DIFERENÇAS
Pedro Mexia escrevia, há dias, sobre a(s) diferença(s) entre a esquerda e a direita, explicando porque razão não era «canhoto». ”Sempre soube que não era de esquerda e que era de direita por uma razão evidente: sou um pessimista antropológico, e sem alguma crença na «Humanidade» não é possível perfilhar ideias de esquerda.”
Relembro o que escreveu Jaime Nogueira Pinto: “o pessimismo antropológico tem que ser entendido como uma posição filosófica e como uma atitude histórica de partida, sempre superada e superável no caso concreto. Não sendo transformista, a direita acredita que as boas instituições melhoram a sociedade e os homens, embora não transformem a natureza humana”.(1)
Em sede de filosofia política, se me pedissem para enumerar a grande diferença entre a «esquerda» e a «direita» (latu sensu, para simplificar) - para além da já clássica diferença de ponderação atribuida à liberdade e à igualidade - não hesitaria em referir, à cabeça, um elemento que continua a marcar indelevelmente a discussão em torno dessa dicotomia, no que respeita à percepção da natureza humana. Refiro-me à "Fé Iluminista".
O lImunismo estabeleceu e consolidou a ideia de que o predomínio do mal, em determinada área ou contexto (que os conservadores apontam como consequência de acções humanas autónomas e conscientes) é sinónimo de inconsciência e não-autonomia moral. Na Fé Iluminista, as boas escolhas e as boas acções são moralmente interpretadas como uma evidência da autonomia moral e da racionalidade dos seus agentes - ao contrário das escolhas erradas e das acções negativas e malévolas. Se as pessoas causam o mal, a explicação é encontrada numa deficiente organização política, que as corrompeu e as deixou à deriva. Se as pessoas agem correctamente, a razão nas boas opções políticas e nas já referidas racionalidade e autonomia moral.
Tradicionalmente, a esquerda é optimista em relação à natureza humana, acreditando que os homens só não agirão correctamente se estiverem a ser alvo de uma nefasta influência ou ingerência externa, a qual, invariavelmente, lhes toldará a razão e os colocará numa situação de vazio moral (como se fossem forçados a agir irreflectidamente, contra a sua vontade). Ou seja, por culpa de circunstâncias externas, alheias às suas motivações e concepções, o homem pode perder a sua consciência e a capacidade para distinguir o bem do mal. É este, por exemplo, o raciocínio presente na interpretação, por parte da esquerda, do fenómeno do terrorismo (o terrorismo como consequência da injustiça e do sofrimento) e da globalização (como resultado de um neo-liberalismo selvagem e de uma dominação global de uma super-potência). Ou na concepção marxista que coloca a condição social das pessoas como o único factor de formação da consciência e da moralidade individuais.
Do outro lado, encontramos, por exemplo no conservadorismo, uma visão distinta que colide com a Fé Iluminista e as concepções rosseaunianas. Uma visão que recusa transferir para terceiros, de forma metódica e automática, a culpa de comportamentos desviantes, errados, malévolos.
Quando Theodore Dalrymple tenta explicar, com conhecimento de causa e de forma contundente, que na maioria dos casos é a consciência dos homens que determina e condiciona a sua condição social, estamos perante uma visão completamente oposta. Para a direita, a natureza humana não é única nem aprioristicamente benigna. A humanidade, como conceito sociológico, não existe. A humanidade é constituída por conjuntos e sub-conjuntos heterogéneos, nos quais as motivações e os objectivos de uns diferem dos de outros. Para a direita, é absolutamente claro que o homem tem autonomia moral para praticar o mal, i. e., de forma consciente e com um objectivo claro, racional, determinado. Por exemplo, os terroristas e as organizações que os suportam podem estar ao serviço dos seus interesses, os quais podem colidir de forma estrondosa com a tese de um hipotético ímpeto irreflectido e desesperado. Ou seja, a direita admite que pode haver autonomia e consciência moral no terrorismo. Quando a Al Qaeda decidiu estourar com as Twin Towers, massacrando milhares de pessoas, é imperativo perceber que esse acto pode não ter sido um acto de desespero, consequência da más condições de vida dos seus autores, ou como corolário de uma deformação moral (à luz da ocidental).
Muitas vezes, a diferença entre a esquerda e a direita encontra-se aí. A esquerda acreditará sempre na ideia de que, se as pessoas escolherem e agirem sem qualquer influência política errada; se não tiverem de enfrentar a pobreza, o crime, a discriminação e outras doenças sociais; se não forem ignorantes, preconceituosas, doentes da mente e do corpo; se não se encontrarem revoltadas perante a injustiça; se tiverem tempo para pensar em paz nas suas escolhas e nas suas acções - então aí elas optarão por fazer o bem, e não o mal.
