? Convencer os dirigentes do Hamas a renunciar ao terror, oferecendo-lhes, em contrapartida, terrenos e novas instalações para os seus serviços de acção social? Dar a outra face como sinal de superioridade moral? Ah, pois: mas porque é que há terroristas? Porque existe gente má chamada Sharon, Bush e __________ (espaço para preencher). Tão simples, não é?
(8) E que tal se Miguel Sousa Tavares fizesse uso deste aforismo e o aplicasse a... George Walker Bush? É óbvio que não porque, como ele próprio escreve: “Isso está para além da capacidade de compreensão de George W. Bush: basta olhar para ele.” Eis a má-fé de que Paulo Tunhas falava na sua resposta a Villaverde Cabral, hoje, no Cartaz do Expresso, e já anteriormente na obra "Impasses" (Europa-América 2003).
QUANDO A BOTA NÃO JOGA COM A PERDIGOTA
Caro JMF: porque amanhã sai o Expresso, não posso deixar de furar a promessa. Por isso, aqui vai: se assim é, como é que uma investigação repleta de "acusações vagas", "testemunhos pouco esclarecedores" e acórdãos da Relação e do Constitucional sobre "falta de provas", acaba em... acusação? Ele há coisas...
SÓ MAIS UMA COISINHA (PROMETO QUE SEJA A ÚLTIMA)
Como é que o JMF sabe que as "acusações cá do burgo" são "vagas"? E como é que sabe que cá, no contenente, os arguidos não foram confrontados com "provas (repito, provas) e testemunhos bem mais esclarecedores (fruto de meses de serena investigação...)"(sic)?

Ai estas "declarações maximalistas..."
CURIOSO, NÃO É?
Escreve o João Miranda:


"Se acontecer a um pescador açoreano ...

1. Ninguém se importa com os excessos de prisão preventiva;

2. Ninguém se importa com a destruíção da reputação do arguido;

3. Ninguém põe em causa o testemunho das crianças;

4. Não há cabala;

5. Ninguém se preocupa com escutas telefónicas;

6. Ninguém se preocupa com as violações do segredo de justiça."
PERFEIÇÃO
NO AnarcoConservador escreve-se sobre How Green Was My Valley ("O Vale Era Verde"), do Sr. John Ford. Retenho esta passagem: "Este é um filme em que perfeição é a palavra-chave". Nem mais. Nem menos.


quinta-feira, janeiro 15, 2004

CARO JMF, PARTE II
Nova surpresa: subscrevo, na íntegra, as tuas palavras (arrisco o tratamento por «tu» porque já andamos nisto há uma semana, tempo mais do que suficiente). Principalmente quando escreves:

"É por isso que defendo princípios de responsabilidade (responsabilização, se quiserem) porque percebo que, sem eles, é a nossa própria liberdade e estilo de vida que são postos em causa. Porque, sem esses princípios, é o vale-tudo. Na minha vida do dia-a-dia, nas pequenas e grandes coisas, na própria liberdade de imprensa, eu já tenho limitações. Não me escandaliza, por isso, que se debata abertamente o tema. Não há vacas sagradas."

Nunca defendi, nem defendo, o vale-tudo-menos-tirar-olhos. Acredito na ordem e no respeito pelas instituições. Acredito que o que nos salva, para além da poesia e da Scarlett Johanson, é o Rule of Law - sobretudo aquele que garante que ninguém, nem mesmo o Estado ou os governos, actua indiscriminada e impunemente. Considero apenas que, no caso dos jornalistas, é complexa e perigosa essa ideia de transpor para a lei uma ideia de moralização apriorística da sua actividade, transformando o actual espirito legal generalista num de cariz particular e excessivamente «balizador». Quem definiria os critérios? Quais os critérios a aplicar? A sua aplicação seria de diferente ordem, consoante o tipo de meio (por exemplo imprensa escrita vs televisões)?
Correndo o risco de me repetir, as minhas dúvidas e o meu cepticismo continuam a ser estes: essa ideia de responsabilidade deve ser «empurrada» por decreto? Deverá apertar-se a malha legal no que respeita ao trabalho dos jornalistas, com base numa supostamente benigna orientação de princípios? Não estarão esses princípios, que nos separam dos bárbaros, já impregnados na lei actual e no próprio código ético e de conduta dos profissionais de comunicação social? E, quando esses profissionais ultrapassam a linha da razoabilidade, do respeito e da própria legalidade, não lhes podem ser já assacadas, hoje em dia, responsabilidades, quer pela via judicial, quer pela via do mercado (deixando de ler o jornal A ou deixando de visionar o canal B)? Não são os jornalistas, ou directores dos media, muitas vezes chamados à barra no papel de arguidos?
De resto... bom, de resto fico por aqui. Não quero que me coloquem no papel de corta-fitas de uma qualquer Alameda Pereira Coutinho...
NÃO ME LIXEM!
Acabei de ouvir, pela primeira vez, Ryan Adams. O meu único comentário é este:

"You say: "ere thrice the sun hath done salutation to the dawn"
and you claim these words as your own
bu I'm well-read, have heard them said
a hundred times (maybe less, maybe more)
if you must write prose/poems
the words you use should be your own
don't plagiarise or take "on loan"
there's always someone, somewhere
with a big nose, who knows
and who trips you up and laughs
when you fall"

The Smiths "Cemetry Gates" in The Queen is Dead
MAIS UM
Blogue interessante: O Observador.
AMAZON: OBRIGADO
A criancinha que há dentro de mim não evita o regozijo e a excitação sempre que, no intercomunicador do prédio, surge uma voz anunciando “Encomenda para si. Reino Unido”. Ontem foi dia de recepção de mais uma encomenda da Amazon.co.uk – um «hábito» que tenho vindo a instituir de há uns anos a esta parte, com resultados práticos gratificantes.
Nunca antes o havia feito, mas não posso deixar de prestar a devida homenagem a uma «instituição» que tem prestado um serviço inestimável pelo livre comércio sem fronteiras, onde o profissionalismo e a competência são a pedra de toque. A Amazon é, provavelmente, a mais emblemática representante do e-commerce e, justiça lhe seja feita, merece que assim seja. É um regalo reparar como se trabalha bem no comércio virtual. A Amazon.co.uk tem estabelecido patamares de excelência a que ninguém pode ficar indiferente. A encomenda desta semana chegou à minha caixa postal (em Évora) cinco dias (!) depois de a ter colocado. Dois dos quatro livros que chegaram foram sugeridos pela livraria virtual que, ao longo destes três anos, construiu o meu perfil. Todas as semanas recebo sugestões de livros, discos e DVD’s quase sempre interessantes porque “eles sabem” do que gosto e quais as minhas áreas de interesse. Criaram, também, um espaço virtual onde constam todas as minhas compras e onde poderei promover a revenda dos meus artigos (em estado de uso, evidentemente). Isto e muito mais. Ora, eu pergunto: se isto não é atendimento personalizado deluxe, o que é que será?
TRÊS PEQUENAS OBSERVAÇÕES
Hoje de manhã, ouvi na rádio (Antena 1) as declarações de um palestiniano que vive na Faixa de Gaza, sobre o mais recente atentado em Israel. Ahmed comentava a decisão israelita de fechar as fronteiras da Faixa de Gaza por tempo indeterminado. Considera a decisão como uma medida grave, já que a mesma impedirá que cerca de 25.000 palestinianos possam cruzar a fronteira para trabalhar.

Observação n.º 1: milhares e milhares de palestinianos trabalham em Israel, com direitos e garantias asseguradas. E, pasme-se, em paz.

Ahmed prossegue, dizendo que o recente atentado do Hamas, que ceifou a vida a quatro israelitas, foi perpetrado por uma mulher palestiniana que vivia sem perspectivas de futuro. É o desespero que provoca este tipo de acções. É a falta de perspectivas que corrói o espírito dos jovens palestinianos.

Observação n.º 2: há atentados em Israel, onde são ceifadas vidas humanas, quase sempre civis. Há incursões do exército israelita que acabam na morte de palestinianos. Mas, do ponto de vista da comunicação social, existe um pendor pró-palestiniano (admito que não totalmente consciente) que leva a que se procurem ouvir as razões ou justificações de um lado, mas raramente as razões do outro.

Contudo, Ahmed acrescentou que esse tipo de desespero, aliado à descrença em relação ao futuro, está presente em todas as sociedades, inclusive na europeia. O problema, diz Ahmed, é que na Palestina existem grupos políticos armados que fazem uso desse desespero para fins terroristas, envolvendo o assassinato de civis israelitas.

