O MacGuffin

segunda-feira, janeiro 12, 2004

O PROCESSO “CASA PIA” E A LIBERDADE DE IMPRENSA
1. Começo por transcrever, com a devida vénia, um dos melhores artigos que li sobre o assunto, da autoria de Alberto Gonçalves, publicado no Correio da Manhã:

“O que é mais grave? E mais estúpido? Escrever uma carta anónima em que se chama o dr. Jorge Sampaio, além de outras pessoas públicas, à história da Casa Pia? Anexar a dita carta ao processo? Seleccionar cuidadosamente dois nomes e soprá-los pela imprensa? Aceitar a selecção e divulgá-la? Escrever, em consequência, setenta artigos indignados acerca da crise da Justiça, das nuvens que ameaçam o regime e blá, blá, blá? Ser Presidente da República e fazer uma intervenção específica sobre a matéria?
É difícil avaliar a gravidade. Não é tão difícil medir a estupidez. Das acções acima, algumas são de autoria desconhecida (a carta, a violação do segredo de Justiça), pelo que se torna ingrato comparar os resultados suscitados com os objectivos pretendidos. Os restantes gestos variam entre o altamente discutível e o refinado absurdo, como a circunstância de um chefe de Estado elevar uma "denúncia" anónima a tema de comunicado oficial. Ou, já agora, o facto de o Parlamento, numa elegia à separação de poderes e inspirado pela perpétua indignação do dr. Alegre, debater a alegada exibição de alegadas fotografias, durante os inquéritos às testemunhas.
Não é só a unanimidade que é burra, como pretendia Nelson Rodrigues: o folhetim "Casa Pia", que tem erguido robusto monumento à asneira, é plural até dizer chega. Qualquer um (e aqui a expressão tem sentido literal), guiado por insidiosos propósitos ou cândida convicção, escolhe um método e um alvo. Em seguida, desata a disparar.
Os tímidos escrevem cartas e largam informações. Alguns, a minoria ruidosa, voltam a artilharia para o dr. Souto Moura, o procurador João Guerra ou o juiz Rui Teixeira. Outros suspeitam da defesa dos arguidos. Outros ainda atiram-se fatalmente aos media, com palpites de censura e tudo. O bom povo culpa o "Bibi", os políticos, a "pouca-vergonha", a humanidade em geral. E o PS insiste no famoso lamento contra desconhecidos, popularizado como "A Cabala". Pelo meio, ninguém percebe nada, e é possível que a incompreensão absoluta seja mesmo a finalidade do exercício.
Sugere-se, no entanto, relativa calma. O tiroteio diário em que o processo da pedofilia se transformou não vai acabar com o regime nem destruir de vez o sistema judicial: por este andar, vai apenas reduzir o processo da pedofilia a coisa nenhuma. Eis um desfecho que uns tantos sonharam e muitos temeram. Mas para o qual, salvo raras excepções, todos terão contribuído.”


2. Sobre a liberdade de imprensa, relembro o que escreveu JMF no Terras do Nunca: “A liberdade, seja ela de imprensa ou de qualquer outra coisa, exige responsabilidade.” De acordo. Assim como se exige responsabilidade de advogados, Ministério Público, juízes, presidentes, políticos, etc. Alguém poderá afirmar, na posse das suas faculdades mentais mínimas, que, à excepção dos jornalistas, todos se portaram responsavelmente? Alguém conseguirá garantir que são os jornalistas os principais responsáveis pela violação do segredo de justiça? E, antecipando desde já um “não”, a irresponsabilidade, sendo transversal, terá sido de igual grau em todos os agentes? É evidente que não. E até os excessos do bode expiatório do costume (a imprensa) têm de ser friamente analisados. Atente-se no «caso» JN. O Jornal de Notícias deu conta da anexação ao processo de cartas anónimas onde eram referidas figuras públicas de relevo. Nessa mesma notícia, o JN mencionou alguns nomes, entre os quais o do Presidente da República. A notícia violou o segredo de justiça? Em que termos? Caso a informação tenha sido sussurrada aos ouvidos de um jornalista do JN, qual era o seu dever: esconder, não divulgar, sonegar, passar para outro? Em boa verdade, a notícia do JN foi correcta do ponto de vista deontológico. Ninguém leu no JN: “Sampaio está ligado ao caso de pedofilia da Casa Pia” ou coisa que o valha. O «core business» da notícia era apenas um: o facto de constarem no processo cartas anónimas que não foram desvalorizadas ao ponto de levarem o fim que provavelmente mereceriam: o cesto dos papeis. Ou talvez não. Ou seja, o JN levantou uma questão importante, que passa, inclusivamente, pela aferição da legalidade do acto (o de anexar cartas anónimas consideradas “irrelevantes”). O que se passou a seguir (o comunicado do PR e os acidentais desmaios do poeta Dr. Alegre) foi um pouco Much Ado About Nothing. No seio da sua declarada irresponsabilidade, a maldita liberdade de imprensa voltou a ter o mérito de suscitar o debate em torno da necessidade, razoabilidade ou utilidade de apensar cartas anónimas a processos judiciais.

3. Mas importa formular outras questões. O facto de ter havido excessos por parte de certos jornalistas e órgãos de comunicação social, impõe na agenda política a necessidade de se legislar para os pôr na ordem? Torna necessária a convocação de um Conselho de Estado extraordinário? Dito de outra forma, será por decreto ou intimidação que se injectará a desejada responsabilidade? Não haverá já legislação que baste? Legalmente, não existirão mecanismos adequados para colmatar ou corrigir eventuais excessos? O problema não residirá no facto de não se terem punido no passado, inequívoca e pedagogicamente, os tais excessos, não só da imprensa, mas também? O problema não resultará do facto de estarmos pela primeira vez, em trinta anos, a passar por um processo que envolve políticos no activo a um caso sórdido, bem como figuras de relevo da vida pública? Tudo o que está a acontecer não será fruto da nossa virgindade e da nossa pueril imaturidade em termos de cidadania e de confronto com cargas deste calibre?

4. Como sugeriu Pacheco Pereira, seria bom que toda a gente se calasse. Seria bom que, sobre o processo Casa Pia, descesse um véu de serenidade, equilíbrio, moderação. Mas é igualmente benéfico que isso não seja feito à custa da liberdade de imprensa, principalmente através de legislação ad hoc, forjada a quente. A não ser que se pretenda que Portugal se transforme numa república onde, em nome de uma pia e casta contenção noticiosa, se varra acabrunhadamente tudo para debaixo do tapete. A avaliar pelo caso de pedofilia da Casa Pia, disso já nós consumimos durante décadas. Seria importante perceber que certos «excessos» de liberdade de imprensa, para além de inevitáveis, fazem parte do jogo a que denominamos de democracia, e do facto de vivermos em liberdade. E que não há critério formal ou preceito jurídico particular capaz de os dissipar. A não ser a maturidade, o bom senso e o tempo.

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