O MacGuffin: agosto 2004

terça-feira, agosto 31, 2004

NÃO, SIM, NÃO E SIM
(corrigido)
1. Rui Silva (grande companheiro cinéfilo eu arranjei!), escreve, a propósito do meu post: [No "Lifeboat"] não concordo com o significado "metafisico" que o MacGuffin dá ao personagem do comandante alemão e ao seu comportamento” e “Estamos a falar de um filme de propaganda não estamos a falar de nenhum tratado de filosofia politica!”
Não se trata de “significado metafísico” ou de um “tratado de filosofia política”: trata-se, tal como eu escrevi, de uma “parábola politico-filosófica” que nos remete para questões bem mais sérias. O nazismo - como, aliás, a maior parte dos totalitarismos com origem na tirania das ideias (conduzido por ‘filotiranos’, como lhes chamou Mark Lilla) - alimentou-se, de inicio, desse logro que foi convencer as massas da superioridade “nas artes do mar” para, assim, liderar e conquistar. Como referi, o filme (Lifeboat) teve, e ainda tem, imensas leituras. A que eu apresentei é uma delas. Perfeitamente legítima e justificada. Acho insuficiente tratá-lo como um simples filme de «propaganda».

2. Não me parece que as personagens, em Lifeboat, sejam meros estereótipos, como se se tratassem de caricaturas de espécies humanas. São, todos eles, figuras que apresentam falhas de carácter, contradições, capazes do bom e do pior. Nesse aspecto, Hitchcock, como era seu atributo, não poupa ninguém. Estão ali, naquele barco, várias personagens que compõem, cada um à sua maneira, as pífias misérias humanas mas, também, o que alma do homem pode ter de maior.

3. Diz o Rui, depois, que ”Para o MacGuffin [uma boa história] parece ser uma história que fale de temas "importantes"”. Nonsense! Não é nada disso. Uma história bem contada em cinema pode versar sobre temas perfeitamente comezinhos, de importância filosófica ou metafísica quase nula, e resultar num grande e inspirado momento de cinema (The Royal Tenenbaums, por exemplo). Um filme pode partir de uma fonte «defeituosa» e, ainda assim, resultar. Há, inclusivamente, exemplos clássicos de filmes maiores baseados em histórias/livros menores: o To Have And Have Not, de Howard Hawks, adapta um romance medíocre de Hemingway. E o contrário também se verifica: grandes livros/histórias adaptadas de forma miserável (compare-se o Lolita do Kubrick com o Lolita do Adriam Lyne). Existem filmes de cariz político que serviram somente para contar uma grande história de amor, plots que foram lançados para o ar mas que se revelaram irrelevantes para o core business do filme (os MacGuffin de Hitchcock: o plutónio emm Notorious, os microfilmes em North By Northwest, a cleptomania em Marnie, etc.). E vice-versa: filmes sobre questões «simples», histórias supostamente «encerradas» logo à partida, que nos conduzem a parábolas sobre política, sobre a condição humana, sobre a ética e a moral, sobre a vida, etc. (boa parte dos filmes de Jacques Tati e de Woody Allen enquadram-se nesta categoria; o M de Fritz Lang; The Elephant Man de Lynch, etc. etc.).

4. Um par de amigos, cuja palpitação homossexual é latente, decidem orquestrar e perpetrar o assassínio de um amigo e colega sob os narizes dos seus familiares, pelo simples facto de sentirem que são intelectualmente superiores à ralé (os outros) e porque tal acto causa neles uma imensa excitação; um professor que, sentindo que tinha servido perversamente de fonte de inspiração, tenta desmontar a trama; poderão estas três personagens ser consideradas «superficiais» ou «desinteressantes» num filme? À partida, não creio. Muito depende da forma como se conta a história. Nesse aspecto, Hitchcock sempre soube o que fazia. Rope é, sob todos os aspectos, um grande filme.

5. Qualquer pretexto para publicar imagens de Notorious é um bom pretexto.


DESCULPA ZÉ MÁRIO: NÃO!
José Mário Silva : Ninguém está completamente certo, nem completamente errado, quando se fala da questão israelo-palestiniana. Foi nisto que pensei quando li a terrível notícia (mais uma) que o Jorge citou. Se todos tivéssemos isto presente, talvez houvesse menos equívocos. E talvez fosse mais fácil dialogar sem entrar em antagonismos tão exacerbados quanto estéreis.

Quem se faz explodir dentro de um autocarro com civis a bordo – bebés, crianças, idosos e adultos –, e quem organiza essa barbárie, está ERRADO. ERRADO. Nada o justifica: nenhum pedaço de terra, nenhuma religião, nenhum antagonismo, nenhuma “lei do universo”, por mais conhecida que seja. O relativismo e as meias tintas do ”ninguém está completamente certo, nem completamente errado”, aplicado no contexto de um nojento atentado terrorista, é, para mim, totalmente execrável.

Era só isto que eu queria «exacerbar». Sem «equívocos». Extensível para o outro lado.
POIS CONCORDO
Pondo de parte parte as passagens que nos remetem para a a falta de jeito (vulgo "azelhice") de Eduardo Prado Coelho em matéria de bricolage (as instruções para a montagem dos móveis são simples e claras), subscrevo, na íntegra, a sua crónica de hoje, no Público, sobre o Ikea - o que me preocupa sobremaneira uma vez que, das raras vezes que fui assaltado por estados de alma consonantes com a escrita do excelso articulista, estava, segundo relatório médico circunspecto, à beira de uma de duas coisas: depressão ou bexigas loucas. Eis um excerto:

“Já em Paris eu tinha feito uma experiência semelhante: ir ao Ikea, uma nova concepção de venda de móveis e objectos para a casa. Tinha ficado com a ideia de que o que se poupava em termos de dinheiro tinha um custo em desgaste psicológico. Obtive em Portugal a confirmação.(…)
Um dos elementos desta estratégia consiste em criar um espaço de desorientação assegurada. A gente procura por onde entrar e é-nos dado um papelinho que deverá ser preenchido à medida que escolhemos os objectos de formato avantajado. A isto correspondem números de corredores e filas onde esses objectos se encontram - quando se encontram. Porque a minha escolha revelou-se infrutífera, uma vez que o objecto estava esgotado (suponho, porque não havia ninguém para me esclarecer). Entretanto, a gente vai rodando, passa três vezes pelo mesmo sítio, não consegue reencontrar o sítio onde já passou e onde viu algo que lhe interessava, e deixou de saber onde se situam os pontos cardeais. Sente um cansaço progressivo, aproveita a zona dos sofás para descansar um pouco, mas aparentemente não consegue parar.”

É MAIS FORTE DO QUE ELE
Infelizmente, ainda está para nascer o dia em veremos o JMF escrever: “Entretanto... no Médio Oriente, o resultado da política Sharon/Arafat está à vista”. Em matéria de animais vertebrados, de sangue quente e com o corpo revestido de penas, Arafat nunca será visto, por JMF, como ave de rapina (tipo falcão). Será sempre uma andorinha. Quanto muito, uma pomba. E convém sempre juntar à fotografia de Sharon a do diabinho em pessoa: Mr George W Bush. É fácil, é barato e a questão fica resolvida e explicadinha. A culpa do atentado é de Sharon? Ah, pois, é aquela história das «causas do terrorismo», não é?

Entretanto, ficámos também a saber que, entre as dezenas de actos antisemitas praticados já este ano em França, para JMF só interessam os “mais mediatizados” (dois ou três) – os quais, vejam só, até são contrários à tendência. Que jeitaço!
ATENTADO EM ISRAEL
No Público:
Duplo atentado no sul de Israel causa 12 mortos
"Pelo menos doze pessoas morreram hoje num duplo atentado perpetrado em dois autocarros em Beersheva, no sul de Israel. O balanço foi feito por Maguen David Adom, dos serviços de socorro israelitas.
Segundo o porta-voz, Yeruham Mendola, este duplo atentado aconteceu às 15h00 horas (12h00 em Lisboa) e provocou ainda 35 feridos, dos quais muitos estão em estado grave."

No Jerusalem Post:
"Magen David Adom said 12 people were killed in the attacks, all of whom died at the scene. 100 people were wounded and taken to Soroka Hospital not far from the site of the attack. Seven are listed as critical; 12 are listed as serious, and the rest of the wounded are listed in light-to moderate condition. One of those fighting for his life in Soroka's operating theatre is a three-year-old child, Channel 1 TV reported."

No Haaretz International:
"At least 12 people were killed and 91 others were wounded Tuesday afternoon in near-simultaneous suicide attacks on two buses in the southern city of Be'er Sheva."

Apenas uma «ligeira» (cerca de 95 feridos) diferença. Devem ser os critérios.

O QUE É QUE TENS FEITO POR NÓS ULTIMAMENTE?

MAU GOSTO
Ana Gomes, num post em que fala da “legalização da IGV” (sic), ou seja, da Interrupção Goluntária da Vravidez, escreve, a dada altura:

“Claro que se a moral pública estivesse em causa, o heróico Ministro Portas não hesitaria em dar corpo e cara, na dianteira contra a esquadra invasora. Dizem que até já fez o reconhecimento do Parque Eduardo VII, jardins de Belém e outros pontos do país suspeitos de serem instrumentais para actos de pedofilia, decerto antecipando ter de mandar tropas, aviões e submarinos para defender a moral pública se o julgamento do caso Casa Pia confirmar os mais alarmantes rumores.”
e
”A propósito, o Presidente Sampaio foi ouvido e concordou com a proibição, ou já não é preciso passar-lhe cartão, nem sequer adoçar-lhe a pílula?”

Comentários?
ESTAMOS SEMPRE A APRENDER - II
Jorge Palinhos descobriu que “a sugestão [de um leitor do Contra a Corrente] traz água no bico”. Extraordinário.
ESTAMOS SEMPRE A APRENDER - I
O JMF, que se encontra "embarcado a bordo do BdA com as holandesas abortadeiras", ainda teve tempo para nos dizer que, para ele, uma andorinha faz a Primavera. Extraordinário.

segunda-feira, agosto 30, 2004

INTEIRAMENTE DE ACORDO
Pacheco Pereira, no Abrupto:

“UMA PERIGOSA ESTUPIDEZ
As revistas feitas pela Polícia Marítima a um barco português só se justificam caso haja séria suspeita de que este esteja envolvido numa actividade criminosa. Não se fazem revistas a um barco (ou a um carro, ou seja lá o que for) para intimidar as pessoas que lá vão. As forças armadas portuguesas não podem ser usadas para acções de intimidação contra cidadãos que não estão a violar nenhuma lei, mesmo que não se concorde com as suas acções e opiniões. As forças armadas portuguesas não podem ser usadas para servir de cobertura a encenações políticas. O Presidente da República é posto directamente em causa se não fizer ou disser nada.”
A INSUSTENTÁVEL INCAPACIDADE DE PENSAR LIVREMENTE
Daniel Oliveira escreveu um pequeno e esclarecedor texto sobre Zita Seabra, que se pode resumir, mais ou menos, nisto: quem é contra a vinda do BdA é contra : 1) a Esquerda; 2) a despenalização do aborto; 3) a interrupção voluntária da gravidez; e, last but not least, presta-se a "servir a Direita”.

