O MacGuffin: maio 2004

domingo, maio 30, 2004

OBITUÁRIO
Dicionário do Diabo (2003-2004). Next stop: Fora do Mundo

sábado, maio 29, 2004

NOTÍCIA ABSOLUTAMENTE FANTÁSTICA
(actualizado)
Há dias, lembrava, com o maradona, quais velhos a contemplar memórias, os bons velhos tempos do Pastilhas. Que me desculpem o Pedro, o Pedro e o João, mas não foi a Coluna Infame que trouxe, para Portugal, o conceito de blogue. Foi o Miguel Esteves Cardoso com o Pastilhas. E foi no Pastilhas que se conseguiu reunir um grupo de pessoas absolutamente fantásticas (autodenominados de ‘pastilhentos’), que mais tarde acabaram por criar os seus próprios blogues. Exemplos: Moi Même, Estações Diferentes, Bomba Inteligente, Ford Mustang, A Papoila, A Causa Foi Modificada, Memória Inventada, Crónicas Matinais, Senhor Carne, Tradução Simultânea, Avenida Vastulec, Umbigo Niilista, Elvis Está Vivo, Triciclo Feliz, Sem Querer Penso, Moody Swing, Sr. Vertigem, Ideafix, Conversa na Travessa, Titas, A Bomba, etc. etc. (se me estou a esquecer de alguém, escrevam para carlosccc@mail.telepac.pt). Outros optaram por participar ocasionalmente na blogosfera, como é o caso da Zazie no Janela Indiscreta e no Associação de Radicais Pela Ética.

Hoje, qual não é o meu espanto, descubro o blogue de um dos mais interessantes e talentosos ‘pastilhentos’: o Rui Pelejão, a. k. a. Vodka7. Portanto, aviso à navegação: não percam este farol. Estou a falar de um valor seguríssimo!

(eu, que já tinha prometido encerrar a lista de blogues, lá tive de abrir esta excepção)
ENTRETANTO
No Causa Nossa os 'posts' são "inseridos por...".

sexta-feira, maio 28, 2004

JUNTO-ME
Como refere o Alberto (Alberto: para quando um regresso em pleno?), o Ricardo continua a prestar serviço público com a publicação das crónicas do grande Auberon Waugh, que escrevia, na sua autobiografia: "My own attitude to the innumerable injustices of life has always been a philosophical one, specially when they have tendend to operate in my favour. A player in life's poker game can use only the cards he is dealt. It is not the sign of a clever or compassionate player who is dealt three kings if he trades one of them in for a jack. Most hands have good and bad cards in them. Others may have been born richer or more athletic than I was, better at singing or dancing or drawing in charcoal. I was born with a famous name and a certain fluency in writing - and also with sufficient acumen to see that neither of this gifts would endear me to everyone in my chosen line of business. Writing is a jealous profession, and journalism even more so. If I had not already been aware of it, I was soon to learn of the unbudgeable resentment which these two advantages would cause in many quarters." ("Will This Do?", House of Stratus 2001)

Remexendo os arquivos do Contra, descobri esta crónica de Auberon, publicada em 4 de Janeiro de 1999. Junto-me, assim, a esta espécie de homenagem, levada a cabo pelo Babugem:

"Stand Up For Snobs"
"A friend characterised my strong desire for greater European integration as being inspired by snobbish motives, and this seemed fair enough. The word “snob” – at any rate since its original meaning of «shoemaker» - has always been used pejoratively, and we must agree that when described an excessive regard for the peerage, or for social aggrandisement, it may have been justified as a term of abuse.
Nowadays, however, it is used in the proletarian culture to describe anyone who reads the Telegraph rather than the Sun, and in the great cultural battle between snobs and yobs we should be all proud to call ourselves snobs.
The difference between the two cultures was well illustrated on Friday night’s television, when Jeremy Paxman, on BBC2, introduced a version of University Challenge with two teams, one from the tabloid and one from the broadsheet press. My point is not that the tabloids showed themselves in a poor light. In fact both the tabloid team, led by the Mirror’s Tony Parsons, and the broadsheet team, led by our own Boris Johnson, struck me as brilliant – very quick and impressively well informed.
Then half an hour later, ITV showed a new series: Who wants to be a millionaire? This was presented by Chris Tarrant and sponsored, needless to say, by the Sun, promising up to £1 million for anyone who could answer a number of general knowledge questions correctly.
A fat, expressionless man called Jason with an unrecognisable accent was brought on and asked eight general knowledge questions of an easiness which made everybody present gasp. Refusing the ninth question, he was told he had won £16,000 and led away. Another, almost equally fat man, this time with a northern accent, was brought on and started the process again. The contrast between the two cultures could not have been plainer. We are all snobs. This is not quite the same thing as saying we must all support the common currency, only that those who don’t support it have some explaining to do."
UMA VEZ MAIS, A LADAINHA
Há muitos anos que não lia a Newsweek. A semana passada, passando por uma banca de jornais, dei de caras com uma capa que me deixou curioso: “The Death of The Bristo – Are Taxes and Red Tape Strangling the French Food Industry?”, edição de 24 de Maio. Comprei a revista e mergulhei de cabeça na página 41, local da dita reportagem.

A oriente, nada de novo. O artigo em questão, de Marie Valla e Christopher Dickey, parece ter sido encomendado pelo Sr. Bové, pelo Sr. Villepain e pelo sindicato dos agricultores franceses. Nele se defende a idiossincrasia e exclusividade da cozinha francesa, apresentando-a ao mundo como a mais recente vitima da, claro está, «globalização». O que prova, mais uma vez, que a «globalização» passou a a ser o bode expiatório preferencial quando alguma coisa corre mal. Sobretudo, e por ironia, nos países do «primeiro mundo».

O artigo começa com a lapidar e dramática afirmação de que “a famosa industria alimentar francesa está em declínio”. A culpa, segundo os autores da reportagem, é da “globalização, bem como do governo francês.” Mais à frente, diz-se que “o que é medíocre lá fora, acaba por ser importado para a França”, provocando o descontentamento dos turistas, que, de lágrima no canto do olho, “já não conseguem discernir o que há assim de tão especial na cozinha francesa”. Depois, chega a vez dos agricultores: “Cheaper imports threaten the backbone of French cuisine – its local farmers”, lê-se numa das caixas. A activista Brigitte Allain, ela própria uma agricultora, afirma que “neste sistema [PAC] os agricultores são fornecedores de produtos básicos, onde apenas se exige [de forma a receber o subsídiozinho da ordem] que os bens agrícolas sejam entregues de acordo com as regras”, sem que estas tenham em consideração aspectos como a qualidade e a variedade de sabores, acrescentam os jornalistas. E por aí fora.