Observação n.º 3: os suicidas palestinianos não são meros civis que, face às dificuldades, decidem um dia, por livre iniciativa, rebentar-se a si próprios e ao maior número de israelitas. Se assim fosse, Africa e outros pontos negros do planeta - onde abundam a miséria e o desespero - seriam locais preferenciais para que este tipo de acções florescesse. A verdade é que os atentados terroristas palestinianos têm uma marca política. São alvo de uma organização e de uma propaganda que incita à morte e ao ódio pelo seu semelhante. Eis um aspecto que ainda não entrou na cabeça de muita gente.

CARO JMF
Call me stupid, call me mad, mas o que eu queria mesmo era o jackpot:

a) Que um véu de serenidade, equilíbrio e moderação caísse sobre o caso Casa Pia, posição que entrevejo nos escritos de Pacheco Pereira e Alberto Gonçalves;
b) Que a liberdade de imprensa não fosse «refreada» (posição que entrevejo nos escritos do meu amigo João Pereira Coutinho).

É certo que foram já cometidos vários excessos por parte de orgãos de comunicação social. É certo que considero completamente ridícula a forma como certos jornalistas pernoitam à porta do TIC ou do DIAP, ou espetam os seus microfones na cara do Dr. Sá Fernandes ou do Dr. Serra Lopes. Acho perfeitamente dispensáveis, e muitas vezes lamentáveis, certas manchetes choque. Mas sou daqueles (provavelmente pertencerei a uma minoria, a que pertence também JPC) que pensa que estes «excessos» - cometidos por saloiice, amadorismo, incompetência ou, nas palavras do Dr. Ferro Rodrigues, "patifaria" - não são nada quando comparados com o contributo que os media têm dado para que a nossa tenrinha democracia desbrave caminho, nesta como noutras questões. Confuso? Não esteja. Bem sei que Portugal se transformou num país de «especialistas». Não há cão nem gato (o meu caso, por exemplo) que não opine sobre o processo Casa Pia, sobre a putativa crise do sistema judicial, sobre Finanças Públicas ou sobre as tácticas do engenheiro de Alvalade. A culpa, podem dizê-lo, é do circo mediático. Mas foi graças à liberdade que nos assiste e ao circo mediático que nela se desenrola que juízes, MP, advogados, legisladores e professores catedráticos sentiram a necessidade de discutir temas tão sensíveis como a prisão preventiva, as cartas anónimas, o segredo de justiça, etc. Foi graças à publicidade deste caso que, interna e exteriormente, se questionaram princípios, preceitos e metodologias - mesmo que, na maior parte das vezes, se tenham vindo a confirmar como as mais correctas. E isso é extremamente positivo. O que eu não quero, e considero extremamente perigoso, é que em nome de um melindre mais ou menos fundamentado (e os mecanismos legais estão aí, para que se possam pedir contas), se belisque um dos principais pilares no que respeita ao escrutínio a que todos devemos estar sujeitos em democracia. JMF fala da imaturidade e do amadorismo dos jornalistas portugueses. Sobre isso não posso ajuizar: não conheço a seita nem nunca trabalhei numa redacção. Sei, apenas, que em Inglaterra e nos EUA (países com uma longa tradição democrática) notícias sensacionalistas, excessos de conduta e atropelos ao bom nome das pessoas - servidas por tablóides que dão mau nome ao vocábulo - são mato. Que eu saiba, não se convocam Conselhos de Estado, não se vislumbram dirigentes políticos falando em “combates de uma vida inteira”, não se lançam teses de “cabalas”, nem se assistem a declarações públicas e dramáticas de altos representantes da nação por dá cá aquela palha. As mesmíssimas insinuações existem. Os mesmíssimos «excessos» são cometidos. É, se quiser, um mal menor tacitamente aceite, que a sociedade civil gere conforme lhe aprouver. Se necessário recorrendo aos tribunais.
De resto, o meu amigo não tem lido o que eu aqui tenho escrito com a devida atenção (provavelmente a atitude mais acertada). Lembro o que escrevi: “Esta ideia de legislar para balizar a liberdade de imprensa, face aos últimos acontecimentos do caso Casa Pia, é uma ideia completamente absurda. E não me agradou nada verificar que essa sugestão tivesse partido da bancada do PSD, agora que nomes desse partido vieram à baila. Se, até à data, o PSD se tinha pautado pela discrição que o caso exige, esta ideia denota uma reacção apressada de última hora.”
Quanto ao poeta Alegre (por quem não nutro o mais leve ódio, antes pelo contrário), limitei-me a atribuir-lhe a autoria da ideia de se convocar um Conselho de Estado (ler “Conselho de Estado” com a gravidade do tom de voz do Christopher Lee) para discutir o processo Casa Pia – ideia que considero impertinente. O meu amigo acha que essa ideia não surgiu “apenas por causa da cobertura mediática do processo.” Pois…

terça-feira, janeiro 13, 2004

THE MAN IS BACK
Major Scobie, em discurso (in)directo. Aqui.

segunda-feira, janeiro 12, 2004

O PROCESSO “CASA PIA” E A LIBERDADE DE IMPRENSA
1. Começo por transcrever, com a devida vénia, um dos melhores artigos que li sobre o assunto, da autoria de Alberto Gonçalves, publicado no Correio da Manhã:

“O que é mais grave? E mais estúpido? Escrever uma carta anónima em que se chama o dr. Jorge Sampaio, além de outras pessoas públicas, à história da Casa Pia? Anexar a dita carta ao processo? Seleccionar cuidadosamente dois nomes e soprá-los pela imprensa? Aceitar a selecção e divulgá-la? Escrever, em consequência, setenta artigos indignados acerca da crise da Justiça, das nuvens que ameaçam o regime e blá, blá, blá? Ser Presidente da República e fazer uma intervenção específica sobre a matéria?
É difícil avaliar a gravidade. Não é tão difícil medir a estupidez. Das acções acima, algumas são de autoria desconhecida (a carta, a violação do segredo de Justiça), pelo que se torna ingrato comparar os resultados suscitados com os objectivos pretendidos. Os restantes gestos variam entre o altamente discutível e o refinado absurdo, como a circunstância de um chefe de Estado elevar uma "denúncia" anónima a tema de comunicado oficial. Ou, já agora, o facto de o Parlamento, numa elegia à separação de poderes e inspirado pela perpétua indignação do dr. Alegre, debater a alegada exibição de alegadas fotografias, durante os inquéritos às testemunhas.
Não é só a unanimidade que é burra, como pretendia Nelson Rodrigues: o folhetim "Casa Pia", que tem erguido robusto monumento à asneira, é plural até dizer chega. Qualquer um (e aqui a expressão tem sentido literal), guiado por insidiosos propósitos ou cândida convicção, escolhe um método e um alvo. Em seguida, desata a disparar.
Os tímidos escrevem cartas e largam informações. Alguns, a minoria ruidosa, voltam a artilharia para o dr. Souto Moura, o procurador João Guerra ou o juiz Rui Teixeira. Outros suspeitam da defesa dos arguidos. Outros ainda atiram-se fatalmente aos media, com palpites de censura e tudo. O bom povo culpa o "Bibi", os políticos, a "pouca-vergonha", a humanidade em geral. E o PS insiste no famoso lamento contra desconhecidos, popularizado como "A Cabala". Pelo meio, ninguém percebe nada, e é possível que a incompreensão absoluta seja mesmo a finalidade do exercício.
Sugere-se, no entanto, relativa calma. O tiroteio diário em que o processo da pedofilia se transformou não vai acabar com o regime nem destruir de vez o sistema judicial: por este andar, vai apenas reduzir o processo da pedofilia a coisa nenhuma. Eis um desfecho que uns tantos sonharam e muitos temeram. Mas para o qual, salvo raras excepções, todos terão contribuído.”


