A ESQUERDA IN EXTREMIS
Recentemente, no show da rentrée, Ferro Rodrigues, sob a batuta do mestre escola Soares, tratou de reabilitar um enviesado grito de guerra
à lá Zola. “J’Accuse”, gritou Ferro, apontando todo o seu aparato bélico para um grupelho de extremistas, liderados por Paulo Portas. Segundo Ferro, este sinistro grupo tem vindo insistente e insidiosamente a contaminar o governo de Durão Barroso, não só influenciando perniciosamente a política do actual executivo como, desgraça das desgraças, tomando de assalto o seu
modus operandi. Avisa-nos paternalmente Ferro que, esta espécie de organização mafiosa (onde, supõe-se, se incluem os ministros que saíram das fileiras do PP), está interessada em inculcar uma visão passadista, retrógrada, reaccionária e neo-fascista da vida em sociedade e da política em geral. Germina no seio do governo uma semente maligna, da mesma estirpe que deu origem a um Haider e a um Le Pen. Ferro avisa os mais distraídos: o «Paulinho» das feiras não passa de um frio “neo-fascista” e de um irresponsável “neo-liberal”.
Não fosse patética e demagógica, a insinuação seria hilariante. No fundo, espelha bem a falta de cultura política dos dirigentes políticos em Portugal. Só uma pessoa demagógica – habituada a olhar as «massas» como um bando de ignorantes que engolem qualquer patranha – ou ignorante – para quem os conceitos são estranhos, estando ao serviços dos slogans - poderá acusar outro seu semelhante de “neo-fascista” e “neo-liberal”, ao mesmo tempo. Que eu saiba, ou se é (neo) fascista, ou se é (neo) liberal. Juntar as duas coisas é um pouco como dizer que fulano tal é um “comunista Nozickiano”.
Aparte esse «pequeníssimo» pormenor, a tese de Ferro, dissecada até ao tutano, não colhe. Eu peço ao auditório da blogosfera o seguinte exercício: tentemos recolher os indícios do caracter extremista de Paulo Portas que possam corroborar ou sustentar a suspeita.
Terá sido o putativo afrontamento das chefias militares? Não me parece. Noutro tempo e noutro contexto, seria a própria esquerda a aplaudir este aparente braço de ferro entre a esfera militar e a esfera política, com vantagem para esta última. Bem analisado, parece constituir um saudável aviso à navegação: são os militares que estão sob a alçada de uma tutela política, e não o contrário.
Terá sido a presença de Portas na cerimónia fúnebre de Maggiolo Gouveia e o seu fugaz contraditório relativamente às diatribes da Dra. Ana Gomes? Fraco. Em primeiro lugar, foi o socialista Rui Pena que deu o aval ao acto. Paulo Portas quis estar presente (nada de extraordinário) e, como bom católico, entrou na igreja, seguindo o seu ritual (facto que não tem que envergonhar ninguém). Seria de esperar que as câmaras estivessem lá e, como também é sabido, quem hoje em dia se benza ou beije a cruz é peremptoriamente acusado de «beato» ou «passadista». Sinal dos tempos. É certo que Portas deveria ter resistido à tentação de fingir não comentar, comentando (truque retórico muito próprio dos políticos). Mas a própria Ana Gomes foi bem mais radical nas suas observações. No fundo, provocou e recebeu o troco.
Fair enough.
Será que podemos associar uma eventual pose autoritária – com o dedinho em riste e o olhar intimidador – a um prenúncio de radicalismo de direita? Frouxo. Ferro Rodrigues também vocifera, de forma muitas vezes teatral. Também estica o dedo e grita. No caso Paulo Pedroso, fez uma triste figura de si mesmo.
Terá sido o populismo larvar nas suas intervenções como líder partidário? A avaliar pelo discurso político da generalidade dos lideres partidários, de há uns anos a esta parte, parece-me desleal colocar o acento tónico nesse aspecto, uma vez que todos, intermitentemente, fazem uso do mesmo. Entendamo-nos: nos seus dias mais inspirados, Francisco Louçã não é um populista encartado? E Ferro Rodrigues, quando grita aqueles slogans e comenta os incêndios da forma como o fez no discurso da
rentrée, não está a ser populista?