Lembrei-me do Nelson Rodrigues: ”Há sujeitos que nascem, envelhecem e morrem sem ter jamais ousado um raciocínio próprio. Há toda uma massa de frases feitas, de sentimentos feitos, de ódios feitos”. Não, esqueçam o Nelson. O problema é diverso. Daniel Oliveira é uma pessoa inteligente que decidiu não entender o artigo de Zita Seabra. Daí que tenha pegado no artigo pelo lado mais mesquinho. Compreende-se. Alcançar os argumentos de Zita Seabra pressupõe um desvio, ainda que milimétrico, do tipo de formatação e engajamento político-ideológico a que a mente do Daniel está habituada. Sejamos sinceros: Daniel Oliveira jamais se sujeitaria a isso. Seria atraiçoar um «ideário» e um «passado», renegar a uma «postura», prostrar-se perante o «adversário». Reconheça-se-lhe, ao menos, a coerência.
ACOSTAGEM ABORTADA
(corrigido)
JMF concorda com a acostagem do BdA (“Barco do Aborto”). E, afirma, só mesmo os “distraídos” não entendem a forma como, supostamente, o governo anda a inverter prioridades. Pois. No que respeita à “inversão de prioridades”, deve ser do mesmo tipo da praticada por certos partidos, políticos e aspirantes a políticos, cuja agenda, na busca de assuntos ideologicamente «fracturantes», revela um enorme deserto de ideias relativamente às questões mais prementes que afectam o dia-a-dia dos portugueses.

Sobre o BdA, reafirmo o que já escrevi: é um acto de propaganda inconsequente, desnecessário e, como manobra política, um pouco ridículo. Não vai resolver absolutamente nada. Alimentará, apenas, o barulho dos extremistas, de ambos os lados. Não concorrerá para algum tipo de consenso. Representa uma provocação à autoridade de um Estado de Direito e levanta algumas dúvidas do ponto de vista de saúde pública. Resta-me uma dúvida: o Terras do Nunca e o Barnabé terão capacidade para compreender e respeitar que pode ser-se contra o BdA e a favor da despenalização?

Transcrevo duas passagens do notável artigo de Zita Seabra, no Público, sobre o assunto:

“Alguma esquerda, na falta de melhores bandeiras (proletariado já quase não há e a realidade laboral nas empresas ou na agricultura é radicalmente diferente da anterior) serve-se do aborto como de uma importante trincheira que resiste. Assistimos ciclicamente a lutas internas, a declarações e promessas de candidatos a secretários-gerais, de dirigentes partidários falando do aborto como se fosse a principal questão para avaliar da fidelidade à esquerda de um dirigente. E aqui está o aborto transformado em potencial direito cívico. Ou até em manobra de diversão como é o caso da vinda do barco holandês. Passa pela cabeça de alguém imaginar que alguma mulher, mais ou menos jovem, com mais ou menos dificuldades económicas, se dirige a um barco que é exibido de forma ostensiva e degradante nas televisões e lá entra para fazer um aborto em alto mar? Evidentemente que não.
Tanto mais que Portugal tem desde 1985 uma lei aprovada que foi, podemos dizê-lo sem medo, referendada há três anos pelos portugueses."

“A política de um Estado democrático deve ter como objectivo impedir que alguém recorra ao aborto por absoluto desconhecimento de alternativas, por desinformação, ou por uma tradição rural radicada nos desmanchos que as avós faziam.
Eis, porém, que alguns, na ausência de bandeiras de luta, de reivindicações mobilizadoras tiram da cartola o aborto como se tratasse de um pilar demarcador entre direita e esquerda, gerando dois tipos de reacção."

ANTES PELO CONTRÁRIO
(ou Já Não Se Trata Apenas De Uma «Ligeira» Diferença)
A propósito de Rope e Lifeboat, o Rui escreveu: ”O Lifeboat tem um problema semelhante (embora em menor escala). Mesmo assim é muito divertido! Nunca nos podemos esquecer que num filme a técnica não existe sozinha. Existe para servir uma história e os caracteres nessa história. Eu sei que é uma abordagem conservadora e americana. Mas é a minha e penso que é a correcta.”

Concordo, inteira e incondicionalmente, com a última parte (“que a técnica não existe sozinha”, mas sim “para servir uma história”). A sua abordagem é a minha abordagem. Mas dificilmente se poderá afirmar que a técnica, em Rope e Lifeboat (mais em Rope), foi apenas um fim. Pelo contrário: foi o meio encontrado para melhor servir a história (por sinal histórias com pontos de contacto mais do que aparentes), repleta de personagens ricos, complexos. É precisamente a técnica empregue em Rope que confere ao filme maior dramatismo, realismo (a forma como Hitchcock joga com os timings de entrada de certas cenas é perfeito) e suspense. Relembro o que escrevi, há uns tempos atrás, sobre Lifeboat:

Ontem lembrei-me de Lifeboat (“Um barco e nove destinos”, 1944). Lifeboat é, juntamente com Rope e Rear Window, um dos filmes em que Hitchcock filma recorrendo a um único cenário, numa aparente mas falsa «simplicidade» formal.
Lifeboat conta a história de nove sobreviventes de um naufrágio, provocado pelo bombardeamento de um navio norte-americano por um submarino alemão. Nove personagens – todas diferentes, nada iguais - são empurradas para cima de um bote salva-vidas, e «obrigadas» a conviver entre si. Entre eles, encontra-se Willy (Walter Slezak): o alemão que dirigia o submarino. Willy, escondendo a sua identidade, revela-se o mais inteligente, forte e confiante de todos. Com o passar do tempo, as restantes 8 personagens deixam que Willy passe a comandar o bote. Ou seja, depositam nele a sua confiança. E Willy passa a comandá-los com uma intenção: conduzi-los na direcção de um navio alemão. Mais tarde, retirada a máscara e descoberta a sua identidade, Willy acaba a ser linchado pelos outros passageiros.
O filme gerou muita controvérsia em 1944/45. Houve quem tivesse acusado Hitchcock de propaganda, houve quem o tivesse acusado de tentar nivelar moralmente tudo e todos (uma vez que os defeitos e os tiques dos outros passageiros também não eram escamoteados). Houve, ainda, quem tivesse insinuado que, com a sequência do linchamento (uma sequência particularmente brutal), Hitchcock quisesse dizer que os que têm razão (os 8 que estavam a ser enganados) a podem perder.
Pela minha parte, vislumbrei sempre uma parábola politico-filosófica, na forma como, perante a aparente superioridade, tenacidade e racionalidade de Willy, os restantes (na sua maioria uns pobres coitados) fizeram repousar nas suas mãos os seus próprios destinos. E foi então que me lembrei de Isaiah Berlin. Mais concretamente, de uma carta sua dirigida a George Kennan, como resposta ao comentário deste em relação ao seu livro Political Ideias in the Twentieth Century (mais tarde incluído no livro Four Essays On Liberty):


”When armies were slaughtered by other armies in the course of history, we might be appalled by the carnage and turn pacifist; but our horror acquires a new dimension when we read about children, or for that matter grown-up men and women, whom the Nazis loaded into trains bound for gas chambers, telling them that they were going to emigrate to some happier place. Why does this deception, which may in fact have diminished the anguish of the victims, arouse a really unutterable kind of horror in us? The spectacle, I mean, of the victims marching off in happy ignorance of their doom amid the smiling faces of their tormentors? Surely because we cannot bear the thought of human beings denied their last rights – of knowing the truth, of acting with at least the freedom of the condemned, of being able to face their destruction with fear or courage, according to their temperaments, but at least as human beings, armed with the power of choice. It is the denial to human beings of the possibility of choice, the getting them into one’s power, the twisting them this way and that in accordance with one’s whim, the destruction of their personality by creating unequal moral terms between the gaoler and the victim, whereby the gaoler knows what he is doing, and why, and plays upon the victim, i. e. treats him as a mere object and not as a subject whose motives, views, intentions have any intrinsic weight whatever – by destroying the very possibility of his having views, notions of a relevant kind – that is what cannot be borne at all.”

É esse engano, esse logro e esse artifício, levado a cabo por homens com capacidade para o fazer contra outros, que esteve tão presente naquilo que, há dias, eu escrevia sobre o Sec. XX: “um século pontuado por desastres resultantes não tanto dos problemas mas sim das soluções, não tanto de forças alheias à vontade humana mas de ideias e de acções ditadas pelas ideias.



Rope e Lifeboat contêm histórias riquíssimas e abordam temas inesgotáveis. É injusto insinuar que se tenham tratado de puros exercícios técnicos.

domingo, agosto 29, 2004

Ó PORTAS: AFINFA-LHE COM O SUBMARINO!
São, para já, duas as lições a retirar da polémica em torno do barco holandês - que, supostamente, salvará milhares de criaturas de uma gravidez indesejada.

A primeira, que o fundamentalismo tipo «Na-Barriguinha-Da-Ana-Drago-Mexe-Só-A-Dita-Cuja-E-Sempre-Que-Lhe-Aprouver», para além de histérico, é irresponsável e burro. Desde logo porque alimenta o outro, ou seja, o de sinal contrário. A vinda do barco holandês não vai resolver nada da questão de fundo. Voltarão, apenas, a extremar-se posições e a esgrimirem-se argumentos batidos e rebatidos. As coisas, a mudar, terão de mudar por outro lado e doutra forma. Não é, certamente, com este tipo de acções importadas (a propensão portuguesa para o que é importado é já longa) e, pela sua natureza, hiper-mediatizadas, que se chegará a algum lado. Não é, certamente, colocando a questão como um confronto entre “bons, civilizados e sofisticados” e “feios, porcos e maus” que se abrirá caminho ao que quer que seja. O assunto é demasiado delicado para suportar este tipo de espectáculos. Mas a cabecinha dos fundamentalistas raramente pára para pensar. A insinuação do gesto e a berraria parecem valer tudo.

