O MacGuffin

quarta-feira, setembro 17, 2003

AINDA O SEPÚLVEDA, O PINOCHET E O ALLENDE
Do leitor/visitante José Teixeira, recebi a seguinte missiva:
”Escrevo-lhe a propósito de Sepúlveda, já que diz nunca o ter lido. Aquele a quem impele a ir dar banho ao cão. Está o escritor por jornais e blogs variados, os trinta anos de Pinochet ajudam, o sucesso dele sublinha. Sobre a actividade política do homem nada tenho a dizer, neste mundo louco cada um como cada qual.
Aliás cada vez mais me irritam os escribas que menosprezam os ditadores de direita para sublinharem críticas à esquerda.
Aliás cada vez mais me irritam os escribas que menosprezam os ditadores de esquerda para sublinharem críticas à direita.
E ainda mais me irritam valorizações ou desvalorizações de escritores
baseadas nas suas opiniões e actividades políticas. De escritores e dos
outros. E ainda mais as direitas e as esquerdas, quando surdas e imbecis. Ou seja (excessivamente) preconceituosas.
Não é disso que gostaria de lhe falar. O que me leva a escrever-lhe é mesmo o facto de V. afirmar que nunca o leu e que alguns lhe dizem ser um grande escritor.
Permita-me dizer-lhe que em nada me ofendem as actividades políticas de
Sepúlveda, um pouco lá para a esquerda direi eu do sítio calmo onde me
encontro. Acho alguma da histeria bloguistica contra o homem um bocado um chic parolo de quem se quer afirmar de outras cores políticas (um chic de direita, se o quiser) - não se amofine, a ironia grosseira não é a si
dirigida. Ou seja , enquadro-o, proveniente de sociedade que não a nossa e
que lhe terá moldado sensibilidade, retórica, amores e ódios algo diferentes
(apesar de tudo) dos nossos. Como vê não tenho nenhum preconceito político contra o homem. Comprei e li vários (4,5) dos seus livros. Pequenos e baratos, já agora, a colecção de bolso da Asa. Rápidos de ler. Nos aviões, em esplanadas solarengas, em momentos de relativo cansaço. Textos curtos, alguns interessantes e/ou bonitos, outros não tanto. Viagens, Às vezes, episódios do quotidiano, amores e desamores. Revoluções também. Não ofende (ao ler o que escrevi parece que o estou a tornar literatura light, mas não será o caso). Mas daí a grande escritor... Francamente. Há um abismo (como entre Allende e Pinochet, ironia cruel reconheço).
Eu diria até que daí a bom escritor, francamente. Mas como quase todos que publicam são ditos bons escritores, retiro esta última reserva. Enfim, deixa-se ler. Cá para mim nem o escritor Sepúlveda nem o activista Sepúlveda merecem tanto resmungo nem tanto elogio. Que coisa. Que falta de assunto andará por esse Portugal.”


Caro leitor, repito o que já disse: nada tenho contra o escritor/ficcionista Sepúlveda. Como nada tenho contra... sei lá... Margarida Rebelo Pinto. Pura e simplesmente porque não conheço as suas obras.
“O tempo perguntou ao tempo quanto tempo o tempo tem, e o tempo respondeu ao tempo que o tempo tem tanto tempo quanto o tempo o tempo tem”. Esta lenga-lenga, que a minha filha apelida de “destrava línguas”, faz referência à principal razão porque não os conheço: o tempo. A sucessão dos anos, dos dias, das horas, etc., que envolve, para o homem, a noção de presente, passado e futuro. Ou o momento ou a ocasião disponível para que uma coisa se realize. Na gestão que faço do meu tempo, nunca se «realizou» pegar num livro do Sepúlveda. Como deve entender, a vida é feita de escolhas. E eu decidi não ler Luis Sepúlveda. Posso, um dia, vir a lê-lo. Mas como o tempo se me escapa hora a hora, minuto a minuto, segundo a segundo, interrogo-me: o que me falta ler de Tchekhov, Doistoievski, Shakespeare, Beckett, Calvino, Cervantes, Dickens, Roth? Tanta coisa! Eis a razão porque (ainda) não li Sepúlveda.