O artigo está pejado de contradições, incoerências e propaganda anti-globalização com direito a tiro no pé. Os agricultores franceses e, em geral, os da UE, vivem há décadas da «mama» dos subsídios para evitar entrar em confronto directo com os produtos dos países em vias de desenvolvimento, cuja grande diferença, sejamos honestos, não é de qualidade mas sim de preço: são muito mais baratos. A queixa relativa à globalização é, neste caso, completamente absurda. No CEPR Policy Paper N.º 8, um estudo comissionado pelo Centre for Economic Policy Research, através da UE, onde participaram inúmeros e conceituados investigadores de universidades e institutos franceses, italianos, ingleses e americanos (estudo esse que o Sr. Prodi meteu na gaveta, uma vez que contrariava a litania contra a globalização), concluía-se que ”Farmers in developing countries switch to cash crops that despoil the local environment and mean they can no longer feed themselves in case of a crisis, all in order to satisfy the whims of northern consumers. They are forced out of world markets for their traditional crops by agricultural protection and face dumping of subsidized northern crops on their own markets. (…) Farmers in poor countries have indeed been forced out of northern markets, and face subsidized exports from rich countries. Fortunately, there are suitable domestic policy responses to the first problem, while the second problem requires developed countries to live up to their own globalizing rhetoric. In other words, more (or more consistent) globalization rather than less.”.

É particularmente obsceno verificar como os jornalistas da Newsweek se debruçaram sobre este tema sem estudar todas as suas implicações e variáveis. A cozinha francesa não entrou em declínio por causa da globalização. Se o motivo a apontar é o da quebra da qualidade, culpe-se a UE por apostar numa agricultura intensiva e pouco diversificada e, paralelamente, por fechar as portas à riqueza e variedade de uma multiplicidade de produtos provenientes dos países do terceiro mundo. O sistema dos subsídios não estrangula, apenas, os agricultores dos mercados exteriores à UE; inflaciona, também, o preço dos produtos agrícolas europeus, através de taxas e regulamentações proibitivas que, por sua vez, servem para alimentar o ciclo vicioso dos subsídios à agricultura. Para além disso, o argumento da qualidade é falso. Qualquer chef que se preze, sabe onde ir e como arranjar os bons ingredientes e a melhores matérias-primas, venham elas dos quintaneiros espalhados nos arredores dos grandes centros urbanos, das pequenas explorações viradas para a qualidade ou, ainda, do próprio mercado externo.

Esqueceram, também, que o declínio do chamado “turismo gastronómico” em França, está associado a uma melhoria significativa dos métodos, meios e qualidade de outras cozinhas europeias e mundiais, a que se associa a maior mobilidade de pessoas. Espanha e Portugal são o exemplo disso mesmo. Os franceses ainda não terão percebido que já não é só em França que se come bem. Come-se muito bem "lá fora" e muito mais em conta. Não foi tanto a França que decaiu. Houve, sim, quem se tivesse levantado.

A globalização é, de facto, uma coisa «lixada». Mas é lixada para quem, durante décadas, adormeceu à sombra da bananeira, mamando na teta do proteccionismo e subvalorizando quem, ali ao lado, foi fazendo pela vidinha. Os mesmos que, agora, reclamam justamente um lugar ao sol.
E, NO ENTANTO...
"Ganhámos"
por VASCO PULIDO VALENTE
"José Mourinho garantiu em Gelsenkirchen que ficará na história, pelo menos nos próximos cem anos, porque nos próximos cem anos ninguém tornará a ganhar, como ele ganhou, sucessivamente a Taça UEFA e a dos Campeões. Mourinho merece a nossa gratidão. Como de certeza nem o sr. Barroso, nem o sr. Sampaio ficarão na história, o Portugal do século XXI sobreviverá através dele, e só através dele, na memória humana. A vitória do Porto teve, na verdade, consequências de inconcebível alcance, que, de resto, e por assim dizer com grande espírito desportivo, o Presidente da República e o primeiro-ministro se apressaram a reconhecer. Para o Presidente da República, ela trouxe ao país «felicidade», «auto-estima» e também, dentro em pouco, a «retoma». Para o primeiro-ministro, ela foi «boa», genericamente «boa». E, para o «povo», que se manifestou como hoje já nem por si se manifesta, nada de melhor podia acontecer? A partir de anteontem, Portugal é perfeito e não se compreende, na verdade como ainda há por aí gente que se queixa. O Porto demonstrou o nosso génio nacional; o Porto saiu da cauda da Europa para a cabeça da Europa. A Europa está prostrada perante nós, tremendo de admiração e respeito. Claro que para certos «velhos do Restelo» (que escaparam à polícia) esta versão das coisas, a versão oficial e geral, só mostra até que ponto se degradou a sociedade e corrompeu o Estado. Dizem eles que a baixa cultura da plebe democrática não devia, em circunstância alguma, servir à política de medida e muleta. Que, pelo contrário, se devia sempre resistir à força do futebol, às pretensões do futebol, à falsa vida do futebol. Os «velhos do Restelo» felizmente não contam. Que vale esse país desgovernado e pobre, e agora indiferente ao seu destino, que persiste em não desaparecer apesar das proezas de Mourinho? Ganhámos, não ganhámos?"



in Diário de Notícias
EU, QUE NÃO PERCEBO NADA DE FUTEBOL
Reparo que o José Mário Silva escreveu “Desta vez, não houve a magia de Madjer, mas houve o pragmatismo de Deco, a calma glacial de Alenitchev.”

“O pragmatismo de Deco”? No FCP, Deco é o jogador que mais se aproxima da antítese do “jogador pragmático”. Deco é o jogador dos rasgos de génio, da magia inconstante e do drible impossível. Está a anos luz de ser um Maradona, mas é da mesma estirpe. Pragmático será, por exemplo, o Alenitchev. Ou o Derlei. O golo que Deco marcou – um golo que quase valeu o encontro – foi prova disso mesmo. Pena é que seja tão irregular e lhe falte capacidade atlética para outros voos.