A segunda, que a «modernidade» do Eng. Sócrates é, afinal, de grosseiro recorte demagógico. A maneira como o Eng. agarrou o assunto (com aquele ar de "eu é que estou a ver o filme") não deixa margem para dúvidas: Sócrates é um vazio de ideias e um político tristemente previsível. Na urgência de ser moderno e progressista, acaba sendo, ironicamente, reaccionário. Para o Eng., e para a esquerda em geral, parece ser assunto menor o facto desta «acção» representar uma provocação sobre a autoridade do Estado português, com algumas reservas do ponto de vista da legalidade. Mas, pondo de lado este ponto (que não encaixa hoje, nem nunca encaixará, na cabeça da maior parte dos esquerdistas), eu pergunto: mesmo os que defendem a despenalização do aborto não deveriam, antes de abrir a boca para se indignarem contra o Dr. Portas e o “Sr. Lopes”, interrogar-se sobre as condições sanitárias do barco, a existência (ou não) de pessoal técnico e especializado, se este será realmente competente e «especializado», se existe alguém a controlar os timings de cada gravidez, se a supervisão está a cargo de entidade idónea e independente? Parece que não. O que interessa é pegar a onda. O resto? Pormenores sem a mínima importância.
MUITA CALMA
Caro Rui, acalme-se: o meu comentário, no que respeita a “taus-taus” e “lições”, não era para ser levado a sério. Escrevi-o com um sorriso não cínico. Ninguém aqui pretende dar lições a ninguém. Obviamente. E, apesar de referir o meu apreço por polémicas, não me parece haver lenha suficiente para atear o que quer que seja.

Dito isto, reparo que se esqueceu de arrolar no lote dos “maiores de Hitch”, filmes como Rope, I Confess, Shadow of a Doubt e The Birds (o qual passou a ser moda desprezar). Desculpe perguntar: serão «menores», «semimaiores», «semimenores» ou «semimaiores-a-caminho-de-maiores»? Se é conhecedor do universo hitchcockiano e se gosta e sabe de cinema, saberá muito bem que, por exemplo, Shadow of a Doubt é grandioso. Que Rope é magistral. Ou seja, que estes quatro filmes são filmes maiores em qualquer filmografia. E, já agora, o que diz de Lifeboat? Para mim é um lobo (maior) com pele de cordeiro (menor).

Quanto ao The Trouble With Harry, dificilmente o poderá encaixar numa categoria. Pelo menos numa categoria com companhia. The Trouble With Harry é um filme singular na filmografia de Hitchy (merde: Hitch!). Compará-lo com qual? Com o quê?

Quanto aos “Malucos do Riso”, não está propriamente a falar com alguém que considera os Malucos do Riso o “cume da sofisticação do humor português”. Eis o que penso: registar-se-á, entre nós, uma ligeira diferença de sensibilidade relativamente ao lado humorístico do Mestre. Sobretudo em The Trouble With Harry (a não ser que o Rui considere que o tipo de humor do filme seja comparável ao dos Malucos do Riso). Nada mais. E digo ligeira porque quando diz que North By Northwest é um dos filmes mais divertidos de Hitchcock, estou 100% consigo. Divertido em todos os aspectos: na trama, nas referências sexuais, na mise-en-scene e, claro, nos pequenos apontamentos humorísticos. Sinceramente, Rui, para quê essa dos Malucos do Riso enquanto se discutia algo «ligeiramente» mais elevado? Tirada infeliz e dispensável, foi o que foi. Mas não se rale: acontece a todos.

Para terminar, dando um toque «construtivo» à coisa (cai sempre bem), resta-me congratular-me por estar a discutir com outro fã incondicional de Hitchcock. Ou Hitch. Ou Hitchy. Whatever.

PS: E sim, o 39 Steps é um dos melhores filmes de Hitchcock.



sexta-feira, agosto 27, 2004

IS REAL GOLD
A primeira medalha de ouro de sempre para Israel foi alcançada por Gal Fridman. Parabéns!!



(um leitor do Contra, em jeito de provocação, sugere que o Terras do Nunca e o Blogue de Esquerda deviam publicar a fotografia.)
SEJA FEITA A SUA VONTADE
Rui Silva comenta o meu “Hitchy”, em jeito de lição (sub-género ‘tau-tau’).

Bem sei, caríssimo Rui, que é “Hitch”, mas há muito tempo que utilizo, por minha conta e risco (tipo private joke), o “Hitchy”. Mas se lhe faz assim tanta confusão, faça-se a vontade: falemos, então, de Hitch.

Diz Rui Silva que o 39 Steps é o melhor Hitch do período inglês. Que “tem humor, acção, mistério, romance e a perversão habitual do Mestre”. Ó p’ra mim a escrever o mesmo de The Lady Vanishes: tem humor, acção, mistério, romance e a perversão habitual do Mestre. Certo? Trata-se, por isso, de uma mera opinião (tal como, aliás, a minha). Além do mais, Rui Silva estava um pouco distraído: eu escrevi "The Lady Vanishes é um dos melhores filmes do período inglês de Hitchcock".

Concordo com Rui Silva no reparo que faz ao que Pedro Oliveira escreveu: não se trata de uma “crítica à mentalidade insular”, antes uma espécie de celebração e invocação dessa mesma mentalidade.

A forma como Rui Silva atribui a The Trouble With Harry o epíteto de "filmezinho anónimo" e "comédia negra menor" nem merece ser comentada. Se há filme, na história da 7.ª arte, que brinca e se diverte com a tal “mentalidade insular dos ingleses” (onde se inclui uma propensão para o non-sense), é este. Lamentáveis as palavras de Rui Silva.

Finalmente, essa do “humor a sério” não pega. São muitos os filmes de Hitch onde o humor marca presença (o próprio Hitchcock, nas suas entrevistas, salientava isso mesmo). O facto de haver momentos humorísticos de antologia em North By Northwest (que os há, evidentemente), não faz deste o filme do “humor a sério”. O mesmo tipo de humor, em doses mais ou menos equivalentes, pode ser encontrado em Rear Window (os diálogos com Thelma Ritter são soberbos desse ponto de vista), em To Catch a Thief ou nos já referidos The Lady Vanishes e 39 Steps.

quinta-feira, agosto 26, 2004

HITCHY
Pedro Oliveira tem razão: The Lady Vanishes é um dos melhores filmes do período inglês de Hitchcock. Desse período é, seguramente, o filme onde mais se nota o lendário e exquisite sentido de humor do realizador (embora não chegue a ser tão hilariante como The Trouble With Harry) e a abordagem de Hitchy às idiossincrasias dos ingleses. Só discordo de uma coisa: o The Man Who Knew Too Much de 1934 é, na minha opinião, superior ao de 1956.


XIII! DO QUE ELE FOI FALAR…
Celso Martins recorda essa mítica banda australiana chamada The Triffids, liderada por David McComb. Os Triffids são parte integrante do meu passado e devo-lhes o facto de gostar de música pop (mas também aos Go-Betweens, Smiths, Lloyd Cole, etc.). Os Triffids foram um dos principais responsáveis, na década de 80, pela elevação da fasquia da música pop, no que à qualidade diz respeito (ela que, ainda assim, continua a ser diária e sistematicamente conspurcada por toneladas de lixo). Trouxeram para a pop um tom intimista e um romantismo não piegas, cantaram a solidão e a melancolia com os great outdoors australianos como pano de fundo. Born Sandy Devotional é, simplesmente, um dos melhores álbuns pop de sempre.

Belíssima e oportuna recordação, Celso (não achas Umbigo?)


COMENTÁRIOS
Rui Tavares resolveu comentar a discussão tripartida entre moi même, Jorge Palinhos e JMF, a propósito do antisemitismo em França. E volta a tocar na dicotomia esquerda vs. direita. Gostaria, apenas, de lembrar um pormenor: desta vez isso não esteve em discussão no meu blogue. Evitei esse caminho, porque, como reconhece o Rui, é assunto secundário face ao cerne da questão. A única pessoa que fez questão de tocar no assunto, foi Jorge Palinhos, ao referir, no contexto, os «caminhos perigosos» da direita (suponho que contrários ao “caminhos altruístas e clarividentes da esquerda”) e, en passant, trazendo à coacção a posição de outros blogues (no caso a do Acidental, que tinha abordado essa questão em momento anterior).

Dito isto, não percebo, sinceramente, o que possa estar de errado na minha frase. O “em muitos casos” está bem explicito e, julgava eu, não era suposto significar “sempre”. Se a minha frase é assim tão perigosa ou irresponsável, o que dizer das afirmações que tentam fazer do conflito no médio-oriente e da contestação a Ariel Sharon o único móbil do crime, como se o anti-semitismo não pudesse ser arrolado como outra das causas (na minha opinião, uma das mais fortes) da violência perpetrada contra a comunidade judaica em França? Esse é o ponto. Se Ariel Sharon é um criminoso de guerra? Pois…

PS: Apraz-me verificar que o Jorge Palinhos é o J., do extinto Cruzes Canhoto.

quarta-feira, agosto 25, 2004

ENTRETANTO…
Entretanto, nas olimpíadas do Largo do Rato, a prova “Quem é mais de esquerda?” contínua animada. Manuel Alegre, veterano já nestas andanças, tem feito uso de todas as suas vantagens competitivas: o seu passado de «anti-salazarista» (10.0 points), a voz grave e colocada (9.5 points), o facto de envergar fatos de corte tradicional made in Rosa & Texeira (8.0 points) e o facto de ter estado exilado na distante Argélia (9.0 points), têm sido preponderantes na sua boa prestação. O seu maior handicap prende-se com o facto de ser um pouco burguês no trato e bon vivant no bronzeado. O atleta João Soares surgiu em péssima forma física: de braço ao peito e apresentando sinais claros de noites mal dormidas. A que acresce, ainda, o rumor de ter sido dopado pelo seu treinador, Mário Soares de seu nome. Os indícios são, aliás, esclarecedores: a forma perfeitamente ébria como discorre sobre a problemática do “punho cerrado” (1.0 point) não deixa margem para dúvidas. Já o atleta José Sócrates começou mal, afirmando, em primeiro lugar, ser da “esquerda moderna” (fatal neste tipo de prova, 0.0 points) e, em segundo lugar, regurgitando citações atrás de citações, muitas delas contraditórias (afirmando, por exemplo, ser «popperiano» e, ao mesmo tempo, jurando que ninguém lhe dá lições de «socialismo», 1.5 points). O facto de se vestir à “vanguardista sofisticado” na Maconde, também não ajuda (-5.0 points). Tem, no entanto, a seu favor uma boa linguagem gestual (9.0 points) e o facto de ter acompanhado Saramago na entrega do Óscar, perdão, do Nobel (10.0 points). Aguardam-se desenvolvimentos.


Na foto, João Soares antes da lesão e em digressão.
CARÍSSIMO JORGE:
Não sei se reparou mas, na frase “Começa a estar gasto esse novo expediente que invoca a “a confusão entre antisemitismo e contestação às opções políticas do Estado de Israel” para ardilosamente esconder o que, em muitos casos, está por detrás das ditas «contestações»: o mais puro ódio aos judeus”, a expressão “em muitos casos” não é para sempre entendida como “sempre”. E o “novo expediente” a que me refiro não será usado por todos os que tentam separar as coisas – as quais, no caso francês (e era deste que estávamos a tratar, não era?), entendo ser de difícil separação. Desculpe estar a explicar-lhe isto, assim, como quem explica a uma criança, mas como assumiu ser dono de uma «cabecinha», entendi ser necessário fazê-lo.

