O ABORTO. ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES
(actualizado)
Criou grande celeuma (ok, estou a exagerar) a minha afirmação de que era favorável à descriminalização do aborto, embora contrário à sua despenalização. O assunto foi comentado aqui e aqui, por exemplo. À conta dessa afirmação recebi, também, algumas missivas algo inflamadas (a inflamação é reacção recorrente), no meio de outras bem mais interessantes. Em suma: levei porrada de ambos os lados da barricada – se é que podemos colocar a questão recorrendo a esta terminologia marcial. Seja como for, cumpre-me colocar os pontos nos is. Pela última vez.
Para que conste, condeno a prática do aborto. Por princípio, sou contra a sua legalização. Não posso aceitar que o aborto venha a ser banalizado, tornando-se a saída mais fácil para a desresponsabilização de uns e o facilitismo de outros. Assusta-me a leviandade dos jovens nesta matéria, olhando o aborto como um mero método contraceptivo de último recurso. Ou seja, como tábua de salvação face à desatenção, ao facilitismo e à falta de responsabilidade. Contudo, pior ainda é a irresponsabilidade dos adultos na educação dos seus filhos e na sua própria conduta. Irrita-me a forma como em Portugal se tenta mascarar a questão essencial – a da gravidez não desejada - optando-se por uma solução de recurso a jusante. Ninguém parece interessado em, primeiro que tudo, minimizar o problema por via das únicas soluções duradouras e inócuas do ponto de vista moral (planeamento familiar, diálogo e educação). Poder-me-ão dizer: uma coisa não invalida a outra. E eu respondo: viveremos nós na Suécia? Não viveremos nós num país onde se usa e abusa do recurso a soluções de remendo, relegando as verdadeiras soluções - que passam pela prevenção - para as calendas gregas?
Sei que a prática do aborto nunca será erradicada. Sei que será minimizada sobretudo por via da educação sexual, do planeamento familiar, da pregação moral e da manutenção de um canal aberto de comunicação entre pais e filhos. E entre adultos. Mas também sou dos que acreditam que a lei tem um poder dissuasor que não pode ser menosprezado. Ou seja, a existência de uma lei que proíba o aborto desencoraja a sua prática. Ao colocar sobre essa questão um estigma de infracção/punição, está-se a enviar um sinal inequívoco para a sociedade: é errado abortar. Neste contexto, há quem consiga separar a questão legal da questão moral. Há quem afirme, e com razão, que “moral e lei são planos diferentes”. Mas eu não posso esquecer que são planos que se entrecruzam. Não são dimensões estanques. A lei (latu sensu) reflecte invariavelmente preceitos de ordem moral. Poderá a lei ser boa e útil menosprezando qualquer tipo de aspiração moral correcta?
Mas para quê, então, uma lei que ninguém respeita? Para quê proibir uma prática que, nalguns casos, é levada a cabo por razões moralmente válidas? Está assim justificada a sua legalização, descriminalização e/ou despenalização? A meu ver não. Recorro a um exemplo retórico: há quem roube por razões moralmente aceitáveis – de subsistência, por exemplo; há quem infrinja o código da estrada por motivos justificados – o limite de velocidade em caso de emergência médica; há, ainda, quem fuja ao fisco – por exemplo para não despedir pessoal ou para poder pagar ordenados. Mas as regras proibitivas subsistem. O plano moral cruza-se com o legal, obrigando a que a lei perdure no tempo e reflicta a ordem moral vigente. Esta conclusão desmonta um dos argumentos dos que são favoráveis à despenalização do aborto. Porque mesmo que se identifiquem razões válidas para justificar o crime ou a infracção, isso não implica que se tenha de aligeirar a lei ou simplesmente suprimi-la. Do ponto de vista do «confronto» legalidade vs moralidade, a grande questão que se deve colocar é esta: a sociedade portuguesa deve, ou pode, continuar a categorizar a prática do aborto (sendo certo que, à partida, ela é condenável) como um crime? Dito de outra forma: será o aborto moralmente tão condenável que se deve tipificar legalmente como crime? O sinal a ser enviado à sociedade, no que respeita à condenação da prática do aborto, deve ser assistido por uma norma legal que puna com pena de prisão quem o pratique?