O jogo de guelzenquirchem foi parco em bom futebol. O Mónaco foi uma sombra de si mesmo – por culpa, também, do FCP – e o Porto não esteve nos seus melhores dias. Mas mereceu ganhar. Aliás, o Porto tem sido um justo vencedor de tudo o que tem ganho. Quem disser o contrário e alinhar na ladainha do «sistema», das duas uma: ou é tendencioso ou é cego. E Mourinho - feitio e trejeitos à parte - é um dos melhores treinadores mundiais. O resto é conversa.

De um sportinguista: parabéns ao Futebol Clube do Porto. Parabéns à Ana e ao Francisco. E parabéns a todos os que torceram pelo FCP no jogo da final (nesse caso, se me dão licença, também estou de parabéns).
AINDA MOORE
A leitora Ermelinda de Sá Carioca põe em causa a minha opinião sobre o mais recente filme de Michael Moore, vencedor da Palma de Ouro, com base numa pergunta fulminante:

”Mas você já viu o filme?”

Já, cara Ermelinda. Já o vi em Bowling For Columbine e Roger and Me, já o li em Stupid White Men e Dude Where’s My Country?. O que nunca vi, em Moore, foi cinema, tal como eu o entendo. Mas admito que o defeito seja meu.

Escreva sempre.


quinta-feira, maio 27, 2004

A GRAND DON'T COME FOR FREE
Fosga-se! É muita bom!



PS: o Ricardo tinha, uma vez mais, razão.

A NOSSA PETRONELLA WYATT
Quem está comigo na convicção de que a Charlotte tem potencial para se tornar na versão blogosferiana da Petronella Wyatt?



ALBERGUE ESPANHOL
(actualizado)
Daniel Oliveira, no seu Barnabé, publica, solícito, a lista dos «países mal frequentados», com base no relatório da Amnistia Internacional. Ou seja, a lista de países onde: há prisioneiros de consciência; foi aplicada a pena de morte; se verificam execuções extra-judiciais; se pratica a tortura e os maus tratos; há detenções sem julgamento ou acusação; se verificam “desaparecimentos”; grupos armados da oposição violam os Direitos Humanos.

A lista é útil, diz o Daniel, porque ”ajudará a muitos debates sobre o «bem» e o «mal», a «civilização» e os «barbáros».” (sic).

De facto, a lista é utilíssima, sobretudo para quem esfrega as mãos de contente ao verificar que países como a Áustria ou os EUA podem estar associados a outros como o Congo, o Irão ou a Libéria. É utilíssima a quem pratica, com especial afinco, o relativismo e a má-fé (não propriamente a mentira, mas a má-fé). São estas listas que sustentam as equivalências morais e retóricas entre países e regimes cujo único ponto de contacto é estarem situados no mesmo planeta.

Ao colocar no ar essa lista – não ponderada e não graduada – de países onde se violam os direitos humanos (sem estar em causa a existência desses atropelos), Daniel Oliveira acaba por fazer eco daqueles que, sem qualquer problema de consciência e fazendo gosto em passear a sua ignorância, conseguem desculpar ou amenizar os atropelos aos direitos humanos na Arábia Saudita ou no Irão, afirmando que também nos EUA se verificam. Ou em Portugal. Está lá a listinha para o confirmar. A própria expressão do Daniel (de que ”ajudará a muitos debates entre o «bem» e o «mal», a «civilização» e os «barbáros»”), aponta já nesse sentido: esta história dos «civililzados» e dos «bárbaros» é muito relativa, não é? E o «bem» e o «mal» tem muito que se lhe diga, não tem? Portanto, muito cuidadinho na hora de apontar o dedo ao regime x ou ao país y: a nossa casinha (leia-se: a nossa civilização e os países que denominamos de «civilizados») pode ter telhados de vidro.

Pois. O problema surge logo a seguir, quando decidimos comparar o tipo, quantidade, natureza e origem dos «atropelos». Daniel Oliveira bem pode dizer que, mais à frente, a AI explica tudo. É verdade que tenta explicar, mas explica-o de forma nebulosa e por vezes incerta. Por exemplo: comparando os relatórios de vários países acentuadamente diferentes, chegamos à conclusão que, para a AI, “death sentences carried out under federal and state law” e “extra-judicial death sentences” se podem equivaler. Não podem. Outro exemplo: aos EUA são dedicadas cinco páginas de denúncias e factos; ao Irão apenas três. No relatório sobre Israel, a AI refere o assassínio de 600 palestinianos por parte das forças israelitas, ao passo que, no que respeita aos ataques perpetrados pelos grupos armados palestinianos, a AI tem o cuidado de separar as mortes dos civis (130) das dos soldados israelitas (70). Fica-se com a ideia de que Israel atacou indiscriminadamente civis (podendo o relatório escudar-se no facto de não existir um exercito formal do lado dos palestinianos), enquanto que os grupos extremistas palestinianos terão tentado atingir militares (ou seja, um confronto marcial taco-a-taco), embora tenham ceifado a vida de 130 civis. Ou seja, uma total subversão da realidade.

A lista da AI deve ser lida com parcimónia e cautela. Acima de tudo, devem evitar-se comparações que, para além de absurdas, ajudam à impunidade de dezenas de regimes que espezinham grosseira, sistemática e deliberadamente os mais elementares direitos humanos. O facto de se verificarem excessos e abusos no denominado mundo «civilizado» (o mundo das democracias, dos Estados de Direito, da liberdade, dos direitos e garantias), não pode resultar na confusão entre «civilizados» e «bárbaros». Os estados párias e os regimes bárbaros não são uma ficção nem resultam de perspectivas ou interpretações. As suas acções não podem acabar alegremente «contextualizadas» ou «suavizadas», com base em leituras simplistas e distorcidas de um relatório que, já por si, aparenta falhas de rigor e de tom, juntando realidades completamente díspares no mesmo saco. E o contrário também é válido: é injusto e incorrecto fazer crer que países onde o «rule of law» está solidamente implantado; onde o escrutínio popular, a liberdade de expressão, os valores democráticos e o respeito pela dignidade humana são dados adquiridos; que esses países, dizia, possam ser comparados, quase que de igual para igual, com países e regiões onde o ser humano ainda é sinónimo de carne para canhão.

quarta-feira, maio 26, 2004

AS IF...

UM QUEVEDINHO A CAMINHO?
Lê-se no Bomba Inteligente:

"Sobre o casamento real: que venha o herdeiro lá para Fevereiro ou Março de 2005 o mais tardar! O casamento foi o que tinha de ser. A descendência é que interessa e o resto é conversa."

