O MacGuffin

sexta-feira, agosto 06, 2004

O PÊLO
Primeiro trabalhou com a língua durante um bocado, depois sentou-se na cama e começou a tentar agarrá-lo com os dedos. Parecia que o dia ia ser bonito e os pássaros cantavam lá fora. Rasgou um canto da carteira de fósforos e enfiou-o entre os dentes. Nada. Continuava a senti-lo. Passou outra vez a língua pelos dentes de trás para a frente, parando ao encontrar o pêlo. Tacteou à volta e depois apertou-o com a língua onde estava preso entre dois dos seus dentes da frente, segui-o por uns cinco centímetros até à ponta e encostou-o ao céu da boca. Tocou-lhe com o dedo.
- Uuuk… Bolas!
- O que foi? – perguntou a mulher, sentando-se. – Dormimos de mais? Que horas são?
- Tenho uma coisa metida nos dentes. Não consigo tirá-la. Não sei… Parece-me um pêlo.
(…) Sob a luz, de boca aberta, ele ia torcendo a cabeça para trás e para diante, limpando o espelho com a manga do pijama à medida que se ia embaciando.
(…) Já na rua, desapertou o colarinho e começou a andar. Sentia-se esquisito, a andar na rua com um pêlo dentro da boca. Continuou a mexer-lhe com a língua. Não olhava para as pessoas com que se cruzava. Passado pouco tempo, começou a suar dos sovacos e sentia o suor a pingar dos pêlos para a camisola interior. Por vezes, parava diante das montras a olhar para o vidro, abrindo e fechando a boca, à pesca com o dedo.
(…) Não tinha grande fome e, como jantar, bebeu apenas um café. Após alguns goles, passou outra vez a língua pelo pêlo. Levantou-se da mesa.
- Querido, o que tens? – perguntou a mulher. – Onde vais?
- Acho que me vou deitar. Não me sinto bem.
(…) Depois de voltar para a cama passou outra vez a língua pelos dentes. Talvez fosse só uma coisa a que conseguiria habituar-se. Não sabia. Mesmo antes de adormecer, já quase tinha deixado de pensar naquilo. Lembrou-se de que o dia tinha sido quente e dos putos a chapinhar e dos pássaros a cantar, de manhã. Mas a certa altura, a meio da noite, gritou e acordou a suar, quase sufocado. Não, não, repetia, dando pontapés nos cobertores. Assustou a mulher, que não sabia o que ele tinha..

Raymond Carver, "O Pêlo" in Heroísmos não, por favor (Editorial Teorema, 1993)

Devo, por isso, habituar-me. O biltre que leve a taça.

Resta-me a tentativa de mimetizar o 'flic flac com duplo mortal invertido' utilizado por Rousseau para conciliar o dilema entre a liberdade como valor absoluto e a autoridade moral emanada da suposta harmonia do state of nature. Talvez assim consiga viver com o facto de, por agora, ser ele a levar a taça e, ao mesmo tempo, ter o blogue do gajo aqui lincado.

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