Será o fatinho às riscas tipo ‘Lord inglês’, a pose snob e o facto de ter pilotado, durante uns meses, um jaguar? Talvez, porque a esquerda vive desses preconceitos. Ainda assim, não me parece que justifique nada.
Será o caso Moderna? Não estou a ver que a ligação entre Paulo Portas e um caso de gestão danosa seja, por si só, um sinal de fascismo ou de neo-liberalismo. Uma coisa nada tem a ver com outra. Se Paulo Portas é fascista por estar alegadamente ligado, ainda que de forma relativa, a um caso de peculato, José Luis Judas será o quê? Mussolini?
A forma como, do lado da esquerda, certas eminências pardas – com Soares à cabeça – tentam relançar uma espécie de anacrónico conflito entre mundos ideológicos opostos, espelha bem o desespero e o desnorte estratégico de um dos quadrantes da contenda. Num mundo em mutação continua e acelerada, num mundo onde circulam livremente bens, conhecimentos e informação, num mundo onde os conceitos se confundem, as práticas convergem e se estabelecem consensos mais ou menos alargados sobre a inevitabilidade de uma sociedade de génese liberal e capitalista, continua a assistir-se a um certa esquerda presa, acossada, deslocada e incomodada com o mundo - como se essa fosse a única postura consonante com a eterna insatisfação de quem o quer mudar. Para melhor, entenda-se. No fundo, assiste-se a uma constante e romântica inquietação da esquerda face a um mundo que teima em fugir ao ideal de construção por ela preconizado. Facto que a baralha e a leva a perder a cabeça e fazer uso de uma cassete já gasta.
Ainda há um ano atrás, em plena Silly Season, o tema predilecto tinha sido as desventuras da Esquerda. Fatal como o destino. De tempos a tempos, os mais dignos representantes da esquerda produzem, no espaço dos jornais, autênticas teses de doutoramento sobre os maravilhosos e exclusivos atributos da Esquerda e o seu futuro, tratando,
en passant, de separar as águas. Para esse efeito, as figuras de
backoffice trabalham que nem formiguinhas na busca de um novo discurso, de uma nova retórica, para que a voz do líder se faça ouvir.
Esta boa gente é incapaz de perceber que os eternos chavões da Esquerda, apregoados no mundo de hoje em jeito de aspiração difusa e sem explicação plausível de ordem prática, estão desacreditados. Parecem não querer perceber que os slogans contra a ‘desigualdade’, a ‘pobreza’, a ‘opressão’, os ‘privilégios’ e a favor da ‘justiça social’, deixaram de estar associados a um contexto ou conteúdo político-social. Ou seja, a Esquerda e a Direita competem irremediavelmente no mesmo campo, com discursos e práticas que se confundem – porque a evolução do mundo assim o ditou. Em boa verdade, combater a exclusão ou a pobreza não pertencem hoje, se é que alguma vez pertenceram, ao domínio exclusivo da Esquerda. São questões centrais, pragmáticas, que a realidade empurrou para fora do âmbito do discurso ideológico, e que são objecto da acção de qualquer governo democrático.
Estas discussões sobre o papel da Esquerda são, sobretudo, um sintoma sério de como esta se desenquadrou do mundo, levando-a a invocar paradigmas da era da industrialização, com trejeitos de paranóia face às novas tecnologias e à mobilidade de meios humanos e materiais. É precisamente esta falta de ‘encaixe’ que tem sido fatal para a Esquerda. Daí o recurso, em desespero de causa, a novas frentes de combate: o anti-americanismo, a anti-globalização, o anti-(neo)liberalismo e o fundamentalismo ambientalista.
Por outro lado, a forma como a Esquerda teima em empurrar presunçosamente os assuntos para a sua área, insistindo na ideia de uma ‘Solução’ e presumindo estar na vanguarda de tudo e todos, vem dar razão a Oakeshott, Camus e Popper, na sua crítica às ideologias. Popper criticou a tentativa de encontrar certezas na história e na produção de previsões a partir de modelos supostamente cientificos, quando isso se baseava num erro de lógica: a ideia de que a história e a evolução das sociedades podem ser transformadas numa ciência. E Oakeshott alertou-nos para o papel do Racionalismo acrítico na política, tão próprio das ideologias.