JAQUINZINHOS COM ARROZ DE TOMATE
Mais um aniversário. Dos nossos Jaquizinhos, o blogue com o nome mais português. Parabéns ao Jota Cê Dê, um tipo às direitas!

terça-feira, maio 25, 2004

Ó DIACHO!
Diz o Luis: ”Uma a duas vezes por semana, vou passar a dar conta de uma visita aos blogues que mais me visitam (impor-se-á sempre uma selecção, como é natural).” Obviamente, acrescento eu.

Fico com dúvidas. Como é que ele sabe quais são os blogues que mais o visitam? De que instrumentos ou fontes dispõe? Serão fontes infalíveis, fidedignas, cientificas? Será através do IP da máquina que acede ao Miniscente? E se um pobre diabo utilizar várias máquinas com vários IP’s ao longo do dia? E se, em vez do link no seu blogue particular, o visitante utilizar o arquivo dos “Favoritos”, que mantém no Internet Explorer, para aceder ao Miniscente? Estará irremediavelmente excluido do concurso? Como será?

Amigo Luis: conta-me tudo!
PORTUGAL POSITIVO: PEQUENA NOTA
O Bruno, que também aprecia o Vasco Pulido Valente, pergunta: “se o objectivo era aumentar a auto-estima, porque é que foram convidar o homem? É que VPV diz o que tem a dizer, e o que tem a dizer não contribui lá grande coisa para aumentos de auto-estima.”

Esta ideia do Portugal Positivo não dá azo a grandes deambulações. Para além de ingénua e inconsequente, não deixa de ser um tanto ou quanto pateta. Também não é novidade nenhuma: vem de longe esta tentativa de injectar no povão a dose de optimismo e de auto-estima de que, supostamente, está necessitado para “vencer os desafios” e “colocar Portugal no mundo”. E sintomático é o facto destes propósitos surgirem associados a momentos de crise ou instabilidade latente.

Como referiu VPV, não é de auto-estima que Portugal precisa. Nós não somos bons por acreditamos ou dizermos que o somos. A auto-estima advém de uma série de circunstâncias, não (re)nasce da boca de meia-dúzia de nacional-porreiristas, por muito boas e louváveis que sejam as suas intenções. Advém do bem estar material, da boa educação, do trabalho e da realização individual. Do que nós precisamos é de maior capacidade de trabalho e organização. A auto-estima virá por acréscimo. Como consequência.

Precisamos, também, de nos preocupar menos com o acessório e mais com o essencial. Precisamos de menos soberba e menos mediocridade. Precisamos de viajar e ver o mundo. E aprender com isso. Precisamos disso tudo. Mas não é a apregoá-lo que vamos ganhar o que quer que seja. Antropologicamente, a postura crónica e por vezes repugnante do optimista de serviço, nunca foi causa de desenvolvimento social e económico.
VOLTANDO A FALAR DE CINEMA
Este bom rapaz, a propósito de Gabriel Byrne, refere Miller’s Crossing (1990), o filme dos manos Coen, com fotografia de Barry Sonnenfeld.

Confesso: da extensa filmografia de Joel e Ethan Coen, Miller’s Crossing é o meu preferido. Sei que Barton Fink é um portento, mas não consigo retirar dele o mesmo prazer que retiro de “História de Gangsters” (o título português…). A cada regresso a Miller’s Crossing, sinto-me reconfortado com o cinema. Está lá tudo: excelente fotografia, trabalho de casting irrepreensível, desempenho vintage de fantásticos actores (para além de Byrne, lembro John Turturro, Jon Polito, Steve Buscemi, Márcia Gay Harden e, claro, o grande Albert Finney), diálogos fabulosos, uma história de amor e de olhares, o sentido da amizade e da lealdade, uma moral da história numa história de homens de carne e osso. Tudo filmado com tempo mas nunca abdicando do ritmo. É assim: não critiquem este filme perto de mim. Fica o aviso.


DUPLAMENTE GRATIFICANTE
Michael Moore ganhou a Palma de Ouro, em Cannes. O filme: Fahrenheit 9/11. A noticia é duplamente gratificante.

Por um lado, é a primeira vez que se premeia a originalidade. Reparem: o facto de Moore ter realizado um filme onde se critica violentamente a actual administração norte-americana, partindo do 11 de Setembro, é de loucos. Ninguém se lembraria de uma coisa destas. Numa altura em que Bush é um dos mais pacíficos e adorados lideres mundiais, o repto e a atitude de Moore são de uma coragem e originalidade a toda a prova. Tanto mais que, observando a filmografia de Moore, o tema é uma verdadeira pedrada no charco.

Por outro lado, Cannes confirma a tendência e esvanece as dúvidas: o cinema, ou a tal “ideia cinematográfica” de que falava Hitchcock, deixou de interessar. A um filme já não interessa ser filme. Tem de ser, sobretudo, outra coisa qualquer. Por exemplo, poderá e deverá ser um «manifesto». Ou um «veículo» da mais reles propaganda política. E se misturarmos ficção com mentira num suposto «documentário», tanto melhor.

É sempre bom saber estas coisas, não vá um gajo pôr-se a falar de Lang, Wilder, Preminger, Hitchcock ou Ray, correndo o risco de ser acusado de passadista, reaccionário ou simplesmente totó.
NOTÍCIAS DA MINHA TERRA
De Évora, um texto (a segunda parte) da autoria de um jovem promissor eborense, onde se abordam alguns temas da sua inquietação, sobre a mui nobre e sempre leal cidade de Évora. O texto denota alguma ingenuidade, própria de quem ainda pensa conseguir mudar o mundo. O estilo é um pouquinho acima do sofrível, o que já de si não é mau. Destaco a referência a Saddam Hussein: um ponto que me liga ao autor que nem uma lapa. Continuarei atento ao seu percurso, na denominada "imprensa regional". Apesar de tudo, são poucos os jovens deste calibre.

”A Cidade das Coisas Incompreensíveis – 2”
Por CARLOS DO CARMO CARAPINHA
“Eu não queria tocar no assunto. As declarações públicas não fazem parte do programa das festas. Os leitores saberão como é: Évora é uma cidade com muito de aldeia. Toda a gente se conhece, toda a gente se inveja, toda a gente se adora, toda a gente se odeia. Não há desporto mais difundido e popular na paróquia eborense que o da maledicência encapotada. O “diz agora que ninguém ouve.” O “faz agora que ninguém vê”. Não há eborense que se preze que não arrisque, perante o constatar de um virar de costas, um desabafo ou a confissão do que lhe vai na alma, omitidas acabrunhadamente no frente-a-frente. Daí que tenha hesitado em escrever sobre o assunto. Et pour cause. A questão envolve gente conhecida, amiga ou assim-assim. Gente com quem falo, com quem me dou, com quem pretendo manter a melhor das relações. Mas, como diria o outro (que eu não sei quem é), o homem ou é um homem, ou é um rato. E eu, de mamífero roedor, tenho muito pouco.