2. Sobre a liberdade de imprensa, relembro o que escreveu JMF no Terras do Nunca: “A liberdade, seja ela de imprensa ou de qualquer outra coisa, exige responsabilidade.” De acordo. Assim como se exige responsabilidade de advogados, Ministério Público, juízes, presidentes, políticos, etc. Alguém poderá afirmar, na posse das suas faculdades mentais mínimas, que, à excepção dos jornalistas, todos se portaram responsavelmente? Alguém conseguirá garantir que são os jornalistas os principais responsáveis pela violação do segredo de justiça? E, antecipando desde já um “não”, a irresponsabilidade, sendo transversal, terá sido de igual grau em todos os agentes? É evidente que não. E até os excessos do bode expiatório do costume (a imprensa) têm de ser friamente analisados. Atente-se no «caso» JN. O Jornal de Notícias deu conta da anexação ao processo de cartas anónimas onde eram referidas figuras públicas de relevo. Nessa mesma notícia, o JN mencionou alguns nomes, entre os quais o do Presidente da República. A notícia violou o segredo de justiça? Em que termos? Caso a informação tenha sido sussurrada aos ouvidos de um jornalista do JN, qual era o seu dever: esconder, não divulgar, sonegar, passar para outro? Em boa verdade, a notícia do JN foi correcta do ponto de vista deontológico. Ninguém leu no JN: “Sampaio está ligado ao caso de pedofilia da Casa Pia” ou coisa que o valha. O «core business» da notícia era apenas um: o facto de constarem no processo cartas anónimas que não foram desvalorizadas ao ponto de levarem o fim que provavelmente mereceriam: o cesto dos papeis. Ou talvez não. Ou seja, o JN levantou uma questão importante, que passa, inclusivamente, pela aferição da legalidade do acto (o de anexar cartas anónimas consideradas “irrelevantes”). O que se passou a seguir (o comunicado do PR e os acidentais desmaios do poeta Dr. Alegre) foi um pouco Much Ado About Nothing. No seio da sua declarada irresponsabilidade, a maldita liberdade de imprensa voltou a ter o mérito de suscitar o debate em torno da necessidade, razoabilidade ou utilidade de apensar cartas anónimas a processos judiciais.

3. Mas importa formular outras questões. O facto de ter havido excessos por parte de certos jornalistas e órgãos de comunicação social, impõe na agenda política a necessidade de se legislar para os pôr na ordem? Torna necessária a convocação de um Conselho de Estado extraordinário? Dito de outra forma, será por decreto ou intimidação que se injectará a desejada responsabilidade? Não haverá já legislação que baste? Legalmente, não existirão mecanismos adequados para colmatar ou corrigir eventuais excessos? O problema não residirá no facto de não se terem punido no passado, inequívoca e pedagogicamente, os tais excessos, não só da imprensa, mas também? O problema não resultará do facto de estarmos pela primeira vez, em trinta anos, a passar por um processo que envolve políticos no activo a um caso sórdido, bem como figuras de relevo da vida pública? Tudo o que está a acontecer não será fruto da nossa virgindade e da nossa pueril imaturidade em termos de cidadania e de confronto com cargas deste calibre?

4. Como sugeriu Pacheco Pereira, seria bom que toda a gente se calasse. Seria bom que, sobre o processo Casa Pia, descesse um véu de serenidade, equilíbrio, moderação. Mas é igualmente benéfico que isso não seja feito à custa da liberdade de imprensa, principalmente através de legislação ad hoc, forjada a quente. A não ser que se pretenda que Portugal se transforme numa república onde, em nome de uma pia e casta contenção noticiosa, se varra acabrunhadamente tudo para debaixo do tapete. A avaliar pelo caso de pedofilia da Casa Pia, disso já nós consumimos durante décadas. Seria importante perceber que certos «excessos» de liberdade de imprensa, para além de inevitáveis, fazem parte do jogo a que denominamos de democracia, e do facto de vivermos em liberdade. E que não há critério formal ou preceito jurídico particular capaz de os dissipar. A não ser a maturidade, o bom senso e o tempo.
É A ECONOMIA, ESTÚPIDO!
José Magalhães voltou a afirmar (pelas minhas contas é a quingentésima terceira vez) que entre 1995 e 2001, ao contrário do que se tem vindo a verificar no mandato de Durão Barroso, Portugal cresceu em convergência. 1995-2201 terá sido, portanto, um período áureo da história portguesa, no que respeita à economia. A tese não é nova: já a ouvimos da boca do Eng. Sócrates e do Dr. Ferro Rodrigues. Portugal cresceu? É. Cresceu. Mas cresceu como? Mal. Quando Durão Barrroso pegou no governo, era já evidente que viriam aí tempos difíceis, durante os quais teríamos de pagar uma pesada factura. José Magalhães esquece (por ignorância ou esperteza saloia) que os ciclos, em economia, não se «preparam» com dois ou três meses de antecedência. Quero com isto dizer que as consequências de uma má política orçamental e de uma desorientação em sede de finanças públicas dão-se a conhecer passados muitos meses (por vezes dois ou três anos). Foi, por exemplo, o que aconteceu nos EUA com Bush: todos os economistas sabiam que, dada a fase final do mandato de Clinton, a economia americana iria ressentir-se durante o mandato de Bush (a qual viria a agravar-se com o imprevisível 9/11).
Seria bom que alguém explicasse a José Magalhães, embora tema que seja um esforço inglório, que qualquer governo, incluindo o de Durão Barroso, poderá sempre optar por políticas suicidas que, no curto prazo, resultarão num espectacular crescimento económico. É o caminho mais fácil. Por exemplo, Durão Barroso poderia colocar Portugal a crescer 5, 6, 8 ou 10% acima da média europeia. Bastava, para isso, que o Estado tomasse conta da economia, injectando-lhe investimento público em declarada hemorragia e dando largueza à sua função empregadora, via função pública. Só teríamos que, daí a dois ou três anitos, recolher os cacos, com a ajuda do Dr. Magalhães, do que outrora fora um país.

PS: reparo agora que o Bruno também falou sobre o assunto
ÓDIOS DE ESTIMAÇÃO
Não deixa de ser «estimulante» verificar como meia dúzia de iluminados e doutos plumitivos acusam os ignaros de prosseguirem uma obsessão cega (passo a redudância) por um escriba que de hiper só tem mesmo o convencimento e, ao mesmo tempo, não reparam na forma obsessiva como destilam um ódio primário sobre o homem. Houve um que, mesmo detestando a criatura, lhe dedicou três ‘postas’ (para já), aproveitando para o desancar com epítetos de extrema-direita (que ele simpática e nada demagogicamente julga ser o “sitio” da criatura), não sem antes se auto-denominar de paladino do «equilíbrio» (“sensaborão”, para disfarçar a presunção). Meus caros: tanta celeuma por um tipo tão mau? Onde está a indiferença que, putativamente, a criatura mereceria? E o que dizer da genealogia do fenómeno? No Terras do Nunca e no Glória Fácil insinua-se que JPC e outros convencidos quejandos foram forjados na montanha do fogo pelo feiticeiro mor: Miguel Esteves Cardoso. Não demorou muito até que mestre e discípulos (uma tropa de idiotas da «nova (extrema) direita» com a mania das grandezas) se passassem a elogiar mutuamente, em constante movimento masturbatório. É claro que tudo o que disseram ao longo destes anos (com a ajuda do veículo fétiche: o «mega-blogue» Independente) passou ao largo da esclarecida e equilibrada imprensa, bem como dos pensadores e cronistas sérios e infalíveis.
E o que dizer da «cambalhota»? Meu Deus: o homem disse tão mal do Expresso e, agora, escreve no dito?! Que vergonha! Que falta de coerência! Que atrevimento! Vês João: não deverias ter andado a dizer mal do Expesso porque a «vidinha» poderia reservar-te estas surpresas. Agora que foste obrigado a escrever no Expesso (um castigo sem precedentes no panorama jornalístico português), já sabes: o Expesso é o melhor do mundo!
Eu não pretendo beliscar tão firmes princípios, tão perfeitas condutas e tão coerentes percursos por parte de quem aproveita para bater de forma tão «limpa», «honesta» e «propositada» no “Diogo Mainardi português” (!?). Aproveito, apenas, para constatar que o João Pereira Coutinho não deixa ninguém indiferente, provocando as mais acaloradas reacções. O que para um tipo tão bera, infantil e de extrema-direita não está nada mal...

sábado, janeiro 10, 2004

ATENUANTE
...a pedido do meu pai.

PS: e está confirmado: o João Pereira Coutinho mudou-se de armas e bagagens para o Expresso. Parabéns ao Expresso.

PPS: e, pelo sim pelo não, levei um bigode postiço
NÃO ME DIGAM NADA
Comprei hoje o Expresso...
LARKIN, PHILIP

’Who called love conquering’
Who called love conquering,
When its sweet flower
So easily dries among the sour
Lanes of the living?