Dito isto, vamos à razão acessória: decidi não ler o Sepúlveda também pela sua postura pública, aliada a questões políticas. Luis Sepúlveda é o protótipo do escritor engajado que decidiu um dia abandonar a sua solidão criadora para se prostituir com a política. Em boa verdade, nunca se sabe onde acaba um (o escritor/ficcionista) e começa outro (o activista e ideólogo político). Um verdadeiro escritor de causas. Bem me podem dizer que todos os seres humanos são animais políticos; que, ao fim ao cabo, tudo é política; blá, blá, blá. Acontece que eu não consigo (já tentei, acredite) apreciar a forma como certos escritores, perante o crescente protagonismo da política como linguagem universal, decidiram abraçar a causa política. Não gosto da forma como, com total despudor, esses autores vêm a público defender a tese da «intervenção» política, normalmente de forma parcial, cega, hipócrita. Estamos a falar da estafada categoria do autor-intelectual-intervencionista, que continuam a considerar imperativa a necessidade de exibir a sua bandeira ideológica ou a sua simpatia por determinada causa. É-lhes difícil resistir ao apelo, à vaidade e ao capital de notoriedade que lhes poderá advir desse tipo de posições.
Longe vão os tempos em que um político era um político, um escritor «apenas» um escritor. Autores que sabiam ou mantinham espontaneamente a distância – em nome da discrição, do pudor, da humildade e, acima de tudo, na defesa da sua própria obra.
Em boa verdade, o caso de Luis Sepúlveda não é o mais grave, no sentido em que nunca enganou ninguém. Ainda assim, o que eu não perdoou ao escritor-activista Sepúlveda é o facto de misturar o seu estatuto de escritor com o de activista político, aproveitando-se do primeiro para desenvolver o segundo. O que é perigoso e desonesto na atitude da generalidade dos escritores engajados – à direita e à esquerda – é a tentativa de vender o seu peixe com o recurso a um estatuto paralelo. Entram na casa das pessoas, enquanto ficcionistas; são convidados para falar em público da criação literária e das personagens de ficção que povoam as suas obras. Mas aproveitam o ensejo para ir «mais além». “Minha senhora, agora que comprou e apreciou a minha obra, deixe-me falar-lhe das vantagens da garoupa...”.
Luis Sepúlveda é livre para escrever o que quiser. Inclusivamente sobre Pinochet e Allende. Agora, é bom que os seus leitores e o público em geral percebam que: 1) Luis Sepúvelda é um comunista ortodoxo; 2) Luis Sepúlveda foi sempre um defensor de Fidel e do regime Castrista; 3) Luis Sepúlveda, e alguns do seus amigos, foram vitimas da brutalidade do regime de Pinochet. Ou seja, estão reunidos os ingredientes para que o livrinho de Sepúlveda, sobre os trinta anos do golpe de Estado no Chile, seja tudo menos imparcial e rigoroso (e não estou a pedir que Sepúlveda seja benevolente para com Pinochet). Daí que Sepúlveda acabe a endeusar e a canonizar Allende, ao mesmo tempo que diaboliza Pinochet. Em Évora, por exemplo, fez questão de dizer que o Chile de Allende era um modelo de prosperidade, paz e liberdade; que Allende tentou implementar um modelo político-social à imagem do “Sueco”(sic); que nunca passou pela cabeça de Allende implementar no Chile um modelo marxista-leninista, etc. etc. O que é lamentável, embora previsível, é ver como um escritor enceta um périplo mundial com o intuito de escancarar a natureza totalitária do regime de Pinochet e, ao mesmo tempo, martirizar um «herói» e fazer a apologia de um modelo político que deu ao mundo os piores ditadores. O regime de Pinochet foi, de facto, um regime ditatorial e violento. Convenhamos que bater em Pinochet é fácil. Mas começa a ser patética a forma como se insiste na tese de um inocente e mártir Allende. A História foi bem mais complexa.
Diz o leitor que não se ofende com as posições políticas de Sepúlveda. De acordo. Eu também não. Cada qual toma a suas. Agora, já me fará um pouquinho de comichão ver como um homem se deu ao trabalho de escrever e, posteriormente, falar sobre o regime totalitário de Pinochet - exigindo justiça, ou seja, exigindo a sua prisão - ao mesmo tempo que se sabe que, esse mesmo homem, considera Fidel um herói e o seu regime um exemplo para a humanidade. Estamos a falar de um escritor que, ainda recentemente, veio a público criticar Saramago por este ter condenado as execuções de que foram alvo alguns cubanos (entre eles jornalistas). Tem razão o leitor: “cada vez mais me irritam os escribas que menosprezam os ditadores de direita para sublinharem críticas à esquerda”. E vice-versa.

PS: recomendo a leitura do artigo de Claudio Tellez "O Golpe de 1970 no Chile". E mais este.

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