GRANDE HELENA
Saudades de Esquerda
Por HELENA MATOS
PÚBLICO, 20 de Setembro de 2003
"A frase começou a ser dita cada vez com mais frequência: "Dantes era bem melhor!" Depois, como se tal fosse a coisa mais natural do mundo, uma espécie de consequência inevitável do confronto com o presente, começaram a deixar cair: "Isto é pior que o fascismo!" Em seguida entraram no processo de reabilitação da ditadura. Mas este "remake" do "Ó tempo volta para trás, dá-me tudo o que perdi" não é entoado por vozes como Kaúlza de Arriaga ou Rosa Casaco. Nada disso! É a esquerda, gente que sempre fez profissão de fé de antifascismo, alguns deles perseguidos pela PIDE, quem agora produz este nostálgico discurso. O próprio Manuel Alegre veio recentemente legitimar esta recuperação da ditadura declarando ao PÚBLICO: "Vivemos num clima mais perverso do que aquele que vivemos na ditadura. É muito desagradável dizer isto, mas é mais perverso: porque, na ditadura, eu sabia quem era o inimigo, sabia os riscos que corria, e, quando era preso, sabia por que é que era. Era uma situação clara. Neste momento, é uma situação perversa."
Estas declarações de Manuel Alegre exprimem, por um lado, a extraordinária desorientação a que o PS chegou com o caso Pedroso e, por outro, são reveladoras da incapacidade de uma esquerda que se formou na oposição ao salazarismo de aceitar a realidade da democracia por que tanto lutou e as inevitáveis mudanças que o tempo acarreta.
Este tipo de discurso começou a fazer-se ouvir, primeiro, nos sectores derrotados no 25 de Novembro de 1975. Alguns pretendiam que a situação saída desse golpe reinstituíra no país algo semelhante ao que se vivia antes do 25 de Abril de 1974. Mas ficavam-se geralmente por umas frases de lirismo "kitsch" sobre essa data - o tempo em que os sonhos se desfizeram; o fim dos dias em que tudo era possível... De qualquer forma não diziam ainda que o fascismo tinha sido melhor. Não só se mantinha viva como até em muitos casos se exacerbava o que fora a resistência à ditadura e, por outro lado, a estratégia de comunicação da esquerda afecta ao PCP passava sobretudo por agitar o espantalho do retorno do fascismo a qualquer alteração legislativa. O PS, durante os governos de Cavaco Silva, também ocasionalmente invocou o regresso do fascismo mas apostou mais no denegrir do presente, o "cavaquistão".
Anos depois, um dos sinais óbvios de que o PS tinha perdido a dinâmica do poder e consequentemente a vontade de fazer o presente aconteceu durante a última campanha autárquica, quando João Soares escolheu, num total desacerto com o tempo e o lugar, o "slogan" "Fascismo nunca mais"! para ganhar a Câmara de Lisboa. E agora que não só está na oposição como a sofrer o imenso desgaste do caso Casa Pia, o PS irmanou-se aos saudosos do PREC e outros vencidos da vida e, todos a uma só voz, choram de saudades dos bons velhos tempos. Exactamente esses em que Portugal foi uma ditadura. Ter-se-ão tornado fascistas? De modo algum, mas têm saudades desse tempo em que dividiam o mundo em bons e maus. Sendo que eles eram sempre bons fizessem o que fizessem. Durante a ditadura, a censura e a própria repressão policial permitiram a muitos iludirem a sua mediocridade imaginando sucessos e reconhecimento público que efectivamente não mereciam. Por isso, quando chegou a democracia e já não tinham o censor a dar-lhes importância nem a polícia a impedir-lhes as actividades e ficaram sós perante o público, o povo e, sobretudo, perante si mesmos, começaram por amaldiçoar o mercado, a competitividade e a concorrência. Em seguida, fizeram discursos sobre esse tempo em que todos se conheciam. Em que havia valores e ideais. Em que se faziam espectáculos de qualidade...
Depois, face a um presente cuja mudança não acompanham, face à chegada de novas gerações de políticos, autores, jornalistas..., começaram a sentir saudades daquele lápis azul que lhes dava tanta importância. Daquele censor seu espectador, leitor, ouvinte... enfim seguidor atento. Daí a balbuciarem que queriam a sua ditadura de volta foi um passo.