Nesta matéria, não alinho em fundamentalismos. Da mesma forma que detesto o fundamentalismo “na-minha-barriguinha-mando-eu”, detesto o fundamentalismo “mulher-que-aborta-deve-ser-presa” ou “mulher-que-engravide-mesmo-por-violação-não-pode-abortar”. Entendo que há casos em que se justifica o aborto - já, aliás, contemplados na lei. Por outro lado, como já afirmei noutras ocasiões, sou solidário com algumas mulheres e não posso estar ao lado dos "idiotas da objectividade" (perdoar-me-ão a expressão) que as pretendem sumariamente ver presas. Assim como não posso concordar com o aborto numa fase avançada. Existe, para mim, um point of no return nos casos ditos «normais». Mas a questão fundamental que sustenta a minha posição parte de um exercício de suposição.
Tenho uma filha com 7 anos. No seguimento do que tenho sido como pai (com todos os defeitos e qualidades), pretendo continuar a educá-la convenientemente (ou o melhor que sei). Com o avançar da idade dos porquês, pretendo informá-la de tudo. Pretendo prepará-la para a vida, tal qual ela é. Mas coloco, muitas vezes, esta questão: quem me garante que, mesmo com toda a informação, formação, compreensão, etc.; mesmo com todo o tipo de avisos que lhe possam ser enviados e por ela assimilados; quem me garante, dizia, que um dia ela não seja alvo de uma gravidez indesejada? Então, coloco as seguintes hipóteses: imagina que a tua filha aparece grávida aos quinze ou aos dezasseis anos; imagina que ela não quer ter esse bebé; imagina que o namorado também não quer assumir a paternidade; ou seja, imagina que a tua filha, aos quinze ou dezasseis anos, se vê na circunstância de ter de decidir – pela sua cabeça e com a ajuda dos pais - o destino de uma gravidez para a qual ela não está minimamente preparada e que porá em risco projectos legítimos de uma jovem de quinze anos. Estarei assim tão seguro e convicto ao ponto de permitir que a sua juventude seja «ceifada» por culpa de uma gravidez indesejada? Serei capaz de a «obrigar», mesmo contra a sua vontade, a ter esse filho? Serei capaz de permitir o recurso ao aborto? A todas estas questões, respondo: não sei. A verdade é que, hoje, não sei se permitiria o aborto, não sei se uma gravidez indesejada na juventude “ceifaria” alguma coisa, não sei se esse filho seria uma tragédia ou, pelo contrário, uma dádiva. Sinceramente, não sei. Mas, se permitisse o aborto (e eu coloco essa hipótese), a minha filha deveria ir presa? Aceitaria e consideraria essa punição como razoável, apropriada, proporcional?
Perceberão agora porque é que, na questão do aborto, não consigo deixar de me contradizer? Perceberão agora porque é que, ainda que inconsistentemente, sou contrário à despenalização e, ao mesmo tempo, não consigo apoiar a criminalização?
PS: O João Noronha, sempre rápido e atento, já comentou este 'post', escrevendo, a propósito da expressão "idiotas da objectividade": "Vou agora retirar o barrete para poder continuar a ler o post" e "nunca ninguém falou em prisões sumárias". Se assim é, caro João, não tens de enfiar o barrete. Aliás, a referência aos "idiotas da objectividade" não foi colocada a pensar no Valete. Quanto ao "ninguém falou", bom... sabes perfeitamente que há quem vá por aí. Por último, escreves: "O Contra-a-Corrente é incoerente porque o amor que sente pela sua filha é superior ao amor que sente pelas crianças não nascidas." Sim, nesta matéria sou incoerente. Contradigo-me. Meto os pés pelas mãos. Defeito meu. Mas atrevo-me a colocar a questão: a partir de quando podemos falar em "crianças não nascidas"?