Queria falar-vos das aventuras e desventuras do comércio em Évora. Presumo que (eu que sou um presunçoso), por esta altura, alguns leitores estejam a soltar um “até que enfim!”, sonoro ou abafado. Não é de admirar. Como já tive oportunidade de referir, em matéria de «incompreensibilidade», Évora é um maná e, neste contexto, a atitude e comportamento dos comerciantes desta cidade (onde incluo patrões, gerentes, chefes de secção, empregados, trolhas, etc.), constitui a marca de água de qualquer análise que se produza sobre o nível de cosmopolitismo, urbanidade e sociabilidade das gentes de Évora. Questão de pormenor, dirão alguns. Certíssimo. Mas, como afirmou um dia Frank Lloyd Wright (ou terá sido Mies van der Rohe?), Deus está nos pormenores.

Primeiro dado extraordinário, capaz de causar vagas de epilepsia a quem por aqui passa ou aos nativos que, até à data, ainda não foram atingidos por um daqueles dardos de “anestesia crítica”: os horários de funcionamento dos estabelecimentos comerciais. Na cidade museu vivo - das artes e dos espectáculos, do turismo e dos roteiros, da fruição dos espaços públicos e das encantadoras ruelas - onde é suposto verificar-se uma frenética actividade de gentes e seus derivados, deparamo-nos com esta coisa extraordinária: a generalidade (arrisco 99,99%) dos estabelecimentos comerciais encerra às 19 h, fecha para almoço durante duas horas, recusa-se a abrir portas aos sábados à tarde e ao domingo concorre para uma bizarra sensação de emudecimento do centro histórico, a que podemos chamar de «desertificação». Falo, obviamente, do denominado «comércio tradicional». O tal que se queixa da «concorrência» das «grandes superfícies». Sei que este assunto, tocado da forma como está a ser tocado, poderá trazer-me dissabores, em particular no que toca a certas regalias de que gozo há anos (descontos, ofertas e mimos de vária ordem). Mas a compaixão que estes queixumes em mim provoca é igual à que senti quando vi um Saddam Hussein barbudo, com ar de avozinho da Heidi: nenhuma.

Presumo (eu, que ainda acredito no Pai Natal) que os pequenos e médios comerciantes «tradicionais» – que, ou porque o não sabem, ou porque o esqueceram, têm o privilégio de exercer a sua actividade na melhor e maior «superfície comercial» de Évora, mais conhecida por “Centro Histórico” – tenham já tomado medidas para inverter a situação (que uns afirmam «grave» e outros «preocupante»). Eu, pela minha parte, tenho feito um esforço titânico para notar essas alterações mas, já sabem como eu sou: um incorrigível distraído.

Dizem-me que há por aí uma Associação Comercial, constituída por gente de boa vontade, altruísta, trabalhadora, empenhada em inverter o comodismo, as meias-tintas, a falta de profissionalismo de alguns dos seus associados, e a incapacidade de outros em perceber que a vida mudou, ou seja, que os estilos de vida já não são os mesmos de há trinta anos atrás. Dizem-me, também, que há por aí hectolitros de «sangue novo», que percorre alegremente os vasos de jovens empresários e gerentes (herdeiros, ou não, de negócios de família), cuja mentalidade já não se compadece com enleios de natureza passadista, hesitações medrosas ou justificações esfarrapadas para evitar, por exemplo, a flexibilização de horários. Entretanto, no meio de tanto informação, falo com uma jovem herdeira de um império comercial eborense, que me alerta para a «complexidade» da questão: o «pessoal» (ou serão mais os proprietários?) tem direito ao descanso, ao lazer, à família e ao sono. E dou comigo a pensar: caramba, sou um distraído quadrado! Como é que me terá escapado o tratamento cruel que o patronato europeu (já aqui em Espanha, por exemplo) imprime ao seu pessoal, na figura da tortura do sono, da ruína do ambiente familiar e do esgotamento física e mental de milhões de pobres diabos? Tentei falar-lhe de coisas como «turnos», «part-time», «outsourcing», «trabalho temporário». Ainda tentei colocar em causa a razoabilidade de, em plena canícula, as lojas abrirem as portas às 15 h da tarde para as fechar às 19 h. Ainda tentei perceber porque razão se encerrarem as lojas ao sábado à tarde, quando a cidade tem gente a circular nas ruas (o resto estará em Badajoz, Lisboa ou no Fórum Montijo a afogar as mágoas da depressão económica). Ainda tentei, mas não consegui.

Era minha intenção falar destas e doutras idiossincrasias do comércio eborense. Por exemplo, dizer algumas coisas sobre o sector da restauração e derivados: restaurantes, cafés, pastelarias, snack-bars, etc. Falar dos horários de aldeia praticados, do encerramento colectivo ao domingo, dos maus tratos e roubos infligidos por certos «profissionais» do ramo a turistas e transeuntes de ocasião. Falar da falta de gosto na escolha do mobiliário das esplanadas, da falta de simpatia e cortesia evidenciadas em alguns estabelecimentos hoteleiros. Queria, mas agora não tenho tempo. Nem espaço. E, deixem-me ser absolutamente sincero: não me quero ‘queimar’ mais.”


segunda-feira, maio 24, 2004

WITTY


"I’m looking for books on obsessive-compulsive disorder, but
only if the dust jackets are green."

sábado, maio 22, 2004

ASSIM, SEM MAIS NEM MENOS: EU AMO ESTE HOMEM

"Se Há Alguma Coisa de Que Nós Precisamos É de Menos Auto-estima"
Por NUNO SÁ LOURENÇO, in Público 21 de Maio de 2004
"A campanha "Portugal Positivo", apresentada como "independente, movida pela sociedade civil" - apesar de ter na sua primeira conferência uma deputada do PSD, Graça Proença de Carvalho - não arrancou ontem da forma que os organizadores pretendiam. A razão para tal foi o historiador Vasco Pulido Valente, convidado para apresentar uma perspectiva histórica e sociológica sobre o tema. O colunista acabou por concluir, precisamente, no sentido oposto do pretendido: os portugueses têm auto-estima a mais. Isto porque apesar de se verem como atrasados, embora andem há 200 anos a tentar imitar outros países europeus, nunca se consideraram culpados do atraso português. Começou por ser dos jesuítas, passou para os absolutistas, chegou aos comunistas, sobrou para os fascistas e acabou nos políticos.