Em Portugal, por força de uma hegemonia cultural de Esquerda, maioritariamente francófona, e ainda com os ecos do antifascismo a fazerem-se ouvir, muito boa gente continua a olhar a Esquerda como a campeã na luta contra os males do mundo – ao contrário da ímpia Direita. Este fim-de-semana ouvia Gerónimo de Sousa, do PCP, e dei comigo a pensar: eu oiço esta cassete há vinte anos. Para estas pessoas não interessa mais nada, a não ser isto: a Esquerda foi e será sempre a solitária, firme e hirta representante dos bons sentimentos e das boas intenções - e bem tramado está quem disser o contrário ou quem ousar «roubar» os nobres fins da “justiça” ou da “coesão” sociais (como se a Esquerda tivesse comprado essa patente). Ora, é precisamente isto que está em causa, no plano prático: são os meios e não os fins que devem ser discutidos. Mas isso é difícil de explicar a quem continua a viver num mundo maniqueísta de “imperialismos” e “subjugados”.
Em último recurso de retórica, os arautos da Esquerda insistem no facto de que “ser de Esquerda” se trata, sobretudo, de uma «atitude», de uma «cultura» e de uma «estética». É bom lembrar que este retiro para a área da «estética», e a adopção do que é virtualmente um código privado de neo-marxismo, antecipou e alimentou a evasão pós-modernista da realidade e, por consequência, o desviar do olhar sobre o mundo «real» - cuja complexidade e diversidade baralha e confunde as suas meditações - e a concentrar a reflexão da Esquerda na órbita do seu umbigo.
No fundo, a Esquerda vive, hoje, com o recurso a habilidades linguísticas (os «tumores» de Soares, os slogans de Ferro, as demonizações de Ana Gomes, os chavões de Louçã) que lhe permitem continuar a falar, pensar e teorizar sobre questões de interesse prático vago, ignorando a evidência de que, por exemplo, o socialismo está, em todo o lado, num estado de declínio terminal. Não é por acaso que a Esquerda, pelo menos a mais empedernida, tem relutância e até vergonha em reconhecer o contributo do sistema capitalista nas democracias ocidentais, no aumento do nível de vida à escala mundial e na consolidação das liberdades individuais. Basta observar a forma como perverte o tema da Globalização.
Por último, observemos como a supostamente esclarecida e vanguardista elite académica europeia e americana, que se alimenta das mordomias capitalistas como a abelha do mel, está impregnada de um Marxismo Rocócó (a expressão é de Tom Wolfe) que mete dó. É a mesma elite académica, aparentemente letrada em filosofia política e história, que nunca leu uma linha de Oakeshott, Berlin, von Mises, Hayek, Schumpeter, Popper, Friedman, Aron ou Strauss, e que se atreve a classificar os livros “Empire” ou “No Logo” como sendo “a primeira grande síntese do novo milénio” e “uma obra de intensidade visionária”. O que, bem vistas as coisas, diz tudo.
Seria bom que a Esquerda e os seus acérrimos representantes perdem-se a presunção e a arrogância de pensar que o mundo gira à volta dos seus modelos e que o resto é paisagem. Não é. As conquistas de que hoje as sociedades ocidentais usufruem - ao nível da liberdade individual, da democracia, da liberdade de expressão, da livre associação civil – nasceram da luta do homem «individual» contra o despotismo e tirania de regimes totalitários, quer à esquerda, quer à direita. Já era altura de os esquerdistas mais empedernidos perceberem que existem outras propostas, outras visões válidas, sendo certo que muitas delas se baseiam mais no pragmatismo do que na ideologia – o que, em meu entender, faz a diferença.
E seria bom que o seu discurso fosse um discurso sério, não demagógico. Que fosse minimamente rigoroso do ponto de vista da política formal – mesmo que o da direita assim não seja. Que não tentasse criar fantasmas onde eles não existem. E que evitasse o facilitismo dos slogans generalistas. Ao contrário do que se possa pensar, a malta não é assim tão parva.