É certo que as democracias são injustas. É certo que podem estar detidos inocentes. É certo que as novelas da TVI têm mais audiência que as séries da RTP2. Mas não há qualquer comparação entre democracia e ditadura. Estas últimas são naturalmente perversas. Porque conferem um ignominioso estatuto de excepcionalidade a quem as governa mas também a quem se lhes opõe. Todos nós ouvimos falar da farsa que foi o julgamento dos membros do regime no caso Ballet Rose. Mas a farsa não acabava aí. A farsa é a ilusão de normalidade numa ditadura. Para o ditador, para aqueles que o rodeiam e para os que se lhe opõem. Por exemplo, caso um qualquer dirigente da oposição, durante a ditadura, tivesse sido acusado de abuso sexual de menores nunca ninguém acreditaria porque se tratava duma invenção da PIDE. Caso durante a ditadura um qualquer oposicionista fosse acusado de ter desviado dinheiro, isso seria sempre uma calúnia. Caso durante a ditadura um militante comunista ou de extrema-esquerda fosse acusado de ter assassinado alguém que consideravam dissidente, traidor ou informador da polícia, restava sempre a possibilidade de ter sido a PIDE... Por isso têm saudades desse tempo em que, como nas histórias infantis, os maus eram sempre maus e os bons sempre bons. Têm saudades desse tempo em que eles que agora assim falam, artistas, profissionais liberais e jornalistas de oposição, se sentiam investidos duma superioridade quase aristocrática. Ridicularizavam os censores e desprezavam os polícias. E estes últimos sabiam bem que nos calabouços não se tratava da mesma forma um trabalhador rural ou um frequentador da Brasileira.
É desse mundo em que tudo era perversamente familiar, em que a cunha da União Nacional coexistia, do outro lado, com o apoio cego e incondicional a quem se declarasse correlegionário, é desse mundo em que cada um sabia que o seu estatuto não seria beliscado, antes reforçado pela outra parte, de que a esquerda hoje tem saudades. É desse mundo em que a vida de cada um era condicionada e julgada pelo que se dizia ser e não pelo que de facto se era e fazia que a esquerda quer de volta. Tudo isto é muito triste e não creio que a culpa seja do fado."
Saudades de Esquerda
Por HELENA MATOS
PÚBLICO, 20 de Setembro de 2003
"A frase começou a ser dita cada vez com mais frequência: "Dantes era bem melhor!" Depois, como se tal fosse a coisa mais natural do mundo, uma espécie de consequência inevitável do confronto com o presente, começaram a deixar cair: "Isto é pior que o fascismo!" Em seguida entraram no processo de reabilitação da ditadura. Mas este "remake" do "Ó tempo volta para trás, dá-me tudo o que perdi" não é entoado por vozes como Kaúlza de Arriaga ou Rosa Casaco. Nada disso! É a esquerda, gente que sempre fez profissão de fé de antifascismo, alguns deles perseguidos pela PIDE, quem agora produz este nostálgico discurso. O próprio Manuel Alegre veio recentemente legitimar esta recuperação da ditadura declarando ao PÚBLICO: "Vivemos num clima mais perverso do que aquele que vivemos na ditadura. É muito desagradável dizer isto, mas é mais perverso: porque, na ditadura, eu sabia quem era o inimigo, sabia os riscos que corria, e, quando era preso, sabia por que é que era. Era uma situação clara. Neste momento, é uma situação perversa."
Estas declarações de Manuel Alegre exprimem, por um lado, a extraordinária desorientação a que o PS chegou com o caso Pedroso e, por outro, são reveladoras da incapacidade de uma esquerda que se formou na oposição ao salazarismo de aceitar a realidade da democracia por que tanto lutou e as inevitáveis mudanças que o tempo acarreta.
Este tipo de discurso começou a fazer-se ouvir, primeiro, nos sectores derrotados no 25 de Novembro de 1975. Alguns pretendiam que a situação saída desse golpe reinstituíra no país algo semelhante ao que se vivia antes do 25 de Abril de 1974. Mas ficavam-se geralmente por umas frases de lirismo "kitsch" sobre essa data - o tempo em que os sonhos se desfizeram; o fim dos dias em que tudo era possível... De qualquer forma não diziam ainda que o fascismo tinha sido melhor. Não só se mantinha viva como até em muitos casos se exacerbava o que fora a resistência à ditadura e, por outro lado, a estratégia de comunicação da esquerda afecta ao PCP passava sobretudo por agitar o espantalho do retorno do fascismo a qualquer alteração legislativa. O PS, durante os governos de Cavaco Silva, também ocasionalmente invocou o regresso do fascismo mas apostou mais no denegrir do presente, o "cavaquistão".