O historiador recuou duzentos anos na história portuguesa para lembrar que desde o século dezoito que o discurso de todos os governos era "modernizar Portugal", ou seja, "imitar" o que se via "lá fora". A primeira conclusão a que chegou foi que os objectivos da elite governativa não ajudavam à auto-estima. "Se uma pessoa define o seu programa político como imitação o que está a dizer é que a sua identidade é ser atrasado".

Acrescentou depois que o problema de Portugal era o "fracasso da imitação". Como as tentativas de modernização não funcionavam, surgia a "obsessão com o recomeço". Lembrou que cada governo e cada regime tentava sempre começar do zero. Daí as "Regenerações", o "Estado Novo" e o "homem novo português" de Cavaco Silva.

Foi então que chegou a vez de analisar a iniciativa para onde tinha sido convidado. Catalogou-a como "muito típica" e explicou porquê. A expressão "Portugal Positivo" era um "coloquialismo americano", ou seja, mais um modelo encontrado "lá fora".

Rematou a caracterização "típica" da iniciativa, comparando-a a outras posições "anti-regime", por se colocarem à margem dos canais normais: "Começam por rejeitar os instrumentos políticos quando se dizem provir da sociedade civil, afastam-se dos instrumentos económicos porque senão estavam a criar empresas e também não acreditam nos instrumentos sociais porque senão estavam num ONG qualquer. Não é assim que a gente vai lá."

A análise de Vasco Pulido Valente incomodou tanto que houve até quem, a partir da audiência, não conseguisse evitar um desabafo do tipo "o senhor, peço desculpa, mas está na conferência errada" [ah ah ah ah]. A mesma pessoa estava contra o historiador porque considerava que tinham existido "políticas positivas" no passado e "pessoas capazes de pensar em termos reformistas". Existia, portanto, "um Portugal positivo". Outro interveniente apontou como causas para o atraso português a"falta de pontualidade" e a "falta de rigor". Outra defendeu que não havia mal nenhum em "modernizar" se tal representasse "adaptar a Portugal o que funciona lá fora".

Vasco Pulido Valente respondeu a estas reacções acusando os intervenientes de mais uma atitude típica: a de atribuir a "culpa" a uma minoria e nunca ao "grosso da maioria dos portugueses". A culpa era sempre dos outros. Mais uma atitude "típica", com séculos de história. Lembrou que Portugal já tinha uma longa lista de bodes expiatórios. Começou por ser dos jesuítas, passou para os absolutistas, chegou aos comunistas, sobrou para os fascistas e acabou nos políticos. Foi por isso que em Portugal se instalou a sensação de "completa impunidade": "Portugal está cheio de nulidades nas mais altas instâncias em que ninguém toca". Na televisão todos eram tratados como "senhor professor ou excelso camarada", e nunca uma crítica era directamente apontada a um nome em concreto. Em suma, estimamo-nos demais. "Se há alguma coisa de que nós precisamos é de menos auto-estima", rematou.

Quando o debate se aproximava do fim, a assistência cedeu e perguntou então como é que se poderia ultrapassar o problema. O historiador deu a estocada final: "Como é que se ultrapassa a depressão? Com um novo ciclo de prosperidade. Se houver mais dinheiro as pessoas começam logo a sentir-se melhor, nem precisam deste tipo de conferências."

LINNNNNNNNNNNDÓ (estavam mesmo a pedi-las, não estavam?)

quinta-feira, maio 20, 2004

YOU DON'T KNOW WHAT LOVE IS
Canta Morrissey em You Are The Quarry:

You have never been in love
until you’ve seen the stars
reflect in the reservoirs
and you have never been in love
until you’ve seen the dawn rise
behind the Home For The Blind…


Neste particular, prefiro o que tem para nos dizer Don Raye e Gene DePaul, de preferência na versão sublime de June Tabor em Some Other Time:


You Don’t Know What Love Is
You don’t know what love is
Until you learned the meaning of the blues
Until you loved the love you had to lose
You don’t know what love is

You don’t know how lips hurt
Until you kissed and had to pay the cost
Until you’ve flipped your heart and you have lost
You don’t know what love is

Do you know how lost hearts fears
The thought of suffering
And the lips that taste of tears
Lose their taste for kissing

You don’t know how hearts burn
For love that cannot live yet never dies
Until you reached each dawn with sleepless nights
You don’t know what love is

How do you know how lost hearts fears
The thought of suffering
And how lips that taste of tears
Lose their taste for kissing

You don’t know what love is
Until you learned the meaning of the blues
Until you learned the love you had to lose
You don’t know what love is
É PRECISO DIZÊ-LO
(dedicado ao Blog "a título de exemplo" do Alex. Inclui saquinho para o enjoo, livrinho da Bobone para colmatar a falta de maneiras, extracto seco de raiz de valeriana para os nervos, o 'On Liberty' do Mill para reavivar o sentido da liberdade de expressão e do respeito para com a opinião dos outros)

No The Economist:

”Os defensores da América sustentam que os crimes perpetrados pelos seus soldados não são nada quando comparados com os de Saddam Hussein; que piores abusos continuam a ocorrer nos paises árabes e que daí nunca resulta qualquer tipo de escrutínio público ou clamores para que se assumam responsabilidades políticas. Tudo isto é irrefutável. O falhanço do Sr. Bush em reconhecer e perceber a sensação de humilhação que os árabes sentem por aquilo que eles consideram ser uma tentativa arrogante dos EUA de impor os seus valores ao resto do mundo, tem tornado muito mais difícil a tarefa de praticar o bem, que muitos americanos generosa e sinceramente ensejam.”

É preciso dizer isso e muito mais. Várias vezes. Existe uma diferença abissal entre o tipo e contexto das sevícias cometidas contra alguns prisioneiros iraquianos, por parte de elementos das forças da coligação, e as sevícias, atrocidades e crimes cometidos pelo regime e pelos homens de Saddam. Aparte a diferença de dimensão e de tipo, entre uns e outros (que nem vale a pena discutir), é bom lembrar alguns factos.