Para a direita, isto é absolutamente ingénuo e inconclusivo. O «pessimismo antropológico», aliado a um apurado sentido da realidade (tantas vezes confundido com uma putativa defesa do status quo), conduz a que se observe a propensão humana para praticar o mal como uma característica permanente e indissociável da vida moral. Apesar de esta poder sofrer a influencia das disposições e da organização políticas (para o bem e para o mal), esta é uma característica intrínseca a todo o ser humano. As tais disposições e a tal organização política podem, na prática, alterar o nível de prevalência do mal. Mas nem mesmo as melhores políticas conseguem bani-lo.
(Num dos seus mais brilhantes textos, Dalrymple pega no exemplo neo-zelandês, que ele conhece bem: um altíssimo nível de vida, condições naturais e ambientais à beira da perfeição, um sistema de apoio social de luxo (o Estado Providência neo-zelandês é dos mais antigos do mundo), um sistema de ensino e um sistema judicial de fazer inveja. Reunidas estas condições - que fazem da sociedade neo-zelandesa uma sociedade próspera, democrática e igualitária - esperar-se-ia que, segundo a Fé Iluminista, a taxa de crimes e de violência fosse marginal, irrisória, ridícula. Mas isso não acontece. Em termos relativos, a Nova Zelândia apresentou, ao longo de todo o Sec. XX, taxas de crime iguais e por vezes superiores às da sua nação-mãe: a Grã Bretanha).
A direita, sendo pessimista, não rejeita a ideia de que se podem alcançar melhorias derivadas das boas opções e das melhores disposições políticas. A direita tem consciência de que a vida em sociedade pode melhorar. Mas tem também a noção do Iago, em Otelo: Men are men, the best sometimes forget. A organização e as escolhas políticas são feitas pelos mesmos homens. Não saem da esteira de sábios intocáveis, de autómatos perfeccionistas. A tal propensão intrínseca para o mal, para o erro, para a mediocridade - ao fim ao cabo a falibilidade humana - estão também presentes no legislador, no político, no burocrata e tecnocrata. Daí que a direita pessimista, pelo menos a mais conservadora, insista na defesa das instituições tradicionais (escrutinadas pelo tempo), no bom senso dos cépticos, no apuramento gradual das experiências adquiridas - ao invés de se concentrar numa busca incerta e difusa de modelos abrangentes, supostamente salvifícos, produto de mentes brilhantes ao serviço do bem comum.
(1) “A Direita e as Direitas”, Jaime Nogueira Pinto, Difel 1996
Pedro Mexia escrevia, há dias, sobre a(s) diferença(s) entre a esquerda e a direita, explicando porque razão não era «canhoto». ”Sempre soube que não era de esquerda e que era de direita por uma razão evidente: sou um pessimista antropológico, e sem alguma crença na «Humanidade» não é possível perfilhar ideias de esquerda.”
Relembro o que escreveu Jaime Nogueira Pinto: “o pessimismo antropológico tem que ser entendido como uma posição filosófica e como uma atitude histórica de partida, sempre superada e superável no caso concreto. Não sendo transformista, a direita acredita que as boas instituições melhoram a sociedade e os homens, embora não transformem a natureza humana”.(1)
Em sede de filosofia política, se me pedissem para enumerar a grande diferença entre a «esquerda» e a «direita» (latu sensu, para simplificar) - para além da já clássica diferença de ponderação atribuida à liberdade e à igualidade - não hesitaria em referir, à cabeça, um elemento que continua a marcar indelevelmente a discussão em torno dessa dicotomia, no que respeita à percepção da natureza humana. Refiro-me à "Fé Iluminista".
O lImunismo estabeleceu e consolidou a ideia de que o predomínio do mal, em determinada área ou contexto (que os conservadores apontam como consequência de acções humanas autónomas e conscientes) é sinónimo de inconsciência e não-autonomia moral. Na Fé Iluminista, as boas escolhas e as boas acções são moralmente interpretadas como uma evidência da autonomia moral e da racionalidade dos seus agentes - ao contrário das escolhas erradas e das acções negativas e malévolas. Se as pessoas causam o mal, a explicação é encontrada numa deficiente organização política, que as corrompeu e as deixou à deriva. Se as pessoas agem correctamente, a razão nas boas opções políticas e nas já referidas racionalidade e autonomia moral.
Tradicionalmente, a esquerda é optimista em relação à natureza humana, acreditando que os homens só não agirão correctamente se estiverem a ser alvo de uma nefasta influência ou ingerência externa, a qual, invariavelmente, lhes toldará a razão e os colocará numa situação de vazio moral (como se fossem forçados a agir irreflectidamente, contra a sua vontade). Ou seja, por culpa de circunstâncias externas, alheias às suas motivações e concepções, o homem pode perder a sua consciência e a capacidade para distinguir o bem do mal. É este, por exemplo, o raciocínio presente na interpretação, por parte da esquerda, do fenómeno do terrorismo (o terrorismo como consequência da injustiça e do sofrimento) e da globalização (como resultado de um neo-liberalismo selvagem e de uma dominação global de uma super-potência). Ou na concepção marxista que coloca a condição social das pessoas como o único factor de formação da consciência e da moralidade individuais.