Curiosa é, também, a sua tentativa de arregimentar outros (neste caso o JMF) com base no putativo insulto da «cabecinha». Não misture terceiros e, peço-lhe penhoradamente, não se arme em «virgem ofendida» e ingénuo. Não sei se reparou mas o meu caro amigo fez o favor de, antes, colocar a minha opinião na prateleira das “tentações totalitárias” (“lapidarmente” foi, se bem me lembro, o termo utilizado). Desculpe se o ofendi com o termo «cabecinha», depois de o meu amigo me ter atingido com o epíteto de “totalitário”. Acredite: foi o termo mais levezinho e inócuo que consegui arranjar. Noto que, ainda assim, o perturbou. Sou, inapelavelmente, uma besta. E das cabeçudas.
VÁ LÁ, JMF: NÃO LHE CHAMEI NADA DISSO
Não o apelidei a si, pessoalmente, de “patético” ou “vulgar” (isso seria uma grosseria). “Patética” e “vulgar”, e também “desonesta”, foi a forma como o JMF resumiu tudo o que eu tinha escrito, até à data, como uma mera teoria que equipararia toda e qualquer crítica às opções políticas de Israel, a uma manifestação de ódio para com os judeus.

E, mais uma vez, volta a não ser rigoroso: o MacGuffin acha que o antisemitismo em França é, regra geral ou maioritariamente, o pano de fundo de toda a história.

Por fim, uma pergunta: quando afirma “se um francês chamar «porco judeu» a alguém, isso é antisemitismo; se o ofensor for um árabe a viver em França, acho que as razões são outras”, devo deduzir que nenhum ofensor árabe é antisemita? Eu também estou farto de lhe dizer que o antesimitismo pode ser o motor, ou uma das causas, do comportamento do “ofensor” árabe. Ou seja, que o conflito no médio-oriente não explica tudo: não explica a natureza, as circunstâncias e o nível de violência de certos actos. Se isto é uma forma “manhosa” e “rasteira” de pôr fim à conversa, estamos entendidos.
ÉPI BERSEDEI TU IU
O Luis Carmelo faz hoje cinquenta anos. Mas a melhor prenda fomos nós – os seus leitores – que a recebemos: "50 Ficcionalidades de Prata" no Miniscente. Obrigado, Luis. E parabéns.
UMA GRAÇA QUE ATÉ EMBAÇA
JMF faz a fuga para a frente, insinuando que eu tenho uma teoria: “És contra as “soluções dos EUA/Israel para o Médio Oriente”? Então odeias os judeus”. Vai daí, ensaia um gracejo: ”estou de castigo, a escrever cem vezes no quadro «eu odeio judeus»”. Ora, esta é a forma mais patética e vulgar de acabar com qualquer discussão.

Nunca, aliás, o insinuei. Limitei-me a dizer que, do meu ponto de vista, creio que boa parte dos actos perpetrados contra a comunidade judaica, em França, terão, certamente, laivos ou fortes motivações antisemitas, a reboque, ou não, da não concordância com as «opções políticas» de Israel.

Quando se apedreja uma mulher e se lhe chama “porca judia”; quando as portas de vários apartamentos pertencentes a judeus são vandalizadas com inscrições do tipo “morte aos judeus”, “matem os judeus” ou “vamos matar a vossa raça”; quando atacam um rabino golpeando-lhe a cara e o estômago ao mesmo tempo que lhe chamam “judeu sujo”; quando um cemitério judaico é vandalizado, com cerca de 60 campas pintadas com suásticas; pode até ser verdade que «as opções políticas» de Israel pairem no ar das motivações, mas, mais uma vez, eu digo: pela tipologia dos actos, estas manifestações são clara e brutalmente antisemitas.

Acredito que, em França, haja quem se manifeste exclusivamente contra as «opções políticas» de Israel. Da mesma forma que um crítico da administração Bush não é automaticamente um antiamericanista, um crítico das políticas de Israel não é necessariamente um antisemita. Mas não creio, francamente, que as críticas às opções políticas de Israel (por muito legítimas e certeiras que sejam) se possam encaixar na tipologia dos actos acima descritos. Assim como, estou em crer, muitas das manifestações contra Israel escondem motivações antisemitas e albergam no seu seio antisemitas primários. Basta, aliás, pensar nisto: por que razão não há uma só manifestação, um só acto publico que aponte o dedo à Autoridade Palestiniana e a Yasser Arafat? Não são eles, também, co-responsáveis pela “loucura do médio-oriente”? E por que razão às criticas contra as políticas de Israel, se associam, quase sempre, referências aos judeus e ao judaismo? (lembram-se, no ano passado, de uma fotografia referente a uma manifestação contra a guerra no Iraque, onde se via uma jovem com um cartaz «Kill the Jews»?)

Mas nada disso interessa. Pelos vistos, JMF quer brincadeira. Cá vai: “eu odeio árabes, eu odeio árabes, eu odeio árabes”. Pronto. Está bem assim, JMF?

PS: Espero que este post sossegue a cabecinha de Jorge Palinhos e o ajude na compreensão do meu ponto de vista, uma vez que, sem apelo nem agravo, a minha opinião foi alinhavada com ”tentações totalitárias”. Eu não sou, obviamente, o defensor oficioso da direita – até porque existem direitas e, já agora, esquerdas que quero ver bem longe. Mas aconselhava Jorge Palinhos a preocupar-se, também, com os “caminhos perigosos” que a esquerda anda a trilhar. Incluindo os de tendência “totalitária”. Evite, por exemplo, retirar frases do seu contexto original. E evite a demagogia de colar nos outros rótulos e slogans por 'dá cá aquela palha'.

terça-feira, agosto 24, 2004

UM COMENTÁRIO
Parece claro, para JMF, que numa das “maiores e mais consolidadas comunidades árabes da Europa” a figura do antisemitismo é coisa do passado. Pelos vistos, a “maior e mais consolidada comunidade árabe” alberga, quase que exclusivamente, antisionistas. Ou, se quiserem, antisharonistas. Os mesmos que, pacifica e ordeiramente, se manifestam em frente à embaixada israelita, empunhando, unicamente, faixas contra as «opções políticas» de Sharon. Os ataques a símbolos judeus, a autocarros escolares, as ameaças e as agressões físicas, as bombas em sinagogas e o clima de cortar à faca que se vive em certos meios (ler o post Não Há Antisemitismo em França? na Rua da Judiaria) parecem ser uma de duas coisas: pura fantasia (propagandeada pelos media tendenciosos) ou o reflexo da “loucura do médio-oriente”. É caso para perguntar: será que boa parte da “loucura do médio-oriente” não é, ela própria, estimulada por ressentimentos contra os «poderosos» e «ímpios» judeus?

Começa a estar gasto esse novo expediente que invoca a “a confusão entre antisemitismo e contestação às opções políticas do Estado de Israel” para ardilosamente esconder o que, em muitos casos, está por detrás das ditas «contestações»: o mais puro ódio aos judeus.
A VER SE É DESTA
Quando lhe convém, JMF assume ares de desentendido. Aquilo que afirmei é tão simples e claro que só mesmo por arrebatamento retórico se pode distorcer. Vamos lá ver se é desta, caro JMF: não vou contestar a ideia de que os actos cometidos contra os judeus e a comunidade judaica poderão estar associados ao conflito no médio-oriente, mas quer-me parecer que o sentimento antisemita (o velho e conhecido ódio aos judeus, que sempre esteve presente em certas franjas da sociedade francesa e que parte da comunidade árabe recebe de braços abertos) tem forte ponderação na equação que explica as causas desses actos. Ou seja, como referi, estamos na presença de um misto de motivações (daí eu ter dito ser “muito difícil separar o que são actos contestatários da política do Estado de Israel, do que são actos de racismo puramente antisemitas”), embora, ao contrário de JMF, eu acredito que o principal combustível seja o antisemitismo primário, coadjuvado pela “loucura do médio-oriente” como pretexto. Atente-se no tipo de actos, nos alvos e na forma como são perpetrados. É óbvio que essas acções intimidativas e agressivas não fazem parte de um masterplan global contra os judeus. Deixemo-nos de teorias da conspiração. Mas é bom perceber, de uma vez por todas, que estamos perante um problema com roupagens antigas. Afinal, aquilo que se passa em França, ou em Inglaterra, acaba por ser uma mimetização do que se passa a montante, por terras do médio-oriente, não só por via das «opções políticas» do Sr. Sharon (ele que parece ser sempre o único culpado na retórica de certos analistas), mas, também, e sobretudo, porque há muito que se incute e se promove, em certos meios de forma doutrinária, esse antisemitismo de velhos tempos. Basta lembrar que a maior parte dos livros escolares árabes omite a existência de Israel. Basta lembrar que os Protocolos e o Mein Kempf continuam em alta, na lista dos livros mais vendidos. Basta lembrar que as histórias que envolvem o sacrifício de bebés para efeitos culinários, por parte dos judeus, ainda correm a bom correr em muitos meios árabes.

Lembro, ainda, outro facto. Em 2001, os chefes das comunidades judaica e muçulmana, em Portugal, com o patrocínio de D. José Policarpo, redigiram um documento com o objectivo de aproximar as respectivas comunidades, evidenciando os laços que as unem (e que são historicamente evidentes) e perspectivando uma coabitação pacífica e respeitadora, independentemente do que se passava no médio-oriente. Desde então, como, aliás, quase sempre, não se registaram actos de natureza beligerante ou agressora entre membros de ambas as comunidades. E, no entanto, de então para cá, a “loucura do médio-oriente” acentuou-se. O que se passará, então, de diferente em França? (sim, é uma pergunta de retórica)
ATENÇÃO!
O que se passou com o blogue Desesperada Esperança (omito o link pelas razões que se seguem) deve ser notado. Tratou-se de autêntico terrorismo blogosférico, como nunca, até à data, se tinha visto. Há uns dias atrás, alguém entrou no blogue do Bruno Alves, apagando, numa fase inicial, alguns ‘posts’. De seguida, o blogue desapareceu. Agora que o Bruno o tinha recuperado, alguém dele se apoderou, fazendo sua a casa do Bruno (com o mesmíssimo endereço http://desesperadaesperanca.blogspot.com). Abusivamente. Uma vergonha.

segunda-feira, agosto 23, 2004

É A “LOUCURA”
O JMF acredita que “muitos ” dos actos violentos praticados contra judeus em França ”nada têm a ver com o antisemitismo, sendo antes a reprodução na Europa da loucura que se vive no Médio Oriente.” E, acrescenta, ”parece-me que esta confusão entre antisemitismo e contestação (árabe ou europeia, violenta ou não violenta) às opções políticas do Estado de Israel não serve aqueles que se preocupam com o verdadeiro antisemitismo e outras xenofobias que ainda por aí andam (vejam o caso dos portugueses na Irlanda).”