Flowerless demonstrative weeds
Selfishly spread,
The white bride drowns in her bed
And tiny curled greeds

Grapple the sun down
By three o’clock
When the dire cloak of dark
Stiffens the town.
17 July 1959 xx

A poesia de Philip Larkin – rigorosa, austera, diria mesmo «reaccionária» – contínua a representar uma espécie de ‘back to basics’ com direito a ‘punch’ de ressaca. Percorrida por um contínuo e melancólico lirismo encantatório, por vezes insuportavelmente amargo, a sua obra parece funcionar como câmara de descompressão relativamente ao nosso ordinário limbo existencial - saturado de embriaguez, volúpia e volubilidade. Câmara essa na qual, é bom que se diga, os seus indefectíveis leitores parecem sempre dispostos a entrar, como se nos fosse próxima e familiar essa descida - não ao inferno, mas à vida, tal qual ela é. Impressiona a forma como, do belo, Larkin descobre um irresistível lado ‘sad & bitter’, a fazer lembrar a canção de David Byrne: “Would you like to be said?/ Would you like me to teach you?/ Well, you can learn to be sad/ but you must practice like I do”. Certo é que a desolação e o desespero em Larkin, de tão pessoais e sentidos, tornaram-se universais. “Deprivation for me is what daffodils were for Wordsworth”, disse uma vez o poeta. Há, nas suas palavras tristes e poeticamente dolorosas, uma universalidade que nos convoca, embora não nos redima. Por exemplo, o medo da morte é o nosso medo – embora insistamos em soterrá-lo quotidianamente. Tal como em Beckett, a obra de Larkin (infelizmente escassa) transmite-nos a cristalina mas cruel sensação de quão frágil e absurda é a vida humana. E de como, sem nos darmos conta, por entre o progresso técnico, a modernidade e a urgência da perfeição, trilhámos, algures no tempo, o caminho da decadência.

”Life is first boredom, then fear.
Whether or not we use it, it goes,
And leaves what something hidden from us chose,
And age, and then the only end of age.”

Ou, como escreveu Beckett, “Enquanto há vida, há desespero”.
CONCURSO: A MINHA ILHA É MELHOR QUE A TUA
ou A Minha Ilha É A Tua Ilha
O caro João Gaspar, rapaz de evidente bom gosto, escreve sobre os discos que levaria para a ilha deserta:

”Esta coisa dos discos a levar para a ilha sempre foi um exercício penoso, pelas indecisões que ocasiona e pelo critério a adoptar: levo aqueles que considero fundamentais para a evolução da música e que eventualmente me estimularão a reflexão, ou aqueles que me atingem os sentidos, ou as memórias, ou tudo isto?!?
Bem, adoptando um registo mais intimo e tendo em conta que ainda levaria um saco com os livros, e que na ilha paradisíaca, sem dúvida passaria a maior parte do tempo a olhar para o mar, escolhia assim logo de rajada: do Miles o Milestones, o Kind of Blue, claro, o Bitches Brew, o ESP e o Pangea; do Coltrane o At the Village e o Love Supreme, do Parker as sessões na Dial, do Lee Konitz o Motion, o Souville de Ben Webester, Expansions de Lonnie Liston Smith, do Gato Barbieri o Latino America, do Dexter Gordon o Go, do Wess Montgomery, So Much Guitar, do Keith Jarreth At the Deer Head Inn, dois ou três do Bill Evans, daqueles com o Scott LaFaro, e, apesar de recente – nestas e noutras, gosto de sentir o tempo, gosto de perceber as raízes, aprecio a inovação, mas com respeito pelo passado - qualquer um desse maravilhoso cantor, Kurt Elling. E levaria também...


Ó João: e o Portrait of Duke Ellington do Sr. Gillespie, o Out of the Cool do Gill Evans, o Bouncing with Bud de Bud Powell, o I Just Dropped By to Say Hello desse magnifico e tantas vezes esquecido Johnny Hartman, o Solitude de Billie Holiday, o Blue Train do Coltrane, o Diz and Getz, o The Complete Town Hall Concert do Mingus, o ..... (penoso, muito penoso!)

sexta-feira, janeiro 09, 2004

AINDA O MILES
João Gaspar voltou a escrever-me:
”Acerca dos melhores Miles tenho sempre dificuldade em ser absoluto: uns dias gosto decisivamente de um e dias depois redescubro outro e por aí fora em perpétuo movimento de eterno retorno a novas e decisivas descobertas... Enfim, vou-me divertindo, mas, entre os Miles ao vivo desta época, ouço com especial atenção o At the Plugged Nickel (existe a edição completa - 7 discos) que um crítico considerou fundamental para se perceber o jazz moderno, e Four and More com George Coleman. Está para sair uma nova caixa do Miles deste período, inserido nas edições completas da Columbia!



Quanto ao melhor Miles ao vivo não sei. Mas se me perguntassem qual seria o disco de Miles Davis que levaria para a ilha deserta, e apesar de ser já um lugar comum, não hesitaria em escolher o Kind of Blue. E levaria também a box do Coltrane no Village Vanguard, o Duke Ellington & John Coltrane, o Desmond e o Mulligan no Two of a Mind, o Blakey de Moanin', o....


A DOIS
Leio no A Esquina do Rio que anda para aí um grupelho em campanha anti-2. Pois eu digo: só um ser humano com problemas existências pode afirmar que a nova 2 é pior que a antiga 2.

UMA IDEIA SEM PÉS NEM CABEÇA
Esta ideia de legislar para balizar a liberdade de imprensa, face aos últimos acontecimentos do caso Casa Pia, é uma ideia completamente absurda. E não me agrada nada verificar que essa sugestão tivesse partido da bancada do PSD, agora que nomes desse partido vieram à baila. Se até à data o PSD se tinha pautado pela discrição que o caso exige, esta ideia denota uma reacção apressada de última hora.
Também não fiquei admirado com a declaração de Jorge Sampaio, porque deste Presidente da República já espero tudo. O PR deveria estar acima deste ruído, não lhe dando a mínima importância. Quanto muito, teria enviado um comunicado à imprensa e solicitado ao seu porta-voz a leitura de duas ou três linhas liminares sobre o assunto. Ao falar da forma como falou, Sampaio amplificou a questão e fez uma tentativa bacoca de moralização, tão ao jeito da sua prosa redonda.
Por último, basta lembrar que se não tivessem sido os jornalistas a desbravar terreno, o caso Casa Pia ainda poderia estar em segredo para a justiça. Bem sei que isso não justifica tudo, mas se, em algum momento, os jornalistas agiram mal - publicando o que não deveria ter sido publicado (por uma questão de bom senso e por se tratar de matéria irrelevante) - que se accionem os mecanismos legais ao alcance de cada cidadão. Mas é bom lembrar um facto: não são os jornalistas que estão a violar o segredo de justiça. Alguém os está a fazer por eles. E não é preciso ser muito inteligente para perceber que é alguém que teve acesso ao processo e que, entre outras coisas, o pretende desacreditar.

PS: por muito que deteste a TVI e a Dra. Moura Guedes, tiro o chapéu ao comunicado de José Eduardo Moniz, lido ontem no Jornal Nacional.
TAMBÉM EU
Escreve o Ivan:
"Espero que João Pereira Coutinho vá ser muito bem pago pela sua coluna no Expresso. Sinceramente. Eu odeio o Expresso, que deixei de ler em 1993, mas, se fosse muito bem pago, também aceitaria escrever para lá."
O "muito bem pago" tinha de ser mesmo muito bem pago. Estive a fazer as contas e cheguei a esta bitola mínima: 2.500 euros semanais. A acrescentar aos 600 dólares que recebo semanalmente da Pyra Labs (a casa do Blogger), para manter este blogue (qualquer coisa como 2.000 euros por mês), podia começar a pensar em comprar a Leica M6 que ando a namorar há cerca de dois anos e uma bicicleta Giant Twist Lite "electric power assisted", perfeita para as ruas e travessas íngremes de Évora.


LARKIN, PHILIP

Love
The difficult part of love
Is being selfish enough,
Is having the blind persistence
To upset an existence
Just for your own sake.
What cheek it must take.

And then the unselfish side –
How can you be satisfied,
Putting someone else first
So that you come off worst?
My life is for me.
As well ignore gravity.

Still, vicious or virtuous,
Love suits most of us.
Only the bleeder found
Selfish this wrong way round
Is ever wholly rebuffed,
And he can get stuffed.