Os excessos cometidos pelos soldados serão alvo de processo judicial e estes serão punidos. É provável que rolem cabeças no seguimento do que aconteceu. O escrutínio publico a que estão sujeitos os governos, a ocidente, pode resultar no derrube desses mesmos governos e na demissão de altos funcionários do Estado. Que se saiba, nunca ninguém no regime de Saddam foi condenado por ter cometidos torturas ou sevícias nas prisões. A impunidade e a arbitrariedade constituíram a pedra de toque. Nunca ninguém no Iraque reclamou por responsabilidades políticas, na forma como o governo se demitiu da obrigação de zelar pelo bem estar das populações, a sul e a norte. Nunca ninguém foi chamado à pedra por causa da privação de alimentos e de medicamentos a que foram sujeitos xiitas e curdos, sob as barbas da boa gente da ONU. Nunca se constituíram comissões de inquérito para avaliar ou analisar erros de conduta, excessos de autoridade, condenações sumárias ou corrupção. O regime iraquiano – representante de um tipo de nacionalismo secular árabe, misturando ideias fascistas e socialistas - foi, nos tempos de Saddam, uma ditadura corrupta, brutal e perversa. Por detrás de uma aparente tolerância religiosa e da falta de um modelo de ascetismo islâmico (argumentos tantas vezes acenados a ocidente para amenizar o regime), o regime de Saddam praticava, por sistema, deliberada e conscientemente, a tortura, o assassínio, a limpeza e a segregação étnicas. Deixemo-nos de comparações absurdas ou paralelismos atrozes.

Dirão que recorro a banalidades, ao que «toda a gente» já sabe. De acordo. Mas é por vezes útil lembrar o que se tenta escamotear ou esquecer. Derrubou-se um regime que tinha de ser derrubado. De há um ano a esta parte, a tarefa que se perspectiva, no sentido de estabilizar o Iraque, é complexa, sinuosa e morosa. Mas tem de ser tentada. “The job has to be done”, disse Tony Blair. Doa a quem doer. Não há volta a dar. É certo, certíssimo!, que foram cometidos erros, alguns deles grosseiros. Sabe-se, hoje, que houve incompetência, aqui e ali, por parte da coligação. Sabe-se, hoje, que o general Franks foi ingénuo (chamemos-lhe apenas isso). Mas, como disse José Cutileiro, "a guerra foi há um ano e repisar no passado não vale a pena."

O resto do artigo:

"No minimo, a America tem agora de assegurar uma maior abertura, especialmente no que toca à administração dos assuntos de justiça no Iraque. Aos iraquianos devem ser conferidos os mesmo direitos, sob a lei, de que gozam os americanos. Instituições como a Human Rights Watch e a Amnistia Internacional devem poder inspeccionar as prisões. O julgamento, em tribunal marcial, daqueles que cometeram os abusos deve passar na televisão iraquiana [com uma comunicação social que, inadvertidamente ou não, tem feito o possível e o impossível para passar só o lado negro, há-de haver quem tente subverter esse julgamento e as respectivas condenações. Vai uma apostinha?].

Mas a América e os seus aliados devem mostrar força e demonstrar contrição. Acima de tudo, não devem perder o coração e o sangue frio. Apesar dos acontecimentos de Abu Ghraib terem passado a dificultar o trabalho, o Iraque tem de ser ganho. A transferência de poder para os iraquianos, marcada para o próximo mês, necessariamente parcial e gradual, deve prosseguir rapidamente. Devem ser enviadas mais tropas de modo a auxiliar convenientemente o novo e imberbe governo iraquiano, que começará em breve a dar os primeiros passos. As Nações Unidas deverão partilhar
[quererão partilhar? Servirão para alguma coisa?], com os iraquianos e os americanos, a gestão política do país no perigoso período transitório entre Junho e as eleições de Janeiro. A violência não está predestinada a piorar, apesar das adversidades do último mês. A receita certa para o desastre seria agora a retirada em pânico, deixando para trás o caos. Isso seria fatal para a posição e para a imagem da superpotência no mundo islâmico."
DO MEU MOLESKINE
Hayek. “ONE VIEW, in general rates rather low the place which reason plays in human affairs, which contends tha man has achieved what he has in spite of the fact that he is only partly guided by reason, and that his individual reason is very limited and imperfect.
ANOTHER VIEW, it is assumed that Reason is always fully and equally available to all humans and that everything which man achives is the direct result of, and therefore subject to, the control of individual reason.
The FIRST VIEW is a product of the limitations of the individual mind which induces an attitude of humility toward the impersonal and anonymous social processes by which individuals help to create things greater than they know.
The SECOND VIEW is the product of an exaggerated belief in the powers of individual reason and of a consequent contempt for anything which has not been consciously designed by it or is not fully intelligible to it.
The antirationalistic approach, which regards man not as a highly rational and intelligent but as a very irrational and fallible being, whose individual errors are corrected in the course of a social process, and which aims at amking the best of a very imperfect material, is probably the most characteristic feature of English INDIVIDUALISM.”

quarta-feira, maio 19, 2004

PORTUGAL, MUNDO 2004?
“As ruas e estradas transformaram-se em pistas de corrida (onde esta ainda é possível) e em rampas da morte: mais de cinco milhões de cadáveres desde o começo do século, e umas dez vezes esse numero de sinistrados outros. Nos Estados Unidos o automóvel causa 50.000 mortos por ano, em França, o equivalente a 100.000 naquele país, na Grã-Bretanha aproximadamente o mesmo. O grau de tecnocultura não parece afectar o fenómeno: a Alemanha, a Jugoslávia e Portugal estavam, há poucos anos, à cabeça do rol de acidentes. Com uns 300.000 carros para nove milhões de habitantes numa extensão de 93.000 km quadrados, e a rede de estradas que sabemos, nós matámos em 1967 cerca de 1900 pessoas, ou seja, proporcionalmente muito mais que os EUA, com quase 100 milhões de carros para 203 milhões de habitantes na sua imensidão territorial, e uma superfície de rodagem equivalente a quase toda a Europa Ocidental.”

José Rodrigues Miguéis, in Diário de Lisboa 7 Abril 1970
NO LINCAR É QUE ESTÁ O GANHO
Sem Emenda de João Sousa, claro. E também Mr. Vertigo, por sinal um nome que diz muito ao MacGuffin...

terça-feira, maio 18, 2004

AI JOSÉ, O QUE PARA AÍ ANDAS A DIZER! (foi comprado, foi comprado!!)