Na ânsia para não confundir nada, JMF acaba a confundir tudo. Em primeiro lugar, JMF não pode juntar no mesmo saco a contestação "violenta" da "não violenta". Em segundo lugar, é muito difícil separar o que são actos contestatários da política do Estado de Israel, do que são actos de «racismo» puramente antisemitas. É cínico afirmar que os actos contra judeus são, na sua «maioria», «antisionistas» e não «antisemitas», i. e., que «muitos» provêem, quase que exclusivamente, da contestação ao Sr. Sharon. A separação que, hoje em dia, se preconiza entre «sionismo» e «judaísmo», tem servido, aliás, para escamotear o que se passa com as comunidades judaicas em alguns países europeus. Ou seja, para tapar o sol com a peneira. Com isto não quero dizer que todos os actos perpetrados contra judeus sejam, exclusivamente, a mais pura manifestação do ódio aos judeus, enquanto tal. Mas podemos, e devemos, interrogarmo-nos por que razão uma contestação a uma «política» de um Estado se faz assim: contra os símbolos e contra o modo de vida dos judeus, sendo certo que estes nem sequer são cidadãos israelitas e encontram-se assimilados na sociedade onde estão inseridos.

Os EUA são, segura e actualmente, o país que mais vê criticada a sua política externa (é, de certeza, o país mais odiado à escala mundial), mas nem por isso se assiste a ataques diários e rotineiros contra cidadãos e interesses norte-americanos na Europa. Ou seja, e para ser claro naquilo que quero dizer, parece-me bem mais provável, pelo tipo e natureza desses ataques, que as investidas contra a comunidade judaica em França sejam causadas por um misto de motivações, onde o papel do «racismo» antisemita é preponderante. Pode até ser certo que a faísca tenha origem na “loucura que se vive no Médio Oriente”, mas é sobretudo o larvar, insidioso e ancestral sentimento antisemita que alimenta a combustão.

quinta-feira, agosto 19, 2004

CARO PEDRO: LESTE, AO MENOS, OS LIVROS?
No Barnabé, Pedro Oliveira escreve sobre o putativo “caso Benny Morris”. Afirma, peremptório, que, aquando da edição oiriginal de The Birth of the Palestinian Refugee Problem (1987), Morris demonstrou que ”o êxodo palestiniano resultara afinal de uma gigantesca operação de “limpeza étnica”, planeada e executada de forma sistemática pelas forças armadas israelitas” e que, em resultado disso, o homem foi «escorraçado» pelo establishment académico israelita. Afirma, depois, que tudo mudou com a nova versão da obra (The Birth Of The Palestinian Refugee Problem Revisited, Cambridge, 2004), mais concretamente que “ao realizar novas pesquisas para uma edição revista do seu livro, [Morris] descobriu novos indícios de atrocidades cometidas contra os palestinianos em 1947-49, mas, para espanto de muitos, alterou por completo o sentido das suas conclusões ao declarar que as autoridades israelitas fizeram mal em não terem levado até ao fim a expulsão em massa dos árabes - afinal de contas a única maneira realista de resolver um conflito intratável. Em suma, Morris transformou-se num apologeta da “limpeza étnica”, alegadamente por não vislumbrar entre os responsáveis palestinianos uma aceitação inequívoca do direito de Israel à existência.”

Tão exagerada, definitiva e biased é uma como outra afirmação. O que me leva a concluir que Pedro Oliveira ainda não leu, ou leu na diagonal, os livros de Morris. Sobre o assunto e o livro, recordo o que escrevi em Abril deste ano:

“A obra de Benny Morris arruma-se, em minha opinião, na prateleira dos estudiosos que tentaram observar o conflito de forma fria, distanciada e imparcial. Um sinal claro foi o facto de, aquando da sua primeira versão, The Birth of the Palestinian Refugee Problem ter sido apontado pela OLP como pura «propaganda sionista», ao mesmo tempo que, do lado dos israelitas, o autor era apontado como um «apoiante da OLP». A tese, para muitos ambígua, que Morris constrói ao longo das mais de seiscentas páginas dedicadas ao problema dos refugiados palestinianos, confirma aquilo que eu sempre pensei sobre o assunto: o problema dos refugiados não teve uma única causa, nem um único culpado.

Sobre a «culpa», lembro o que afirmava Edward Said em 2000, numa entrevista ao jornal Há’aretz: “A guerra de 1948 foi uma guerra de expropriação. O que aconteceu em 1948 não foi mais do que a destruição da sociedade palestiniana, a sua substituição por outra e a expulsão dos que eram indesejados. Ou seja, aqueles que estavam no caminho. É difícil para mim afirmar que a responsabilidades esteja toda apenas de um lado. Mas a grande fatia de responsabilidade pelo despovoamento e consequente destruição das cidades cabe em definitivo aos judeus-sionistas. Os palestinianos foram apenas culpados por estarem lá.” E lembro o que dizia Noam Chomsky em 2002, numa palestra em Harvard: “Durante a guerra, entre 1947 e 1948 os israelitas iniciaram um trabalho de limpeza étnica. (…) Benny Morris demonstrou que a população árabe foi conduzida a sair pelos israelitas.” O que é interessante na obra de Morris é o facto de ele ter recusado esta visão monolítica e comprometida do problema (de Said e Chomsky), com culpados de um lado, e vitimas do outro. Ao contrário do que o idiota do Chomsky afirma (e desculpem se ofendo alguém), Morris não demonstrou nada disso. O livro desmistifica, desde logo, a ideia de que os judeus, a partir de 1947, encetaram a expulsão sistemática e sumária dos palestinianos, criando automática e exclusivamente o problema dos refugiados. As coisas não se passaram assim, de forma tão simples. Sabemos, em primeiro lugar, que a abordagem agressiva e belicista dos árabes, face a Israel, ajudou à criação do problema dos refugiados via guerra. Quem quis a guerra foram os árabes, não Israel. Se há coisa que Morris demonstra (ele que é um historiador da velha guarda, que acredita mais no poder dos documentos do que no poder das palavras de quem, cinquenta e tal anos depois, aceita testemunhar) é esta: o êxodo palestiniano não se deveu a uma estratégia ou a um masterplan sionista. As causas variaram no espaço e no tempo, ligadas a uma multiplicidade de factores sociais, económicos e militares. Na maior parte dos casos, não houve coerção nem foram emanadas ordens directas nesse sentido, por parte dos responsáveis israelitas. Parte do êxodo é explicado pelo natural receio da guerra, que levou a população civil a afastar-se da linha de combate. E há que reconhecer, de uma vez por todas, que a falta de consistência e de coesão «nacionais» por parte dos lideres árabes (para já não falar no posterior e ainda hoje presente desprezo, deste lideres, em relação aos refugiados), aliada a uma total falta de entreajuda e de solidariedade para com as populações civis que decidiram deslocar-se para as zonas sob controlo árabe, pesaram muito no problema dos refugiados.

Por outro lado, o livro de Morris não poupa o comportamento israelita, com as insinuações e as supostas provas de que, nalguns casos, houve uma política pró-“transferência” (se necessária compulsiva) da população palestiniana e que, por arrastamento, foram cometidos excessos por parte dos militares e das suas cadeias de comando. Mas Morris é perfeito em acentuar o tal carácter «ambíguo» da sua obra, afirmando, também, que os árabes foram useiros e vezeiros em cometer brutalidades gratuitas, como as relatadas durante a conquista de Kfar Etzion por parte dos árabes, em que 120 judeus civis foram massacrados após se terem entregue pacificamente. Quanto à estratégia árabe, escreve Morris: “In some areas Arab commanders ordered the villagers [palestinians] to evacuate to clear the ground for military purposes or to prevent surrender. More than half a dozen villages were abandoned during these months as a result of such orders. Elsewhere, in East Jerusalem and in many villages around the country, the [Arab] commanders order women, old people, and children to be sent away to be out of harm’s way. Indeed, psychological preparation for the removal of dependents from the battlefield had begun in 1946-1947, when the AHC and the Arab League had periodically endorsed such a move when contemplating the future war in Palestine.” Chamem-lhe «ambiguo» ou pró-qualquer-coisa. Na minha opinião, o livro de Morris é muito interessante e representa uma importante contribuição para a compreensão do problema dos refugiados.”



PROBLEMAS COM O BLOGGER
O blogue Desesperada Esperança simplesmente sumiu. Estão a envidar-se esforços no sentido de o repor. Seja qual for o resultado, o Bruno voltará dentro de dias. Não é rapaz para ficar parado.

terça-feira, agosto 17, 2004

DOS JOGOS
Dos jogos retenho o vólei de praia feminino e pouco mais. Não tenho tido tempo.

MITO, DIZ ELE
Jorge Palinhos e Luis Rainha (LR), ambos do Blogue de Esquerda, insistem: o anti-semitismo é um mito. Pelo menos, segunda LR, o “anti-semitismo avassalador”. O que será “avassalador” para Luis Rainha? Um novo holocausto? A desonestidade intelectual chega ao ponto de Luis Rainha perguntar: ”Quantas agressões racistas (a um árabe, note-se) teriam sido precisas para obter a mesma "cobertura" logo merecida por um cemitério judaico vandalizado?”. Ao Luis aconselhava-o a ler o que a Ana Albergaria tem escrito sobre o assunto. Aqui, aqui e aqui.
VENEZUELA
A malta da esquerda (alguma, pelo menos) não cabe em si de contente: Hugo Chávez ganhou. Dois factos (a vitória e a satisfação) previsíveis. À esquerda, basta saber-se que o homem “é cá dos nossos” para receber um aval incondicional. De pouco serve a evidência de que, comparado com Chávez, o putativo e «tenebroso» populismo de Santana e Portas é picada de mosquito em carcaça de elefante. Comparem o barulho que a esquerda fez com estes e a forma como emudece em relação a Chavéz. Talvez se consiga alcançar até onde vai a esquerda para justificar as suas simpatias clubistas.

A forma como Chávez se auto-vitimizou, o seu declarado discurso anti-americanista (coisa que, nos tempos que correm, vale votos), a postura de defensor oficioso dos pobres e dos oprimidos, as manipulações à lei, os tiques de déspota e o seu declarado amor ao socialismo de inspiração castrista, revelam bem da natureza e categoria deste homem. Chávez ganhou porque, num país maioritariamente pobre, é relativamente fácil a quem está no poder vender uma imagem de santo e de salvador. Os meios de propaganda são fartos (nesse campo, o tio Fidel é bom conselheiro), a vantagem «competitiva» é clara.

Contudo, estou em crer que será apenas uma questão de tempo. A oposição a Chávez deve aceitar os resultados e permanecer vigilante. Ou seja: nada de tréguas. Mas, se ao povo continuar a ser dada a faculdade de escolher livremente, Chávez deixará de ter razões para sorrir. Com o tempo, as máscaras têm tendência a cair.