7 December 1962, in Critical Quarterly

quinta-feira, janeiro 08, 2004

IRONIA?
De Maria Luisa Rodrigues recebo missiva sobre Bush Jr.:
"De facto, George W. Bush "foi a melhor coisa que aconteceu à esquerda" - e não só, isso seria pouco - foi a melhor coisa que aconteceu ao mundo em geral.
Oxalá seja reeleito sem grandes complicações (isto é, sem precisar de um "golpe de estado jurídico", como da outra vez).
Com ele ao leme, tudo avança mais depressa. E o que estava em gestação lenta precipita-se, aceleradamente, no palco da História. G. W.Bush não é um "empata-f...", tipo Clinton. Não. Com ele, a grande América mostra a sua garra... e gera as consequências esperáveis.
Concordo consigo. Já são horas de deixar livre curso ao foguetório imperial americano, para podermos passar a outra fase...
Viva George W. Bush e o estertor do império americano!!!
Viva!!!"


Ironia ou não, obrigado pelo seu comentário. Ironia ou não, não julgo que Bush esteja obcecado em "mostrar a garra". Não julgue que Bush Jr. seja um timoneiro à frente de um "foguetório imperial". Perspectivas...
REVERÊNCIA
O jornalista António José Teixeira entrevistou Mário Soares. Melhor: o bibelot António José Teixeira enfeitou o monólogo do mestre. Uma pergunta mais incisiva? Uma discordância de opinião? Uma questão em jeito de contraponto? Um pedido de explicações sobre esta ou aquela afirmação? Nãã. Tudo muito suave, tudo muito calmo, tudo na paz dos anjos. Outra coisa não seria de esperar, perante as certezas e as ideias fixas do mestre, em matéria de política internacional. O menino Zézinho portou-se lindamente. No final, Soares deve-lhe ter dado um rebuçado Onofre.
AT THE PLAZA
Foram duas as respostas à minha inquietação sobre o disco do Miles Davis Sextet. Do Pedro Crespo: ”Das varias dezenas de cd's do Miles, o meu all time favourite é Miles In Tokyo, adquirido por menos de 10 euros numa Fnac que não sabia o que estava a vender. Recomendo-lhe o My Funny Valentine, uma versão que redefine o conceito de sublime. Tenho ideia que o meu cd está bom, mas não posso neste
momento garantir.”


e

do João Gaspar: ”Meu Caro, o seu disco não é marado, a gravação é que foi marada; quando surgiu a edição em vinil, também fiquei chateado e a maldizer a falta de cuidado... Depois comprei a edição digital japonesa, e aí comprovei que o defeito era da gravação original; mais recentemente adquiri a “boxe 1“ das edições completas da Columbia e surge com igual defeito. Enfim, imagino Miles Davis com o seu especial génio a afastar-se do microfone por qualquer razão!
Aliás a gravação não é de todo brilhante, ao contrário da música! Boas audições, boas leituras e continuação de bons resultados do nosso Sporting.”


Obrigado ao Pedro e ao João. Estou, agora, mais descansado (porque o defeito não é do disco) e, ao mesmo tempo, mais lixado (porque se fosse comprava outro). Do Miles ao vivo, o meu disco preferido é In Person Friday and Saturday Nights at the Blackhawk. A formação é igualmente de eleição, com Wynton Kelly no lugar de Evans e Hank Mobley no lugar de Coltrane. Confesso que não conheço o Miles In Tokyo. Mas irei tratar disso.


ACTUALIZAÇÕES
Pronto. Tinha de ser. Resisti durante longos e heróicos meses mas, agora, amoleci. Venho por este meio anunciar que actualizei a lista de blogues com a inclusão dos arqui-rivais Barnabé e Blog de Esquerda (apesar de este nunca me ter ligado a mínima). Ficam juntinhos e tudo, para não passarem frio na aridez da lista. Aos leitores mais sensíveis, o meu pedido de desculpas. Para compensar, acrescento que incluí, também, a página pessoal do João Sousa.
ALGUÉM QUE CONFIRME, POR FAVOR
Sempre que ouço o vol. 1 do Jazz At The Plaza do Miles Davis Sextet (Columbia Records 1973, Sony Music 2001), fico sempre com a sensação de que apanhei uma edição marada. O microfone que era suposto captar o som divinal do trompete de Miles Davis parece ter ficado desligado ao segundo 33 da primeira faixa para nunca mais se recuperar. E o som em surdina fica lá longe. Será mesmo assim? Tenho vários discos ao vivo do Miles, mas este é particularmente bom. A wonder team estava intacta: Davis, Cannonball Adderley, John Coltrane, Bill Evans, Paul Chambers e Jimmy Cobb. O que mais se pode pedir?

THE STONE ROSES
Está a passar no VH1 o teledisco do saudoso I Wanna Be Adored.

Don't we all?
DEVO ESTAR DOENTE
Eu, que tenho dito cobras e lagartos do homem, consegui, no passado fim-de-semana, visualizar a cara do Sr. Eng. e, ao mesmo tempo, ocorrer-me um pensamento positivo. Devo estar doente.



PS: hoje a minha filha deslocou-se de Évora, às 8 da manhã, num autocarro escolar para realizar uma visita de estudo (tudo indica que foi esse o caso) ao estádio Alvalade XXI. Gostou. Só podia.

quarta-feira, janeiro 07, 2004

UM DILEMA, UM PROBLEMA
Há mais de dez anos (!) que não passo os olhos pela «referência». Há mais de dez anos que me tornei num ser mal informado, desatento, casmurro e preconceituoso. Há mais de dez anos que vegeto num limbo de desinformação, passando ao lado do «rigor», da «seriedade» e da «imparcialidade» do grande jornalismo. Yes folks, há mais de dez anos que não sigo o ritual de fim-de-semana do saco de plástico. Falo, obviamente, do Expresso. Os meus amigos insistem: o Expresso é o grande jornal nacional, onde se albergam os melhores jornalistas, as melhores abordagens, a melhor investigação jornalística. Mas eu também insisto: o Expresso é um mito. Falha onde os outros falham. Deixa muito a desejar em termos de cobertura jornalística. É o verdadeiro semanário mainstream - o que, à partida, poderia ser um bom sinal. Mas não é porque o não declarado (e não assumido) estatuto mainstream do Expresso advém do falhanço da putativa excelência que tenta altivamente vender. O Expresso é, para todos os efeitos, o protótipo do jornal «manga de alpaca» que serve a recorrente mediocridade em que adoramos soterrar-nos: podia ser melhor, mas serve e há bem pior; ou podia ser pior, logo podemo-nos dar por contentes. Eu embirro (sim, confesso a embirração) com o Expresso por uma razão simples: a aura criada à sua volta - de ser “a” referência e “a” instituição –, aliada à petulância de alguns dos seus colaboradroes e, porque não dizê-lo, de alguns dos seus leitores (que estão convencidíssimos da sua excelente escolha), torna-me mais pessimista em relação a Portugal. Como escreveu Constança Cunha e Sá, ”se aquele monte de papel é o nosso grande jornal de referência, então não há razão nenhuma para não estarmos na tal cauda da Europa donde todos os governos nos querem tirar." Com os diários Público e Diário de Notícias, com o semanário O Independente (já sei, já sei, não presta e é feito por uma dúzia de pessoas...), já para não falar nas publicações que assino (The Economist, Spectator e Literary Review) e com as edições online dos mais importantes jornais internacionais (o The New York Times, o Daily Telegraph, o New York Observer, etc.), o Expresso não é nada. É uma picada de mosquito na epiderme de um elefante. É um jornal perfeita e justificadamente dispensável.
Mas vamos, então, ao dilema. Quando li o que o Alberto havia escrito, ligando o nome do João Pereira Coutinho ao semanário do Sr. Aquitecto, pensei que fosse brincadeira. Mas, pelos vistos, não é. Ao que tudo indica, o JPC passou a fazer parte do lote de colaboradores permanentes do Expresso (neste caso foi o Expresso que ficou a ganhar). O que me coloca um dilema e um problema: eu não quero deixar de ler o João Pereira Coutinho, mas custa-me pagar quinhentos paus pelo saco de plástico. O que fazer? A estratégia a engendrar será a seguinte:

1.º Tentar sacar o(s) artigo(s) pelo site da «referência»;
2.º Falhada a primeira hipótese, pedir a carcaça do jornal a um dos meus amigos na segunda-feira (dia a partir do qual o dito perde a validade);
3.º Falhada a terceira hipótese, solicitar ao Sr. Ferrão da tabacaria o favor de fotocopiar a página onde conste o artigo do João;
4.º Falhada a quarta hipótese, pedir o jornal emprestado e tirar eu a fotocopia;
5.º Por último, caso tudo falhe, comprar a porra do jornal, recortar o que interessa e, de seguida, vendê-lo a peso. Pode ser que ainda lucre com o negócio.