(actualizado)
Criou grande celeuma (ok, estou a exagerar) a minha afirmação de que era favorável à descriminalização do aborto, embora contrário à sua despenalização. O assunto foi comentado aqui e aqui, por exemplo. À conta dessa afirmação recebi, também, algumas missivas algo inflamadas (a inflamação é reacção recorrente), no meio de outras bem mais interessantes. Em suma: levei porrada de ambos os lados da barricada – se é que podemos colocar a questão recorrendo a esta terminologia marcial. Seja como for, cumpre-me colocar os pontos nos is. Pela última vez.
Para que conste, condeno a prática do aborto. Por princípio, sou contra a sua legalização. Não posso aceitar que o aborto venha a ser banalizado, tornando-se a saída mais fácil para a desresponsabilização de uns e o facilitismo de outros. Assusta-me a leviandade dos jovens nesta matéria, olhando o aborto como um mero método contraceptivo de último recurso. Ou seja, como tábua de salvação face à desatenção, ao facilitismo e à falta de responsabilidade. Contudo, pior ainda é a irresponsabilidade dos adultos na educação dos seus filhos e na sua própria conduta. Irrita-me a forma como em Portugal se tenta mascarar a questão essencial – a da gravidez não desejada - optando-se por uma solução de recurso a jusante. Ninguém parece interessado em, primeiro que tudo, minimizar o problema por via das únicas soluções duradouras e inócuas do ponto de vista moral (planeamento familiar, diálogo e educação). Poder-me-ão dizer: uma coisa não invalida a outra. E eu respondo: viveremos nós na Suécia? Não viveremos nós num país onde se usa e abusa do recurso a soluções de remendo, relegando as verdadeiras soluções - que passam pela prevenção - para as calendas gregas?
Sei que a prática do aborto nunca será erradicada. Sei que será minimizada sobretudo por via da educação sexual, do planeamento familiar, da pregação moral e da manutenção de um canal aberto de comunicação entre pais e filhos. E entre adultos. Mas também sou dos que acreditam que a lei tem um poder dissuasor que não pode ser menosprezado. Ou seja, a existência de uma lei que proíba o aborto desencoraja a sua prática. Ao colocar sobre essa questão um estigma de infracção/punição, está-se a enviar um sinal inequívoco para a sociedade: é errado abortar. Neste contexto, há quem consiga separar a questão legal da questão moral. Há quem afirme, e com razão, que “moral e lei são planos diferentes”. Mas eu não posso esquecer que são planos que se entrecruzam. Não são dimensões estanques. A lei (latu sensu) reflecte invariavelmente preceitos de ordem moral. Poderá a lei ser boa e útil menosprezando qualquer tipo de aspiração moral correcta?
Mas para quê, então, uma lei que ninguém respeita? Para quê proibir uma prática que, nalguns casos, é levada a cabo por razões moralmente válidas? Está assim justificada a sua legalização, descriminalização e/ou despenalização? A meu ver não. Recorro a um exemplo retórico: há quem roube por razões moralmente aceitáveis – de subsistência, por exemplo; há quem infrinja o código da estrada por motivos justificados – o limite de velocidade em caso de emergência médica; há, ainda, quem fuja ao fisco – por exemplo para não despedir pessoal ou para poder pagar ordenados. Mas as regras proibitivas subsistem. O plano moral cruza-se com o legal, obrigando a que a lei perdure no tempo e reflicta a ordem moral vigente. Esta conclusão desmonta um dos argumentos dos que são favoráveis à despenalização do aborto. Porque mesmo que se identifiquem razões válidas para justificar o crime ou a infracção, isso não implica que se tenha de aligeirar a lei ou simplesmente suprimi-la. Do ponto de vista do «confronto» legalidade vs moralidade, a grande questão que se deve colocar é esta: a sociedade portuguesa deve, ou pode, continuar a categorizar a prática do aborto (sendo certo que, à partida, ela é condenável) como um crime? Dito de outra forma: será o aborto moralmente tão condenável que se deve tipificar legalmente como crime? O sinal a ser enviado à sociedade, no que respeita à condenação da prática do aborto, deve ser assistido por uma norma legal que puna com pena de prisão quem o pratique?