QUERIDA TIA
[carta aberta da filhota à tia]

Querida Tia Desassossegada,

Por distracção, só hoje li a sua carta. Agradeço a sua disponibilidade para me levar ao Lux, daqui a uns anos. Contei ao meu pai e ele disse-me que, quando eu for crescida, o Lux continuará a ser uma marca de sabonetes e géis manhosos ligados, no passado, a uma tal de Sarah Jessica Parker. Nada mais. Galerias de arte são lugares que o papá aprova, mas com algumas reservas. Diz-me ele que há por aí muita Galeria de Arte cujo recheio ainda fica uns furos abaixo do papel de parede dos restaurantes chineses. Já colóquios, não sei muito bem o que isso é. Perguntei-lhe e ele disse-me que “colóquios” é um eufemismo para “perda de tempo”. Como não sei o que é um eufemismo, fiquei na mesma.

Quanto à sugestão da tia para o convencer a deixar-me ir ter consigo a Lisboa (ameaçando-o de me inscrever no Bloco de Esquerda e passar a frequentar o Acampamento de Jovens Bloquistas), lamento mas não vai dar. Eu não sei o que é isso do Bloco de Esquerda (será o bloco de apartamentos aqui do lado?), mas não há semana que passa sem que o meu pai ameace de me deserdar caso eu faça, no mínimo, uma de cinco coisas: 1) aderir ao Bloco de Esquerda; 2) aderir ao Partido da Nova Democracia; 3) comprar as obras completas do Prof. Boaventura Sousa Santos; 4) colocar um piercing; ou 5) usar um lenço tipo “fedayn”. Como disse, assim não dá. Eu sou pequenina, mas nã sou parva. Tentarei convencê-lo de outra maneira. Dizendo-lhe, por exemplo, que não lhe darei nem mais um beijinho. Deve ser suficiente.

Beijinhos pá tia.

segunda-feira, agosto 16, 2004

ABENÇOADA CRIATURA
(actualizado)
Esta rapariga anuncia, num só post, a sua conversão à Igreja Maná e a visita, em finais de Outubro, do Sr. Stephen Merritt. Está, desta forma, perdoada tão cósmica contradição, que é como quem diz: “uma no cravo, outra na ferradura”. Como, aliás, manda a lei das compensações.

A minha estação favorita (depois de Sta. Apolónia, o Outono) avizinha-se, assim, promissora.

PS: afinal foi daqui que surgiu a informação, por sua vez extraída do sempre obrigatório Intermitente. Esta gente da capital não brinca em serviço: sempre em cima dos acontecimentos!
A ESQUERDA INTELIGENTE
De tempos a tempos, a boa da esquerda dá sinais da sua presunção e da sua altivez de pacotilha.

José Mário Silva, no Blogue de Esquerda: “Afinal, não é só Michael Moore que luta afanosamente contra Bush e a hipótese terrível da sua manutenção na Casa Branca, depois de Novembro. Estes músicos todos querem, tanto como ele, deitar abaixo o idiota. Já para não falar de muitos outros artistas, das mais diversas áreas (entre os quais os escritores Joyce Carol Oates e Jonathan Franzen). Dá gosto ver isto: a reacção da América inteligente perante as tristes figuras de quem a governa.” Reparem: a “América inteligente”, perante essa “hipótese terrível”, quer “deitar abaixo o idiota”. Deduz-se daqui que existe uma “América idiota”, recheada, claro está, de “idiotas”, que pretende, com o seu voto, a manutenção do “idiota”. Dá gosto constatar que há gente - inteligente, generosa - que não se cansa de iluminar os esconsos e lúgubres caminhos que certas pífias mentes insistem trilhar.

No Barnabé (where else?), Daniel Oliveira aproveita notícia do Público (”Aviões e helicópteros atacaram durante todo o dia posições das milícias no gigantesco Vale da Paz, o cemitério onde todos os xiitas sonham ser enterrados, ao lado do complexo da mesquita.”) para dizer que ao exército do idiota já não lhe basta os “vivos”: atiram-se agora aos “mortos”, ou seja, aos que jazem num cemitério com mais 1.300 anos, lugar santo para os xiitas. Concluí o Daniel, naquele tom tão definitivo que o caracteriza: “Mais erros na “cidade santa” de Najaf e o conflito ganhará proporções religiosas. Mas explicar isto a militares analfabetos não é fácil.” Claro. “Inteligentes” e “alfabetizados” só mesmo os xiitas: estão-se borrifando para os seus próprios lugares santos (cemitérios, mesquitas, etc.), ao ponto de os utilizar, cobarde e abusivamente, em manobras de evasão militar. São uns sofisticados, estes xiitas. Só os idiotas o não percebem.

sexta-feira, agosto 13, 2004

A CONVERSAR É QUE A MALTA SE ENTENDE
AS – Mas caríssimo amigo, o MP nunca poderia fazer isso, porque é devastador. Acho eu. Essa hipótese que está a colocar na sua cabeça, às vezes, também a coloco. Mas isso é devastador, porque é opção, opção e não direito de oportunidade. Se isso aconteceu, o MP vai desaparecer do mapa.
OL – Pois, tem razão.
AS – É tão grave, tão grave, tão grave que eu não acredito que tenha acontecido isso.
OL – Nem eu.
AS – Não acredito. Estou confiante de que não foi porque não havia possibilidade de meter a queixa. Sinceramente não vejo outra hipótese.
OL – É que não há outra.
AS – Isso acabava com o Ministério Público em Portugal, pá.

Hoje, no Independente, pá.

PS: "AS" para Adelino Salvado; "OL" para Octávio Lopes. Mas podia ser Anacleto Samina e Óscar Limiano; Anibal Samarra e Ofélia Limão; Amândio Saturnino e Olivia Licôr; etc.
ELAS ANDAM NAI (PRIVATE JOKE)
Há por aí muita veneziana com fôlego para vinte piscinas debaixo de água. Ou até mais.
DAS CAUSAS DO TERRORISMO
Thirty years ago, when the terrorism debate got underway, it was widely asserted that terrorism was basically a left-wing revolutionary movement caused by oppression and exploitation. Hence the conclusion: Find a political and social solution, remedy the underlying evil — no oppression, no terrorism. The argument about the left-wing character of terrorism is no longer frequently heard, but the belief in a fatal link between poverty and violence has persisted. Whenever a major terrorist attack has taken place, one has heard appeals from high and low to provide credits and loans, to deal at long last with the deeper, true causes of terrorism, the roots rather than the symptoms and outward manifestations. And these roots are believed to be poverty, unemployment, backwardness, and inequality.
DE FACTO
Na realidade, o mundo está sobrepovoado de receios teóricos sobre sobrepovoação
SAI UM FILETE FOUCAULT COM MOLHO SAUSSURE E BATATAS DERRIDA PARA A MESA DO CANTO
(ou O Regresso A Terras Do Nunca)
No Terras do Nunca: ”1. Eu não acho, ou pelo menos não o disse, que o senhor Moore seja mentiroso; 2. O que eu acho é que, nos dias que correm, não há verdades absolutas. Simplesmente, não há verdades.”

CITAÇÃO
"An ironic person does not commit suicide." Jacob Golomb

quinta-feira, agosto 12, 2004

GIULIANI DIXIT
"I don't need Michael Moore to tell me about 9/11". Nem mais.
MELHOR É IMPOSSÍVEL
Acrescento que a menina Elisabeth Shue (Deconstructing Harry, Leaving Las Vegas etc.) é licenciada em Filosofia Política.


O QUÊ?
O Glória Fácil mudou de nome: "Glória Fácil..."

PS: E, já agora, parabéns!
PACTOS DE REGIME
Deixem-se de merdas.
WITTY



KORSAKOV
A sinfonia Sheherazade Op.35 (1888), de Rimsky-Korsakov, mais concretamente a suite The Young Prince And The Young Princess, é de tal forma sublime que me deixa sem palavras. Acabei de a ouvir na minha Antena 2 e ainda estou a planar. É uma coisa…
ORA TOMA
Ao contrário dele, eu não me importo de o lincar. A Causa Foi Modificada. Vês, maradona? E aquilo do Napoleão, é tão interessante.
COÇADO
Gosto de coisas usadas e gastas. Coisas com história. Coisas que provaram ser úteis, no passado, e estão ainda para as curvas, no presente. Gosto de continuar a tirar partido delas ou, então, de as consertar, para que voltem a cumprir a sua função. Detesto essa estúpida obsessão pelo que é novo, aliada à (pseudo e superficial) necessidade de substituir levianamente o que já está velho ou coçado. A cedência à exaltação e à instigação pós-moderna pelo “topo de gama”, pelo “último modelo”, pela novidade inútil e estéril, pela forma sumária como se descartam coisas que cumpriam com dignidade o seu papel, é um dos mais óbvios sinais da nossa decadência civilizacional.

quarta-feira, agosto 11, 2004

VEM DE 'GODZILLA'
Cansado do Internet Explorer – da sua permeabilidade em matéria de segurança, da incapacidade para o personalizar e «customizar» - mudei para o Mozilla Firefox. Como diria o velhote no anúncio da têvê: estou maravilhado.
INTERROMPENDO OS “TRABALHOS INERENTES”…
Interrompo, novamente, os trabalhos “inerentes à mudança de poiso” para responder à excelsa blogger Inês.

Anteontem, a doce Inês alinhavou quatro alíneas para um comentário rápido sobre quatro blogues: três elogios e uma farpa. Um 3+1. Calhou-me, na rifa, a farpa. Presumi das palavras da Inês que me terei armado em presunçoso (vulgo «mete nojo») ao elevar à categoria de pecado, ou fraqueza intelectual, o ter-se gostado, um dia, das musiquinhas do George Michael.