Anos depois, um dos sinais óbvios de que o PS tinha perdido a dinâmica do poder e consequentemente a vontade de fazer o presente aconteceu durante a última campanha autárquica, quando João Soares escolheu, num total desacerto com o tempo e o lugar, o "slogan" "Fascismo nunca mais"! para ganhar a Câmara de Lisboa. E agora que não só está na oposição como a sofrer o imenso desgaste do caso Casa Pia, o PS irmanou-se aos saudosos do PREC e outros vencidos da vida e, todos a uma só voz, choram de saudades dos bons velhos tempos. Exactamente esses em que Portugal foi uma ditadura. Ter-se-ão tornado fascistas? De modo algum, mas têm saudades desse tempo em que dividiam o mundo em bons e maus. Sendo que eles eram sempre bons fizessem o que fizessem. Durante a ditadura, a censura e a própria repressão policial permitiram a muitos iludirem a sua mediocridade imaginando sucessos e reconhecimento público que efectivamente não mereciam. Por isso, quando chegou a democracia e já não tinham o censor a dar-lhes importância nem a polícia a impedir-lhes as actividades e ficaram sós perante o público, o povo e, sobretudo, perante si mesmos, começaram por amaldiçoar o mercado, a competitividade e a concorrência. Em seguida, fizeram discursos sobre esse tempo em que todos se conheciam. Em que havia valores e ideais. Em que se faziam espectáculos de qualidade...
Depois, face a um presente cuja mudança não acompanham, face à chegada de novas gerações de políticos, autores, jornalistas..., começaram a sentir saudades daquele lápis azul que lhes dava tanta importância. Daquele censor seu espectador, leitor, ouvinte... enfim seguidor atento. Daí a balbuciarem que queriam a sua ditadura de volta foi um passo.
É certo que as democracias são injustas. É certo que podem estar detidos inocentes. É certo que as novelas da TVI têm mais audiência que as séries da RTP2. Mas não há qualquer comparação entre democracia e ditadura. Estas últimas são naturalmente perversas. Porque conferem um ignominioso estatuto de excepcionalidade a quem as governa mas também a quem se lhes opõe. Todos nós ouvimos falar da farsa que foi o julgamento dos membros do regime no caso Ballet Rose. Mas a farsa não acabava aí. A farsa é a ilusão de normalidade numa ditadura. Para o ditador, para aqueles que o rodeiam e para os que se lhe opõem. Por exemplo, caso um qualquer dirigente da oposição, durante a ditadura, tivesse sido acusado de abuso sexual de menores nunca ninguém acreditaria porque se tratava duma invenção da PIDE. Caso durante a ditadura um qualquer oposicionista fosse acusado de ter desviado dinheiro, isso seria sempre uma calúnia. Caso durante a ditadura um militante comunista ou de extrema-esquerda fosse acusado de ter assassinado alguém que consideravam dissidente, traidor ou informador da polícia, restava sempre a possibilidade de ter sido a PIDE... Por isso têm saudades desse tempo em que, como nas histórias infantis, os maus eram sempre maus e os bons sempre bons. Têm saudades desse tempo em que eles que agora assim falam, artistas, profissionais liberais e jornalistas de oposição, se sentiam investidos duma superioridade quase aristocrática. Ridicularizavam os censores e desprezavam os polícias. E estes últimos sabiam bem que nos calabouços não se tratava da mesma forma um trabalhador rural ou um frequentador da Brasileira.
É desse mundo em que tudo era perversamente familiar, em que a cunha da União Nacional coexistia, do outro lado, com o apoio cego e incondicional a quem se declarasse correlegionário, é desse mundo em que cada um sabia que o seu estatuto não seria beliscado, antes reforçado pela outra parte, de que a esquerda hoje tem saudades. É desse mundo em que a vida de cada um era condicionada e julgada pelo que se dizia ser e não pelo que de facto se era e fazia que a esquerda quer de volta. Tudo isto é muito triste e não creio que a culpa seja do fado."
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