Nesta matéria, não alinho em fundamentalismos. Da mesma forma que detesto o fundamentalismo “na-minha-barriguinha-mando-eu”, detesto o fundamentalismo “mulher-que-aborta-deve-ser-presa” ou “mulher-que-engravide-mesmo-por-violação-não-pode-abortar”. Entendo que há casos em que se justifica o aborto - já, aliás, contemplados na lei. Por outro lado, como já afirmei noutras ocasiões, sou solidário com algumas mulheres e não posso estar ao lado dos "idiotas da objectividade" (perdoar-me-ão a expressão) que as pretendem sumariamente ver presas. Assim como não posso concordar com o aborto numa fase avançada. Existe, para mim, um point of no return nos casos ditos «normais». Mas a questão fundamental que sustenta a minha posição parte de um exercício de suposição.
Tenho uma filha com 7 anos. No seguimento do que tenho sido como pai (com todos os defeitos e qualidades), pretendo continuar a educá-la convenientemente (ou o melhor que sei). Com o avançar da idade dos porquês, pretendo informá-la de tudo. Pretendo prepará-la para a vida, tal qual ela é. Mas coloco, muitas vezes, esta questão: quem me garante que, mesmo com toda a informação, formação, compreensão, etc.; mesmo com todo o tipo de avisos que lhe possam ser enviados e por ela assimilados; quem me garante, dizia, que um dia ela não seja alvo de uma gravidez indesejada? Então, coloco as seguintes hipóteses: imagina que a tua filha aparece grávida aos quinze ou aos dezasseis anos; imagina que ela não quer ter esse bebé; imagina que o namorado também não quer assumir a paternidade; ou seja, imagina que a tua filha, aos quinze ou dezasseis anos, se vê na circunstância de ter de decidir – pela sua cabeça e com a ajuda dos pais - o destino de uma gravidez para a qual ela não está minimamente preparada e que porá em risco projectos legítimos de uma jovem de quinze anos. Estarei assim tão seguro e convicto ao ponto de permitir que a sua juventude seja «ceifada» por culpa de uma gravidez indesejada? Serei capaz de a «obrigar», mesmo contra a sua vontade, a ter esse filho? Serei capaz de permitir o recurso ao aborto? A todas estas questões, respondo: não sei. A verdade é que, hoje, não sei se permitiria o aborto, não sei se uma gravidez indesejada na juventude “ceifaria” alguma coisa, não sei se esse filho seria uma tragédia ou, pelo contrário, uma dádiva. Sinceramente, não sei. Mas, se permitisse o aborto (e eu coloco essa hipótese), a minha filha deveria ir presa? Aceitaria e consideraria essa punição como razoável, apropriada, proporcional?
Perceberão agora porque é que, na questão do aborto, não consigo deixar de me contradizer? Perceberão agora porque é que, ainda que inconsistentemente, sou contrário à despenalização e, ao mesmo tempo, não consigo apoiar a criminalização?
PS: O João Noronha, sempre rápido e atento, já comentou este 'post', escrevendo, a propósito da expressão "idiotas da objectividade": "Vou agora retirar o barrete para poder continuar a ler o post" e "nunca ninguém falou em prisões sumárias". Se assim é, caro João, não tens de enfiar o barrete. Aliás, a referência aos "idiotas da objectividade" não foi colocada a pensar no Valete. Quanto ao "ninguém falou", bom... sabes perfeitamente que há quem vá por aí. Por último, escreves: "O Contra-a-Corrente é incoerente porque o amor que sente pela sua filha é superior ao amor que sente pelas crianças não nascidas." Sim, nesta matéria sou incoerente. Contradigo-me. Meto os pés pelas mãos. Defeito meu. Mas atrevo-me a colocar a questão: a partir de quando podemos falar em "crianças não nascidas"?
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