Começo por dizer que a observação da Inês surgiu na pior altura: tinha saído, no Público, mais uma crónica do Fernando Iharco (FI). Para quem passou um dia inteirinho em trabalhos forçados "inerentes à mudança de poiso" (na figura de caixas e caixotes na sua grande maioria repletos de bugigangas que, vá Deus Nosso Senhor saber porquê, se guardaram), entremeados com a leitura horizontal, diagonal e vertical da crónica do Fernando Ilharco, convenhamos que é muito. Entendam-me: quem passa um dia inteiro a tentar perceber o que se esconde por detrás de verdades de La Palisse como ”Enquanto isso, na televisão o Iraque transformou-se numa escola de terrorismo e daqui até Novembro, até às eleições presidenciais norte-americanas, muito do que se espera e do que se não espera pode vir a acontecer.”; o que terá pretendido dizer FI com ”Numa tradição como a nossa, assente na diferença entre nós e os outros e entre isto e aquilo, o outro, o outro homem que não eu, é a um tempo o desafio do significado e a ameaça mais final. Numa tradição como a nossa que se construiu sobre os opostos, sobre os muitos dualismos - o pensamento-acção, a mente-corpo, a matéria-forma, os dados-informação, etc. -, todos eles catapultados pelo "penso, logo existo" de Descartes, não é de estranhar que meio mundo e outro tanto se sinta confuso ao experimentar um tempo, este Verão de 2004, que não é de guerra nem é de paz.”; por que razão FI ainda está na fase do ” Mais do que o despenhar dos aviões, a queda das torres gémeas no coração de Manhattan nunca vai poder ser explicada ou compreendida.”; por que razão insiste FI em fazer-se passar por Jack D. Ripper, ao ponto de escrever ”As coisas, em si mesmas, são o significado que tem no caudal imenso de tudo o que flui no presente, no passado e no futuro. Esse caudal é hoje a ordem global da informação, uma rede imensa de histórias e de eventos, assente numa dúzia de nós: a CNN, uma mão de impérios dos media globais, a finança e as Bolsas mundiais, as redes de telecomunicações, a Microsoft e os centros políticos do planeta, Washington, Londres, Nova Iorque, Pequim, de vez em quando, e pouco mais. (repararam no “de vez um quando”?)” ou, já a caminho do jackpot, “Nos jornais, nas rádios e na televisão, onde as noticias se misturam com a análise, os comentadores queixam-se: como fazer face, como dar um sentido ao imenso e constante caudal de informação gerado pela máquina planetária dos media?”; por que razão FI atribui «estranheza» à guerra (”Esta guerra que corre, a do terrorismo global, não é a primeira guerra estranha. Estranhas são todas as guerras, e são-no de duas formas diversas. A mais estranha dessas formas, impossível de aceitar pelo projecto da dignidade humana e do amor, da eternidade e da nossa união atemporal com Deus, é aquilo que é comum a todas as guerras: a legitimação da violência, o ceifar das vidas, a destruição num instante do que demorou vidas ou séculos a erguer”) e emudece relativamente à estranheza da «banalização» do terror e da morte levada à cena, diariamente, pelos mais diversos ditadores, milícias e grupos armados; quem passa, dizia, o dia em tão frenética actividade mental e física, a mais singela e inócua pergunta (“algum problema nisto, MacGuffin?”) acaba necessariamente elevada à categoria de uppercut com direito a projecção de pivot.

Afirmou a Inês que ”em tempos, deliciei-me com o Georgios Kyriacos Panayiotou” (o. m. q. George Michael), para, logo de seguida (e aí vem o punch) me perguntar: ”algum problema nisto, MacGuffin?”. Nenhum, cara Inês. Nenhum. Desde logo porque o “em tempos” é uma fortíssima atenuante. Depois, porque eu próprio carrego inúmeros esqueletos no meu guarda-fato. Basta lembrar, naquela que é uma confissão inédita neste espaço, que também "em tempos" me deliciei com a Kim Wilde. Por último, é tão problemático ter gostado "em tempos" do George Michael como ter sido acometido, enquanto teenager, por um surto de acne.

Agora, se me dão licença, volto aos “trabalhos inerentes…”.

segunda-feira, agosto 09, 2004

THE DUDE
Comungo, em absoluto, da opinião do Ivan/Tulius (que, em boa hora, mandou às malvas a ideia de acabar com o blogue) sobre essa genial comédia chamada The Big Lebowski, dos manos Coen. É um culto que, também, pratico.

A propósito, podem encontrar os diálogos aqui.

THE STRANGER: I like your style, Dude.
DUDE: Well I like your style too, man. Got a whole cowboy thing goin'.
THE STRANGER: Thankie... Just one thing, Dude. D'ya have to use s'many cuss words?
DUDE: The fuck are you talking about?


HORRÍVEIS
No blogue Chora-Que-Logo-Bebes, a Madalena coloca a fotografia de um cogumelo atómico com a legenda: ”a fotografia mais triste do álbum da Humanidade”. Quer-me parecer que, antes dessa, outras há bem mais horríveis. Eis uma amostra:



ESTÁ MAL, ABELHA
Interrompo os trabalhos inerentes à mudança de poiso para dar uma resposta à altura do maradona (um metro e setenta), sobre o papel e peso das letras na música pop. Devo, contudo, realçar que me dirijo a um (apesar de excelente) ser humano que, ainda não há muito tempo (seis, oito, dez aninhos), era fã de Bryan Adams e, pasme-se, George Michael – facto, aliás, que explica em grande parte a pouco importância por ele dada ao assunto (letras das canções).

Para defender a sua dama, o meu amigo maradona (com minúscula) recorreu a alguns argumentos de peso. Diz, por exemplo, que a letra do I Will Always Love You da Whitney Houston (um clássico otoverme) passava o teste caso levasse a roupagem de um qualquer tema dos Stereolab. Parvo é que ele não é: as canções dos Stereolab são musicalmente riquíssimas, por vezes, até, complexas. O exemplo é forte e o argumento parece sólido.

Afirma, a seguir, que “«indissociável» não significa que não exista predominância; mais: não significa que um dos termos não seja 'condição necessária mas não suficiente' (letra) e o outro condição estritamente necessária (música)”(sic), parecendo, desta forma, arrumar a questão.

Começo pelo fim. É absolutamente redundante dizer que a música é condição estritamente necessária. É mais ou menos o mesmo que dizer: se não houver música não há… música. Até porque há música dita «instrumental». Já canções sem música, não estou a ver (ou, neste caso, a ouvir). Risca-se, assim, este primeiro argumento.

Quando aqui escrevi que, nalguns casos (e dei alguns exemplos), a «letra é indissociável da música», não estava a insinuar que aquela predominava sobre esta. É isso mesmo: «indissociável» não significa que haja predominância. Nunca disse o contrário. Risca-se mais um.

Finalmente, faço minha a retórica do maradona. Imaginemos o Ian Curtis a cantar o Love Will Tear Us Apart com a letra do Brother Louie dos Modern Talking (enquanto lêem, tentem imaginar a linha melódica das músicas):

Dear, love is a burning fire
Stay, cause then the flames grow higher
Babe, don't let him steel your heart
It's easy, it's easy
Girl, this game can't last forever
Why ? Why can not live together
Try, don't let him take your love from me

You're not good, can't you see brother Louie, Louie, Louie
I'm in love set you free
Oh, she's only looking to me
Only love breaks her heart brother Louie, Louie, Louie
Only love's paradise
Oh, she's only looking to me


Lembram-se do There Is a Light That Never Goes Out dos Smiths? Agora a mesma música, a mesma voz, mas com a letra do (I Surrender) To The Spirit Of The Night de Samantha Fox:

I've got a secret I can't keep
That burns inside when I'm in my sleep
I try to hide from your memory
But you come back & it's haunting me
What will I find in this fantasy
If I go with me now will you set me free
And I surrender to the spirit of the night
I surrender (I surrender)
The darkness is my lover
And nights of pleasure
So I surrender (I surrender) to the spirit of the night


Estão familiarizados com a «linha melódica» do Suzanne de Leonard Cohen? A letra original começava assim:

Suzanne takes you down to her place near the river
You can hear the boats go by
You can spend the night beside her
And you know that she's half crazy
But that's why you want to be there
And she feeds you tea and oranges
That come all the way from China
And just when you mean to tell her
That you have no love to give her
Then she gets you on her wavelength
And she lets the river answer
That you've always been her lover
And you want to travel with her
And you want to travel blind
And you know that she will trust you
For you've touched her perfect body with your mind.


Substituam-na, se fizerem favor, com a letra de Do You Wanna Touch Me de uma tal de Joan Jett, mantendo a mesma «linha melódica»:

We've been here too long
Tryin' to get along
Pretendin' that you're oh so shy
I'm a natural ma'am
Doin' all I can
My temperature is runnin' high
Cry at night
No one in sight
An' we got so much to share
Talking's fine
If you got the time
But I ain't got the time to spare
Yeah
Do you wanna touch (Yeah)
Do you wanna touch (Yeah)
Do you wanna touch me there, where
Do you wanna touch (Yeah)
Do you wanna touch (Yeah)
Do you wanna touch me there, where
There, yeah
Yeah, oh yeah, oh yeah


Oh Yeah o caraças! Ou seja, nada do que o maradona escreveu contraria o meu ponto: depende. Ou seja: depende. Isto é: depende.

Agora, se me dão licença, estão ali umas caixas cheias de livros, cd’s, vhs’s e dvd’s a chamar por mim (e as minhas costas a implorar para que eu reconsidere).

sexta-feira, agosto 06, 2004

DEPENDE
(actualizado)
Andam para aí a falar da importância das letras na música dita pop. O Elefante tocou no assunto (by the way, excelente blogue) e há um outro qualquer, cujo nome e blogue me escapam (guerra é guerra), que afirma, desde que o conheço, que as letras dizem-lhe tanto como o ADSL diz à tribo de pigmeus da região do Ituri, no nordeste do Congo.

Se me é permitido, e pondo de parte o facto de haver quem não esteja familiarizado com a língua estrangeira, a questão só tem uma resposta satisfatória: depende. Exemplos onde a letra (ou, em inglês, lyrics) é indissociável da música: The Smiths/Morrissey, Leonard Cohen, The White Sripes, Divine Comedy, Lloyd Cole, Stephen Merritt (Magnetic Fields, etc.). Exemplos em que a letra pouco ou nada interessa, ou porque a sonoridade e o estilo são tudo, ou porque as letras são quase sempre imperceptíveis: Strokes, Tindersticks, Pavement, Red House Painters, Howe Gelb, Radiohead, Pixies. Salvo melhor opinião, claro.

PS: Há, ainda, aqueles grupos cuja letra interessa mesmo ignorar ou esquecer. Estou a lembrar-me, por exemplo, de um grupo português chamado Toranja: apesar de algumas canções conseguidas (acabei, há minutos, de ouvir uma), as letras atiram-se vertiginosamente para a patetice.