PS: uma derradeira hipótese é a de pedir ao João o favor de remeter o texto para o mail deste vosso criado. Mas temo que será pedir demais.
EM SINTONIA
JMF, do Terras do Nunca, também ficou deslumbrado com a doce Scarlett. O que vem provar a minha teoria: as mulheres derrubam, entre outras coisas, barreiras políticas.
Descobri Scarlett Johansson em The Man Who Wasn't There (ou "O Barbeiro") - a melhor coisinha que os irmão Coen fizeram desde Barton Fink - num fabuloso registo de Lolita. Voltei a encontrá-la no magnífico Ghost World (fazia de Rebecca). E pronto: fiquei «colado» à encantadora Scarlett. O que é que esperavam? Um homem não é de ferro!

PS: O 'balanço' não foi escrito nas férias, caro João. Foi escrito no dia 4 deste mês. Por sinal, um domingo. E eu pergunto: há coisa pior que um domingo?

terça-feira, janeiro 06, 2004

POR AQUI AINDA SE RESUME 2003

a
ADM (Armas de Destruição em Massa)
Ler Impasses de Fernando Gil, Paulo Tunhas e Danièle Cohn (Europa-América 2003). E ver 'Cartoon'

Amaral, Freitas do
Quem é Freitas do Amaral?

Anti-semitismo
Em França, no início do ano de 2001, o mote havia sido dado em pouco mais de três meses: cerca de 300 «interesses» judeus (casas de habitação, sinagogas, autocarros escolares, etc.) foram alvo de ataques. Em 2003, a coisa foi em todo semelhante: de Marselha a Paris, foram vários os ataques e as ameaças perpetrados contra judeus. Factos: a) cerca de seis milhões de árabes vivem em França, «contra« apenas 650 mil judeus; b) existe uma dinâmica propaganda anti-semita no seio das comunidades muçulmanas (a venda dos Protocolos e do Mein Kampf continua em alta); c) os excessos de Sharon (olhado como “o carrasco”) recebem uma amplificação em nada comparável com os excessos do outro lado (olhado como o das "vitimas”); d) o perigoso Sr. Bush tentou meter a sua marca com um «roadmap», acompanhado de um tremendo esforço, por parte de certos sectores da opinião pública, em descredibilizá-lo. Juntem estes elementos e talvez se perceba o recrudescimento larvar do velho anti-semitismo. Particularidade: esta «nova» forma de anti-semitismo (que uns apelidam eufemisticamente de anti-sionismo) surge agora, sobretudo, do lado da esquerda - mais precisamente de um néo-gauchisme cuja natureza incluí elementos de radicalismo. É claro que, à esquerda, meia dúzia de bons espíritos se esforçaram por dizer que não, que não era nada assim, que o anti-semitismo não tinha cor política, etc. Como se, em suma, pudessem falar por todos.
A opinião pública, por seu lado, também não se comove nem se deixa enganar: maioritariamente ignorante (para quem o problema judeu tem 60 anos de antiguidade), sempre pronta a seguir os que putativamente lutam pelos «mais fracos» contra os «mais fortes» (atente-se na forma como aceitaram a equivalência entre o Maus do Spiegelman e o Palestina do Sacco, onde os israelitas são agora os novos nazis), achando que o Estado de Israel foi um erro histórico (ainda emendável...), e que, por via do Sr. Sharon, os judeus estão a «pôr-se a jeito», a opinião pública considera estas manifestações de violência contra os judeus perfeitamente previsíveis e compreensíveis, face aquele que é a maior ameaça à paz mundial: o estado de Israel.
Miguel Sousa Tavares explicou tudo, em artigo de opinião no Público. Pela cagagésima vez, Tavares explica e esclarece os ineptos e as criancinhas: Israel pretende “aplicar a «solução final»”, através (“desculpem lá”, escreve o espertíssimo Miguel) do “extermínio político, cívico e, se necessário, humano dos palestinianos”. É claro que, do lado dos «oprimidos» e das «vitimas» (os palestinianos), não existem dirigentes, não existem responsáveis, não existem líderes, não existe organização, propaganda, fundamentalismo, extremismo e irracionalidade. E, caso existam, serão todos justificáveis. No fundo, é a eterna luta entre um bando de desesperados face a um monstro chamado Israel. Ok, Miguel: em 2003 ficámos mais uma vez esclarecidos.

b
Barroso, Durão
Num ano tremendo, Durão Barroso aguentou-se de forma surpreendente. Contudo, esteve muito mal em dois casos. O primeiro, na defesa de um perdão a aplicar a reais e eventuais prevaricadores do PEC, ainda para mais estando em causa o comportamento de dois tubarões - França e Alemanha – por sinal os criadores e eternos defensores do agora decrépito pacto. Pelo meio, meia dúzia de iluminados fizeram das tripas coração para explicar que não havia a mais leve contradição entre essa posição medrosa e complacente e o ataque justo anteriormente levado a cabo por Durão ao laxismo e às meias-tintas do governo do Eng. Guterres. Pois...
O segundo, quando decidiu estar presente na sumptuosa festa de casamento da filha de Eduardo dos Santos. Durão Barroso deveria saber que o “em nome pessoal” não funciona nestes casos. Um primeiro-ministro não despe a farda com essa facilidade. Durão Barroso deveria ter recusado, de forma discreta, o convite. Não estavam em causa interesses portugueses que justificassem o acto de vassalagem. Por uma vez os princípios deveriam ter falado mais alto. Entendamo-nos: é imoral estar numa festa daquele calibre num país onde a miséria, a fome, a pobreza e o sofrimento estão ali, ao virar da esquina. É imoral estar presente numa festa privada onde correm rios de champanhe e resmas de caviar por entre o brilho dos diamantes, quando, ali ao lado, uma população inteira continua a sofrer o estigma de viver sob o jugo de um governo e de um presidente que suga há décadas as riquezas do seu país para financiar o armamento e as mordomias da pesada oligarquia que «serve» Angola – incluindo o casamento dos filhos dos membros do «aparelho». Chamem-lhe demagogia, mas há coisas que têm de ser questionadas: a Durão Barroso não lhe terá ocorrido o simples facto de, por trás do muro que circunscrevia a festança, vegetar um povo inteiro?

Billy, Bonnie Prince
Bonnie Prince Billy, Palace Music, Palace Brothers, etc. etc.: tudo nos conduz a Will Oldham. Desta vez coube a Bonnie Prince Billy o feito de ter produzido um dos melhores discos de 2003: Master and Everyone.

Blogues
2003 assistiu ao crescimento exponencial do fenómeno da blogosfera. Centenas e centenas de blogues surgiram, que nem cogumelos. Incluindo este, inspirado pelo histórico e já reformado A Coluna Infame: a antiga casa de Pedro Mexia, Pedro Lomba e João Pereira Coutinho. As reacções ao fenómeno foram diversas. Houve quem tivesse desvalorizado o fenómeno, vaticinando um prazo de validade curto (dois ou três meses e a coisa desapareceria). Houve, também, quem o tivesse menosprezado e tentado ridicularizar (Pedro Rolo Duarte foi o timoneiro da corrente). Houve, ainda, quem o julgasse como um dos mais importantes e interessantes fenómenos dos últimos anos em matéria de «comunicação social», agora que os media tradicionais e ditos sérios haviam esgotado a sua «mensagem» (um manifesto exagero). Pela minha parte, juntava um pouquinho de tudo. A blogosfera é, sem dúvida, um fenómeno interessante. Que eu saiba – pelo menos é assim que a entendo – a blogosfera não surgiu para arrebatar o que quer que seja ou como alternativa à comunicação social «tradicional». Cada blogue constitui uma espécie de diário inconsequente, transmissível ou não, sobre os mais diversos temas: política, amor, literatura, futebol, cinema, suinicultura, etc. É, também, um espaço de comunhão, de afectos, de ódios, de humor e de muita, muita vaidade. É um meio de comunicação efémero: não sendo palpável, como o são as folhas de um livro, jornal ou revista, nem um recorte se pode guardar (e raras são as pessoas que se dão ao trabalha do copy-pastar este ou aquele texto). Vai tudo ficando para trás, por entre links e links de arquivo, que nunca mais será lido. A sua credibilidade depende exclusivamente da vontade de quem por lá navega (não têm a «rede» de pertencerem a um «grupo editorial» e, na sua esmagadora maioria, os seus autores ou são anónimos de circunstância ou são anónimos de facto). Como dizem os políticos, em relação às sondagens, um blogue “vale o que vale” (embora haja uns que sejam valiosíssimos). Mas há uma característica que importa referir e que constitui a sua maior valia: um blogue é um espaço de liberdade. E, como nos diz a canção: they can’t take that away from me.