Do outro lado, encontramos, por exemplo no conservadorismo, uma visão distinta que colide com a Fé Iluminista e as concepções rosseaunianas. Uma visão que recusa transferir para terceiros, de forma metódica e automática, a culpa de comportamentos desviantes, errados, malévolos.
Quando Theodore Dalrymple tenta explicar, com conhecimento de causa e de forma contundente, que na maioria dos casos é a consciência dos homens que determina e condiciona a sua condição social, estamos perante uma visão completamente oposta. Para a direita, a natureza humana não é única nem aprioristicamente benigna. A humanidade, como conceito sociológico, não existe. A humanidade é constituída por conjuntos e sub-conjuntos heterogéneos, nos quais as motivações e os objectivos de uns diferem dos de outros. Para a direita, é absolutamente claro que o homem tem autonomia moral para praticar o mal, i. e., de forma consciente e com um objectivo claro, racional, determinado. Por exemplo, os terroristas e as organizações que os suportam podem estar ao serviço dos seus interesses, os quais podem colidir de forma estrondosa com a tese de um hipotético ímpeto irreflectido e desesperado. Ou seja, a direita admite que pode haver autonomia e consciência moral no terrorismo. Quando a Al Qaeda decidiu estourar com as Twin Towers, massacrando milhares de pessoas, é imperativo perceber que esse acto pode não ter sido um acto de desespero, consequência da más condições de vida dos seus autores, ou como corolário de uma deformação moral (à luz da ocidental).
Muitas vezes, a diferença entre a esquerda e a direita encontra-se aí. A esquerda acreditará sempre na ideia de que, se as pessoas escolherem e agirem sem qualquer influência política errada; se não tiverem de enfrentar a pobreza, o crime, a discriminação e outras doenças sociais; se não forem ignorantes, preconceituosas, doentes da mente e do corpo; se não se encontrarem revoltadas perante a injustiça; se tiverem tempo para pensar em paz nas suas escolhas e nas suas acções - então aí elas optarão por fazer o bem, e não o mal.
Para a direita, isto é absolutamente ingénuo e inconclusivo. O «pessimismo antropológico», aliado a um apurado sentido da realidade (tantas vezes confundido com uma putativa defesa do status quo), conduz a que se observe a propensão humana para praticar o mal como uma característica permanente e indissociável da vida moral. Apesar de esta poder sofrer a influencia das disposições e da organização políticas (para o bem e para o mal), esta é uma característica intrínseca a todo o ser humano. As tais disposições e a tal organização política podem, na prática, alterar o nível de prevalência do mal. Mas nem mesmo as melhores políticas conseguem bani-lo.
(Num dos seus mais brilhantes textos, Dalrymple pega no exemplo neo-zelandês, que ele conhece bem: um altíssimo nível de vida, condições naturais e ambientais à beira da perfeição, um sistema de apoio social de luxo (o Estado Providência neo-zelandês é dos mais antigos do mundo), um sistema de ensino e um sistema judicial de fazer inveja. Reunidas estas condições - que fazem da sociedade neo-zelandesa uma sociedade próspera, democrática e igualitária - esperar-se-ia que, segundo a Fé Iluminista, a taxa de crimes e de violência fosse marginal, irrisória, ridícula. Mas isso não acontece. Em termos relativos, a Nova Zelândia apresentou, ao longo de todo o Sec. XX, taxas de crime iguais e por vezes superiores às da sua nação-mãe: a Grã Bretanha).
A direita, sendo pessimista, não rejeita a ideia de que se podem alcançar melhorias derivadas das boas opções e das melhores disposições políticas. A direita tem consciência de que a vida em sociedade pode melhorar. Mas tem também a noção do Iago, em Otelo: Men are men, the best sometimes forget. A organização e as escolhas políticas são feitas pelos mesmos homens. Não saem da esteira de sábios intocáveis, de autómatos perfeccionistas. A tal propensão intrínseca para o mal, para o erro, para a mediocridade - ao fim ao cabo a falibilidade humana - estão também presentes no legislador, no político, no burocrata e tecnocrata. Daí que a direita pessimista, pelo menos a mais conservadora, insista na defesa das instituições tradicionais (escrutinadas pelo tempo), no bom senso dos cépticos, no apuramento gradual das experiências adquiridas - ao invés de se concentrar numa busca incerta e difusa de modelos abrangentes, supostamente salvifícos, produto de mentes brilhantes ao serviço do bem comum.
(1) “A Direita e as Direitas”, Jaime Nogueira Pinto, Difel 1996
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