PPS: Jorge Mourinha (um dos poucos críticos musicais obrigatórios da nossa paróquia) enviou-me uma pequena missiva. Arrisco publicar um excerto: "Lloyd Cole é um deus. As suas letras são magníficas e instantâneos da minha própria vida. O resto não tem importância."
MUDANÇA
Mudo de casa (à semelhança do Luis). Dizem-me que “para melhor, muda-se sempre”. Mas mudar (latu sensu) continua a ser algo que me incomoda. Há, na mudança, uma sensação de perda que me deixa confuso, meio perdido. Deixo a casa onde vivi nos últimos dez anos. Foi lá que vi crescer a minha filha. Foi lá que convivi com os meus amigos. Foi lá que amei e discuti. Foi lá que passei gripes e resfriados. Foi lá que me divorciei. Foi lá que fui feliz e, por vezes, infeliz. Há, inevitavelmente, uma perda a que não consigo ficar indiferente. Há laços que se quebram, gestos que deixam de fazer sentido. Há cheiros, ruídos, rotinas, caras e trilhos que, em breve, ficarão para trás. Ecos de risos e choros que não me acompanharão. Carrego roupa, livros, móveis, vasos, louça, quadros, fotografias, tapetes, candeeiros, discos, electrodomésticos e, contudo, o essencial fica lá: agarrado àquelas paredes, pairando no vazio dos espaços, no silêncio dos cantos. É verdade: carrego muita coisa para a nova casa e, ao mesmo tempo, parece que me descarto de uma parte da minha existência.
QUAL SERÁ?
A revista Sábado vem hoje com DVD sobre Yasser Arafat. A produção está a cargo do The History Channel. Ainda não o visionei. Resta saber qual dos Arafats é retratado: o oficial (homem de Estado, Nobel da Paz, combatente heróico da causa palestiniana, amigo da paz e da conciliação) ou o verdadeiro (estadista medíocre, homem tortuoso, violento e corrupto, que pouco tem feito pelo seu povo e muito tem sido conivente com o terrorismo sobre inocentes).
O PÊLO
Primeiro trabalhou com a língua durante um bocado, depois sentou-se na cama e começou a tentar agarrá-lo com os dedos. Parecia que o dia ia ser bonito e os pássaros cantavam lá fora. Rasgou um canto da carteira de fósforos e enfiou-o entre os dentes. Nada. Continuava a senti-lo. Passou outra vez a língua pelos dentes de trás para a frente, parando ao encontrar o pêlo. Tacteou à volta e depois apertou-o com a língua onde estava preso entre dois dos seus dentes da frente, segui-o por uns cinco centímetros até à ponta e encostou-o ao céu da boca. Tocou-lhe com o dedo.
- Uuuk… Bolas!
- O que foi? – perguntou a mulher, sentando-se. – Dormimos de mais? Que horas são?
- Tenho uma coisa metida nos dentes. Não consigo tirá-la. Não sei… Parece-me um pêlo.
(…) Sob a luz, de boca aberta, ele ia torcendo a cabeça para trás e para diante, limpando o espelho com a manga do pijama à medida que se ia embaciando.
(…) Já na rua, desapertou o colarinho e começou a andar. Sentia-se esquisito, a andar na rua com um pêlo dentro da boca. Continuou a mexer-lhe com a língua. Não olhava para as pessoas com que se cruzava. Passado pouco tempo, começou a suar dos sovacos e sentia o suor a pingar dos pêlos para a camisola interior. Por vezes, parava diante das montras a olhar para o vidro, abrindo e fechando a boca, à pesca com o dedo.
(…) Não tinha grande fome e, como jantar, bebeu apenas um café. Após alguns goles, passou outra vez a língua pelo pêlo. Levantou-se da mesa.
- Querido, o que tens? – perguntou a mulher. – Onde vais?
- Acho que me vou deitar. Não me sinto bem.
(…) Depois de voltar para a cama passou outra vez a língua pelos dentes. Talvez fosse só uma coisa a que conseguiria habituar-se. Não sabia. Mesmo antes de adormecer, já quase tinha deixado de pensar naquilo. Lembrou-se de que o dia tinha sido quente e dos putos a chapinhar e dos pássaros a cantar, de manhã. Mas a certa altura, a meio da noite, gritou e acordou a suar, quase sufocado. Não, não, repetia, dando pontapés nos cobertores. Assustou a mulher, que não sabia o que ele tinha..

Raymond Carver, "O Pêlo" in Heroísmos não, por favor (Editorial Teorema, 1993)

Devo, por isso, habituar-me. O biltre que leve a taça.

Resta-me a tentativa de mimetizar o 'flic flac com duplo mortal invertido' utilizado por Rousseau para conciliar o dilema entre a liberdade como valor absoluto e a autoridade moral emanada da suposta harmonia do state of nature. Talvez assim consiga viver com o facto de, por agora, ser ele a levar a taça e, ao mesmo tempo, ter o blogue do gajo aqui lincado.

quinta-feira, agosto 05, 2004

POIS!
Mas foi ele que começou primeiro! (a ler com voz infantil e o pleonasmo, para que saibam, foi propositado)



PS: entretanto, o 3tesas confirma tudo. É a vida.

quarta-feira, agosto 04, 2004

ACTUALIZAÇÃO
Contra a Corrente: 221
A Causa Foi Modificada: 157

Para que conste. Shalom.

Fonte Site Meter, 20:37
O MEU QUERIDO TIO
O site é fantástico. O post é só para anunciar que vão passar o Playtime do adorável e genial Jacques Tati. Ao ar livre. Na Praça do Sertório. Widescreen. Dia 10. Em Évora. Obrigado.


PARA QUE CONSTE
A propósito de um post dirigido a outro blogue, escreveu-se no Blogame Mucho:

”O respeito deixou de ser reverencial quando se percebeu que o respeito é outra coisa. O mesmo não se passa noutros sítios? É verdade, referi isso mesmo quando, um dia, um blogue excelente [Contra a Corrente, moi même] (como excelente é o seu) se referiu a mim, besugo ligeirote, dessa maneira. São tiques que aqui não temos, asseguro. Até sorrimos deles.”

Agradecendo e retribuindo, na mesma medida, o elogio, queria apenas acrescentar o seguinte: eu referi-me ao Besugo como “Besugo”, porque o nick de um dos escrevinhadores do Blogame Mucho (o Besugo) é “Besugo”. Não o conheço por outro nome.
GANDA HOMEM!
O Homem A Dias fez um ano. Parabéns ao Alberto, o dono do valiosíssimo dito.
RESPOSTA AO BILTREZINHO

Contra a Corrente: visits today 179
A Causa Foi Modificada: visits today 117

fonte Site Meter, Hora 17:25

Calma, muita calma.
CONCORRÊNCIA
A leitora Sofia Barbosa enviou-me um amável mail alertando-me para um facto: que a Ikea e a Habitat pertencem à holding "Inka Holdings". A minha querida amiga Ana Cibele (a quem eu devo uma visita) tinha-me avisado do mesmo. Certo. Mas ambas falham o ponto. O facto de duas empresas, com objecto e objectivos de mercado equivalentes (ou que, no mínimo, se cruzam), pertencerem à mesma holding (a INGKA Holding B. V.), não implica que não disputem ferozmente o mercado e que passem o tempo a observar-se mutuamente de forma complacente. Mais: é saudável e desejável que não o façam. Até porque, é bom não esquecer, a empresa que detém os direitos da marca Habitat para Portugal não verá com bons olhos a incursão da «mana» Ikea no mercado nacional. Terá necessariamente de ser «mexer». Como eu observei, já o começou a fazer.
O QUÊ COM QUEM
O Nova Floresta considera que o Contra a Corrente (este blogue) e o Terras do Nunca “não passam um sem o outro”. Que são uma espécie de “Yin e Yang da blogosfera nacional”(sic).

Ok, João, qual escolhes ser: o Yin ou o Yang? (concedo-te a prerrogativa)
E O FILHO DE MACDUFF CONCLUI
FILHO DE MACDUFF: Mãe, meu pai era um traidor?
LADY MACDUFF: Sim! É o que ele era.
FILHO DE MACDUFF: E que é um traidor?
LADY MACDUFF: É um homem que jura e que falta à sua palavra.
FILHO DE MACDUFF: E todos os traidores fazem isso?
LADY MACDUFF: Os que assim procedem são traidores e merecem ser enforcados.
FILHO DE MACDUFF: São enforcados todos os que juram e mentem?
LADY MACDUFF: Absolutamente todos.
FILHO DE MACDUFF: E quem se encarrega de os enforcar?
LADY MACDUFF: As pessoas de bem.
FILHO DE MACDUFF: Então, os mentirosos e os juradores são tolos; porque há mentirosos e juradores em número mais que suficiente para espancar e enforcar as pessoas de bem.
ESTAS FÉRIAS FUI MALCOLM
Mas MacBeth não deixa de ter a sua razão:

“A vida é apenas uma sombra que se move; um pobre actor que dá cabriolas e se agita durante uma hora, e de que não se torna a ouvir falar. É um conto narrado por um idiota, um conto cheio de barulho e de fúrias, mas que nada significa.”

segunda-feira, agosto 02, 2004

BONAVENTURA
Há duas semanas atrás, Boaventura Sousa Santos afirmava, género espasmo biliar, que, em Portugal, os juízes estão muito «mal preparados» porque lhes falta «consciência social» (estou a parafrasear). Não sei se na blogosfera, ou na imprensa dita «séria», alguém comentou o desabafo do mestre. Pessoalmente, com o bafo quente do estio alentejano a queimar-me as meninges, fiquei embevecido. Apesar de não ser caso raro nas nossas academias, as elucubrações de Boaventura Sousa Santos bebem forte e feio na báquica fonte marxista, já por si contaminada, a montante, por Rousseau. O que Boaventura Sousa Santos nos tenta dizer é mais ou menos isto: o factor de formação da consciência e moralidade individuais é apenas um: a condição social do indivíduo. A culpa de comportamentos desviantes deve ser redireccionada, sempre que possível, na direcção de terceiros e/ou de factores «exógenos», que concorrem para a formação de uma espécie de «mão invisível» que conduz a pobre (no duplo sentido da palavra) alma ao desespero e, eventualmente, ao crime. Daí a ideia da «falta de preparação» dos juízes para conseguirem filtrar e relativizar convenientemente o comportamento individual à luz da condição social de cada um.

É normal que, a determinados juízes, falte experiência ou bagagem técnica. Anormal e preocupante seria um outro cenário: uma magistratura sem a percepção de que é sobretudo a consciência dos homens que determina e condiciona a sua condição social. A que acresce, ainda, uma premissa basilar: perante a lei somos todos iguais.
A CONCORRÊNCIA É UMA COISA LINDA
A IKEA instala-se em Portugal. A Habitat lança campanha: ”A Garantia de Preço Mínimo é o novo compromisso Habitat. Se encontrar mais barato, a Habitat compromete-se a devolver a diferença.”
FERNANDES, MILLÔR
“Em geral, quando a gente encontra um espírito aberto, entra e verifica que está é vazio.”

“É impressionante a altura que um homem pode atingir apenas não descendo de nível.”

“Se você agir sempre com dignidade, pode não melhorar o mundo, mas uma coisa é certa: haverá na Terra um canalha a menos.”

“Com muita sabedoria, estudando muito, pensando muito, procurando compreender tudo e todos, um homem consegue, depois de mais ou menos quarenta anos de vida, aprender a ficar calado.”

“Em geral, as pessoas que se perdem em pensamentos é porque não conhecem muito bem esse território.”

“Quando um técnico vai tratar com imbecis, deve levar um imbecil como técnico.”

“Nada é mais falso do que uma verdade estabelecida.”

“Um buraco na meia pode ser ocasional, mas um cerzido é uma demonstração inequívoca de pobreza.”

“A maior vantagem da comida macrobiótica é que por mais que você coma, por mais que você encha o estômago, está sempre perfeitamente subalimentado.”

“O socialismo só será perfeito no dia em que o Estado conseguir distribuir, com absoluta igualdade, chuva, chateações e estacionamento.”

“Antigamente, o melhor caminho para conquistar um homem era o estômago. Hoje, a permissividade encurtou muito o caminho.”

“O mal do mundo é que Deus envelheceu e o Diabo evoluiu.”

NÃO VOU AO CONCERTO DA MADONNA
Pindéricas voiceless & horny não fazem o meu género. E, já agora, estou de regresso. Para o bem e para o mal.

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