Bush, George W.
George W. Bush foi a melhor coisa que aconteceu à esquerda, em geral, e à sofisticada intelligentsia ocidental, em particular. E, em 2003, surgiu a cereja no topo do bolo: o homem começou uma guerra. Bush Jr. reúne todos os atributos exigíveis para a apreciada zombaria dos doutos e esclarecidos: texano simplório de olhar símio; nunca terá lido Platão, Rousseau ou Saussure; não percebe nada de geografia; não toca saxofone; tem o ridículo hábito de usar cintos com o emblema dos EUA e botas de cowboy; orador nada eloquente; político da ‘direita religiosa’ (classificação que, em certos meios, encabeça o top-10 dos piores epítetos à face da terra). O protótipo perfeito que chegou para encher as medidas da empertigada e desdenhosa esquerda caviar e dos «indefectíveis da verdade». Uma execrável atracção circense. Um louco que insiste, vejam só, em recordar o 11 de Setembro. Eis, talvez, a única e grande vantagem de Bush face à empertigada e desdenhosa classe intelectual que adora contar anedotas do bicho: ao contrário dos seus mais directos opositores (do Dr. Miguel Sousa Tavares ao Dr. Soares, passando pelo Prof. Chomsky e pelo filantropo Soros) George W. Bush entendeu o 11 de Setembro do lado de quem sofreu um ataque soez e ignóbil. Ou seja, do lado das vitimas. Ao contrário dos seus mais directos e raivosos opositores, Bush Jr. sabe que o 11 de Setembro foi uma declaração de guerra e não quer esquecer que pereceram mais de três mil pessoas em poucos minutos. Sabe, também, que se perpetrou um ataque a um estilo e um modo de vida. Que é o nosso, por opção própria. Coisa que jamais os seus mais enfatuados opositores, do alto da sua tribuna alicerçada na hipocrisia e no cinismo, quererão perceber. Interessa, acima de tudo, bater no idiota.

c
Cartoon
Cartoon político do ano:



Cardoso, Miguel Esteves
O fim de ano reservou-nos uma agradável surpresa. O Blitz, na comemoração da sua milésima edição, relança o livro perdido de Miguel Esteves Cardoso Escrita Pop (Assirio & Alvim) e publica entrevista do mestre. Um grande abraço, Miguel.

Casamentos
Muitos. Destaco, contudo, um: o do Carlos e da Carla.

e
Estádios
Portugal está cheinho de novos estádios de futebol. Lindos, funcionais, modernos. Verdadeiras catedrais onde se exorcizarão fantasmas e se crucificarão entes outrora queridos. É a magia do futebol. O problema é só este: os novos estádios estão para o futebol nacional (observe-se o Louletano a jogar no estádio em Faro) e para o estado de desenvolvimento do país como um Porsche 911 Carrera Turbo está para o carro da minha mãe: um Opel Agila 1.2.

g
Gelb, Howe
Para os mais distraídos nestas andanças, por favor juntar o nome à lista de songwriters-a-seguir-com-todo-o-cuidado-e-devoção, onde, por esta altura, já deverão figurar Stephen Merritt, Will Oldham, Beck ou Mark Eitzel, entre outros. O Sr. Gelb ofereceu-nos em 2003 The Listener: treze memoráveis canções. Lou Reed and pascal Comelade meets Arizona solitude, podia ser o epíteto. Produção home-made, registo intimo com laivos folkianos, trabalhinho irrepreensível e simples. Pois é: um dos grandes discos de 2003.

Gomes, Ana
O PS ganhou uma nova porta voz para os assuntos externos e perdeu irremediavelmente a sua fácies de partido moderado em matéria de política internacional. A Dra. Ana Gomes foi uma espécie de elefante de voz estridente, entrando numa loja de cristais. Estaria melhor no Bloco.

h
Hussein, Saddam
O rato foi apanhado. O escroque foi capturado. Mas, pasme-se, houve quem tivesse ficado «melindrado» ou «incomodado» com a captura do homem. Coitado do moço, para ali esquecido, de barba por fazer, cheio de piolhos e obrigado a obrar à luz das estrelas. E que mal que o trataram, após a captura. Deus meu: um brutal e cruel exame médico!
A prisão de Saddam trouxe, por isso, um efeito lúdico. Se, por um lado, assistimos aos hilariantes e tristes comentários de certos plumitivos esquerdistas que não esconderam a sua revolta pela captura do carniceiro de Bagdad - aproveitando para arranjar novos argumentos para bater no grande Satã (protótipo: Fernando Rosas) - por outro lado, foram muitos os sorrisos amarelos, os artigos de opinião forçados e os 'posts' hipócritas. Lindo.

i
Iraque
Pensar que, por causa de uns alegados 10% das reservas mundiais de petróleo, os EUA encetaram uma guerra gastando, para o efeito, biliões de dólares, não pega. E não pega ainda mais porque a administração Bush afirmou que, uma vez estabilizada a situação, sairá do Iraque. O Iraque será dos iraquianos, incluindo o seu petróleo. As relações económicas entre os EUA e a administração iraquiana serão nulas? Obviamente que não. Os EUA esperam ganhar alguma coisa do ponto de vista económico? Obviamente que sim. So what? Business is business. O Iraque quererá vender a sua riqueza. Alguém a quererá comprar. É assim, desde há séculos. O depósito do meu carro, como o de biliões de cidadãos em todo o mundo, precisa de ser enchido. A francesa Elf não está no Iraque há décadas? Os sucessivos governos franceses não fizeram tudo o que estava ao seu alcance para que a «sua» companhia singrasse por terras de Saddam? Não tenho dúvidas de que os EUA beneficiarão com o petróleo iraquiano. É claro que sim. Mas irão pagá-lo. Como pagam o proveniente da Arábia Saudita e do Kuwait. De uma vez por todas, deixemos de lado essa ideia fixa de vislumbrar, por todo o Iraque, um complexo sistema de pipelines, que servirá de bypass para sugar toda a riqueza do país directamente para o rancho do texano estúpido. É, por isso, redutor pensar que a intervenção norte-americana e inglesa no Iraque teve como móbil o petróleo. Questões bem mais importantes e complexas estiveram, e estão, na sua razão. Por último, não deixa de ser desonesta a forma como muitos torcem o nariz a esta guerra com base no argumento de acharem despropositado e ridículo o anuncio da instituição de uma «democracia» em solo iraquiano. Alegam, para o efeito, que transposições deste calibre são perigosas e impossíveis, dada a idiossincrasia social e as diferenças culturais. A declaração é definitiva: a tentativa de criação de um modelo politico-social de inspiração ocidental, num país sem pingo de tradição liberal, é absurda. E, finalmente, que a mudança, a fazer-se (claro: “a fazer-se”), deveria partir de «dentro», levada a cabo de maneira gradual, lenta e «natural», nunca por «imposição» exterior. Isto não só é desonesto como revela ingenuidade e preconceito. Por um lado, o mundo está suficientemente perigoso para termos de esperar, contemplativamente, que certos países (e o Iraque albergava um dos piores e mais sanguinários ditadores do Sec. XX) continuem a revisitar a Idade Média. Por outro lado, não creio que o povo iraquiano e os seus potenciais e actuais representantes sejam particularmente estúpidos ou totalmente idiotas. Observá-los como um bando de «bárbaros» incapazes de evolução e de reorganização é sinal de arrogância e de comodismo retórico. Bem como de falta de conhecimento. Em boa parte do Curdistão, nas chamadas «zonas de exclusão aérea», sob controlo anglo-americano, foi possível, desde 1991, criar um sistema multi-partidário baseado em instituições que nos remetem para o sistema democrático as we know it. Foi desenvolvido um sistema de ensino que não perde tempo com propaganda religiosa e rácica, como acontece na generalidade dos países árabes da região. É bom não esquecer que existe liberdade de culto no Iraque e que o ethos religioso nunca foi suficientemente castrador, ao ponto de esmagar e neutralizar uma futura e desejável reorganização política (dos poucos pontos positivos do regime de Saddam). É óbvio que ninguém espera uma adaptação fidedigna de um modelo de organização política de tipo ocidental. Ninguém está à espera, nem sequer é essa a expectativa de quem está directamente envolvido no Iraque pós-guerra, de assistir a uma mimetização de sistemas e instituições, com a criação de Procuradorias Gerais de República, Tribunais de Contas, Bancos Centrais, etc. etc. Entre o sistema ditatorial e despótico de Saddam e o modelo liberal ocidental vai uma enorme distância, equivalente à que separa a qualidade literária de Mia Couto quando comparada com a do rato Mickey (absoluta vantagem para este último). Se assim é, existe um vasto leque de opções que poderão servir o povo iraquiano de uma forma como nunca o regime de Saddam o serviu, sem ser necessário entrar em histerismo quanto à perfeição e tipologia do sistema a implementar. Existia, contudo, uma condição sine qua non: a captura de Saddam. Essa já «cá» canta.

m
Matos, Helena
Imprescindível: lúcida, mordaz, livre. Uma articulista de eleição.

o
Obsessão (do ano 2003, 2004, ...)

