O MacGuffin

quarta-feira, setembro 17, 2003

TRISTE ALEGRE
“Vivemos num clima mais perverso do que na ditadura.” É esta opinião do Sr. Manuel Alegre, em entrevista ao Público de 17 de Setembro.
Carlos Câmara Leme, jornalista do Público, começa por perguntar: “O clima Orweliano que o país vive – sobretudo para alguém que sofreu com a ditadura e é escritor – não é um excelente tema de ficção?” Assim, sem mais. Nem menos. Como se de um dado adquirido e insofismável se tratasse, o jornalista parte do princípio de que se vive num clima “Orweliano”. Um clima que, está bom de ver, só poderá ser vislumbrado por gente com um sentido apurado da vida – ou seja, por quem sofreu com a ditadura. Aliás, quem “sofreu com a ditadura” parece ter adquirido uma legitimidade para dizer as maiores barbaridades, sob a capa da putativa clarividência de quem “já viu tudo”. Manuel Alegre fala como se envergasse um «livre trânsito» para pôr em causa tudo o que até à data foi conquistado.
“Estamos a viver uma situação quase kafkiana”, afirma Alegre. Mais à frente, Carlos Câmara Leme volta a deixar a deixa (ele, que parece estar ao serviço do seu entrevistado), perguntando: “Não sente uma espécie de “melancolia democrática”, próxima da impotência?” Alegre responde: “De certo modo, sim. Vivemos num clima mais perverso do que aquele que vivemos na ditadura. É muito desagradável dizer isto, mas é mais perverso porque, na ditadura, eu sabia quem era o inimigo, sabia os riscos que corria, e, quando era preso, sabia por que é que era. Era uma situação clara. Neste momento é uma situação perversa.” (sic).
É muito desagradável dizer isto, mas o Sr. Manuel Alegre devia ter vergonha na cara. É revoltante ouvir um encartado anti-fascista dizer que “então é que era, agora é bem pior”. Desculpem o desabafo, mas das duas umas: ou o Sr. Manuel Alegre enlouqueceu, ou tornou-se num hipócrita irresponsável.
E qual a razão para esta inquietação? Nada mais, nada menos do que o processo Casa pia e, ‘en passant’, a «problemática» das escutas telefónicas. De forma despudorada, Alegre parece não hesitar em nos fazer crer que o actual sistema judicial não só não oferece garantias de imparcialidade e protecção aos cidadãos nele envolvidos como, bem pior, está ao serviço de «inimigos». Como em qualquer regime totalitário.
Que eu saiba ninguém foi torturado; ninguém foi preso por delito de opinião; todos os que foram detidos sabem porque lá estão (por muito que os seus advogados tentem lançar a suspeita de que nada sabem); a lei está a ser escrupulosamente cumprida; o MP, os magistrados e o sistema judicial português (há especialistas a colocá-lo entre os melhores do mundo) não são “inimigos” de ninguém, nem estão ao serviço de uns contra outros. Quem é Manuel Alegre?
No fundo, esta “melancolia democrática”, presente em Alegre e também em Soares, não é mais do que um sinal claro de que um certo modelo político e organizacional, idealizado algures após o 25 de Abril, tem os seus dias contados. Um modelo povoado de engajamentos, amigalhaços, influências certas, intocabilidades, secretismos e paninhos quentes.
Com todos os seus defeitos, eu tenho orgulho na democracia portuguesa. Vivo em liberdade. Construo a minha vida e faço as minhas opções sem pressões, constrangimentos ou censura. Seria incapaz de alinhavar comparações absurdas, estúpidas, potencialmente perigosas. Há quem tenha a nostalgia do antigamente. Há quem melancolicamente suspire pelos “amanhãs que cantam” - à direita e, agora, à esquerda. A esses sugiro: emigrem. Deixem-nos entregue a estas perversidades kafkianas. Não se preocupem: a malta cá se amanhará.

0 Comentários:

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]

<< Página inicial

Powered by Blogger Licença Creative Commons
Esta obra está licenciado sob uma Licença Creative Commons.