Scarlett Johansson

p
Parlamento
Foi sujeito a um dos mais lamentáveis acontecimentos do ano: a recepção, em apoteose, de Paulo Pedroso. Parecia estarmos na presença do regresso de um preso político, injustamente detido nos calabouços de um forte. Aparentemente, a culpa nem sequer foi de Pedroso.

Pereira, José Pacheco
O mais notório dos bloggers. O campeão das page views. A nova aquisição da SIC, em 2003. Aliás, a única. O Sr. Lopes e o Sr. Carrilho acusam um pouco a síndrome VDD: Voz Do Dono. Certezas? Uma: com a presença de Pacheco Pereira, ficámos todos a ganhar.

PS – Partido Socialista Português
Annus Horribilis para o PS. Culpa de quem? Inteira e objectivamente dele próprio. O PS foi incapaz de lidar com um facto: a prisão preventiva de um político seu no activo. Enveredou pela dramatização: a tese da cabala, a ideia da crise do sistema de justiça e do Estado de Direito, a politização de um caso que pertenceria apenas ao domínio do privado. Inacreditavelmente, o PS parecia querer colocar-se no banco dos réus, como se fosse o partido que estivesse em causa. Pelo meio, falaram-se em «convicções profundas» e num «combate de uma vida». O PS não percebeu que 99,99% da população portuguesa não conhece, nem tem de conhecer, os fundamentos dessas “profundas convicções”. Não conhece pessoalmente Paulo Pedroso – pessoa certamente afável e simpática. 99,99% da população aguarda o desfecho do caso no local onde deve ter lugar: nos tribunais. Não nas cabeças dos lideres socialistas, no Largo do Rato ou na Assembleia da República. É isso que significa vivermos num Estado de Direito. Foi esse “extravasar” e foi essa “incapacidade em lidar com” que colocaram o PS numa situação difícil, após sucessivos tiros no pé, carapuças enfiadas despropositada e desnecessariamente, e a revelação de uma falta de sentido de Estado gritante.
Em perspectiva, o PS parece nunca ter-se refeito da hecatombe da noite das eleições autárquicas, seguida de um simples e normal facto em democracia: os portugueses escolheram outro partido para governar. O PS tem de perceber que o actual governo está a cumprir um mandato de quatro anos e que de pouco servem essas insinuações demagógicas e desesperadas do «neo-fascismo», «neo-liberalismo» e «neo-conservadorismo». Não passam de slogans gratuitos, próprias de outra esquerda, da qual o PS parece não querer descolar-se.

r
Rodrigues, Ferro
Num ano terrível (v. PS), Ferro Rodrigues acertou uma única vez quando afirmou que o PS do «contenente» "nada tinha que ver com o PS Açores" - quando instigado a comentar o caso de pedofilia nas ilhas. Pois não: lá, o PS Açores não entrou em histeria, não lançou a tese da cabala, o seu líder foi discreto e o caso morreu ao fim de três dias.
v. PS

Rucker, Ursula
Outro grande disco: Silver or Lead.

s
Soares, Mário
Mário Soares voltou a pavonear a sua cristalina visão do mundo. Voltou a afirmar que ”o mal do mundo advém da exploração universal” (sic); que nós, europeus, vamos ser ”escravos do império” (sic); que “o mundo está pior hoje do que no tempo do colapso do regime soviético” (sic); e que “a natureza do terrorismo global [da Al Qaeda] é igual “à natureza da administração norte-americana” porque, muita atenção, “Bush fala em Deus, no bem e no mal”. Pelo meio, Mário Soares confessou que, para ele, os EUA já não são uma democracia: a administração Bush transformou os EUA numa ditadura, que se prepara para tomar o mundo. O Congresso, o Supremo Tribunal, o Senado, os tribunais, o “rule of law”, a constituição americana, o povo americano? O facto de ter sido no seio da sua querida e abstracta «Europa», e não nos EUA, que nasceram os totalitarismos ocidentais no Sec. XX (o fascismo, o nazismo e o comunismo)? Os interesses obscuros de franceses, alemães e russos um pouco por todo o mundo (incluindo no Iraque)? Nada disso interessa. A História, as evidências e a realidade: peanuts. Alguém, em 2004, o poderá aconselhar a sossegar?

t
Tavares, Miguel Sousa
v. Anti-semitismo

Terrorismo
A cartilha voltou a ser repetida pelos do costume: o Sr. Bin Laden, al Qaeda e, em geral, os terroristas representam a voz dos excluídos, dos humilhados, dos «danados da fome». As causas do terrorismo da al Qaeda são claras: há décadas (séculos?) que o Ocidente colocou a nação islâmica a pão e água, sugando-lhe, ao mesmo tempo, os seus mais preciosos recursos (nomeadamente o pitróleo). A par disto, o Ocidente, e mais concretamente a nação Imperial, tem vindo a infligir duros golpes na auto-estima dos árabes e dos muçulmanos espalhados pelo mundo, razão mais do que suficiente para explicar o fundamentalismo islâmico.
Bin Laden pode ser a face de tudo, mas não é, certamente, a face da revolta dos milhões de muçulmanos que vivem, ainda hoje, num obscurantismo que lembra o pior da Idade Média. É sabido que, no seio das populações, quando estão reunidas as condições para falar sem receios, ou seja, livremente, existe mais simpatia pelo Ocidente e pelo grande Satã do que alguma vez os críticos dos EUA poderão imaginar. É altura de perceber que o Ocidente (latu sensu) não anda em cruzada por terras muçulmanas. Não anda a humilhar ninguém. O Ocidente não tem nenhuma contenda com o Islão. É a Ocidente que existe tolerância, multi-culturalismo e liberdade de culto. Convinha explicar que os maiores culpados pelo infortúnio dos povos do médio oriente continuarão a actuar num limbo de impunidade inadmissível, servido pela intelligentsia ocidental. Falo, obviamente, dos dirigentes e orquestradores políticos e religiosos. É a Arafat e à sua falta de visão de Estado e de oportunidade; são aos mullahs e aos ayatollas; são aos dirigentes políticos do médio-oriente mentalmente mais empedernidos e tirânicos; são a esses que se deveriam assacar responsabilidades. São estes os que adoram incendiar as populações contra terceiros; são estes que não defendem as suas populações com certos contratos estabelecidos com países ou grupos económicos a ocidente; são estes que sugam a riqueza do seu país para sustentar a sua pesada oligarquia; são estes que anestesiam a consciência crítica do seu povo face às suas responsabilidades e às suas políticas, através da criação de papões ocidentais. Em suma, são estes os inimigos dos povos que putativamente se sentem excluídos, menosprezados e a viver em péssimas condições materiais e humanas. Não é o Ocidente ou o grande Satã.

u
União Europeia
Adensam-se nuvens negras e nem o mago d’Estang consegue sossegar a ralé. Seria bom que, na UE, alguém carregasse no pedal do travão ou aliviasse o do acelerador. Irmãos: vamos com calma.

v
Valente, Vasco Pulido
O grande ausente. A maior das saudades. Get well, Vasco. A.S.A.P.

w
White Stripes, The
Alguém devia condecorar o Sr. e a Sra. White pelo serviço que têm vindo a prestar a um género cuja morte já foi anunciada vezes sem conta: o rock. Ouça-se o tema de abertura do álbum Elephant (2003): Seven Nation Army é um clássico absoluto. Uma linha de baixo repetitiva, acompanhada ora solitariamente por uma percussão minimalista, ora por riffs provenientes de uma guitarra dilacerante. Letras simples, em denunciado clamor por instintos básicos e sentimentos à flor da pele. Se isto não é rock, o que será rock? Os Stripes estão aí para mandar às urtigas a crónica de uma morte anunciada, num estilo que mistura eficazmente influências como as de T-Rex, Stooges, Burt Bacharach ou Velvet Underground. Em 2003, os Stripes continuaram a fazer pelo rock aquilo que os Pixies haviam feito na década de 80. Ou aquilo que os Smiths fizeram pela pop na mesma década.

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