Promover a Guerra para Salvar Pessoas
Por JOSÉ RAMOS HORTA
”O novo governo socialista em Espanha cedeu às ameaças terroristas e retirou as suas tropas do Iraque. O mesmo aconteceu com as Honduras e a República Dominicana e é muito provável que não sejam os últimos. Com a perspectiva de que segurança vai piorar, temos de aceitar que mais alguns países - que não valorizam o que o Mundo tem a ganhar com a construção de um Iraque livre - irão retirar.

Seja o que for que os governos em retirada engendrem, cada vez que um país abandona o Iraque é uma vitória para a Al Qaeda e outros extremistas. Eles tiram a conclusão de que a coligação é fraca e que quantos mais ataques terroristas realizarem, mais países retirarão.

Como Prémio Nobel da Paz, eu, como tantas outras pessoas, abomino o uso da força. Mas quando se trata de salvar inocentes da tirania ou do genocídio, nunca questionei a sua justificação. Foi por isso que apoiei a invasão do Camboja pelo Vietname, em 1978, que acabou com o regime brutal do Pol Pot, e a invasão do Uganda pela Tanzânia no ano seguinte para derrubar a ditadura de Idi Amin. Em ambos os casos, estes países agiram sem a aprovação internacional ou das Nações Unidas - e nos dois casos agiram bem.

Talvez a França se tenha esquecido como também ela derrubou um dos piores violadores dos direitos humanos do Mundo sem esperar pelo aval da ONU e também eu aplaudi, no início dos anos 80, quando os seus pára-quedistas aterraram na capital do Império Centro Africano e destronaram o "imperador" Bokassa, conhecido pelo seu canibalismo.

Quase duas décadas depois, aplaudi mais uma vez quando a NATO interveio - sem um mandato da ONU - para acabar com a limpeza étnica no Kosovo e libertar da tirania sérvia uma comunidade muçulmana europeia oprimida. E regozijei uma vez mais em 2001 quando as forças lideradas pelos Estados Unidos derrubaram os talibã libertando o Afeganistão de um regime bárbaro.

Porque será que ainda há quem pense que o Iraque é diferente? Passado apenas um ano da queda do antigo regime, parece terem-se esquecido como morreram centenas de milhares de pessoas durante o poder tirânico de Saddam Hussein, cuja imagem de marca eram o terror, as execuções sumárias a tortura e a violação. Também se esqueceram como os curdos e os países vizinhos do Iraque viviam aterrorizados o dia a dia enquanto Saddam esteve no poder.
A queda de Saddam é, em contrapartida, uma oportunidade para construir um novo Iraque pacífico, tolerante e próspero. É isso que os extremistas de todo o mundo muçulmano tentam impedir. Eles sabem que um Iraque livre minaria fatalmente o seu objectivo de purgar de toda a influência ocidental o mundo muçulmano, derrubar os regimes seculares da região e impor regimes semelhantes ao que existia no Afeganistão sob os talibã. E sabem que se forçarem os países ocidentais a retirar do Iraque isso será um grande passo para atingir esse objectivo, pondo em perigo a existência dos regimes moderados - do Médio Oriente ao Magreb e Sul e Sudeste Asiáticos. Se esses regimes caíssem, centenas de milhares de muçulmanos que hoje denunciam os "males" do imperialismo económico e cultural ocidental afluiriam à Europa, Estados Unidos, Canadá e Austrália em busca de refúgio.

Tal como no Irão, os muçulmanos poderão ter de passar pela experiência de serem governados pelos ayatollahs antes de se aperceberem que tolos foram em não se terem oposto a esses zelotas religiosos. Felizmente, este é um cenário remoto. Se olharmos para além da cobertura televisiva da carnificina no Iraque, ainda há esperança de se vir a concretizar a grande visão de Washington em transformar esta nação. Sondagens de opinião fiáveis mostram que um grande número de iraquianos estão melhor agora do que há um ano. Há liberdade de imprensa, com inúmeros novos jornais e rádios a surgirem no país. Começam a aparecer inúmeras organizações não governamentais que abrangem todas as áreas desde os direitos humanos à defesa da mulher. Em resumo: o Iraque está a experimentar pela primeira vez a liberdade na sua longa e sangrenta história. E também é isso que temem os fanáticos religiosos.

A maioria xiita tem agido com grande reserva perante as constantes provocações de elementos extremistas da minoria sunita, dos fiéis de Saddam e da Al Qaeda. Seria sensato que as autoridades da coligação procurassem dar mais responsabilidades os clérigos xiitas e assegurassem que as suas preocupações legítimas e históricas fossem atendidas. Apesar de um regime dominado pelos xiitas poder não coincidir com o objectivo de uma democracia secular de tipo Ocidental, é bastante preferível a correr o risco do regresso ao poder dos seguidores de Saddam ou dos extremistas sunitas.

Os Estados Unidos devem reiterar que a construção da democracia no Iraque não marginalizará o papel do Islão. A democracia e o Islão coexistem harmoniosamente em países como a Indonésia, a Malásia e o Bangladesh, enquanto Israel é um exemplo de um Estado com uma só religião. Este poderia também ser o caso do Iraque, desde que seja liderado por clérigos sensatos e compassivos capazes de defenderem a liberdade, tolerância, justiça e boa governação. O candidato mais provável para este cargo é Ali Sistani, o clérigo mais respeitado do país.

Os Estados Unidos também necessitam de actuar para reparar os danos causados pelas revelações dos maus-tratos a prisioneiros iraquianos. Não nos podemos esquecer que as pessoas envolvidas constituem uma ínfima parte dos militares deslocados no Iraque, não obstante o facto de se ter permitido continuar os abusos e crueldade mesmo depois da Cruz Vermelha - que habitualmente não se manifesta - ter feito soar o alarme. Só uma investigação com a respectiva penalização dos responsáveis poderá restaurar a posição da América no Iraque.

Está na altura de Washington mostrar a sua capacidade de liderança assegurando que as Nações Unidas terão o papel central na construção do novo Iraque. Como timorense, estou perfeitamente ciente das limitações desta instituição internacional e das suas fraquezas, uma vez que assisti à sua impotência face à invasão do meu país pela Indonésia. A ONU é a soma de todas as nossas qualidades e fraquezas, dos nossos interesses nacionais egoístas e vaidades pessoais. Por causa de todas as suas fraquezas, é a única organização internacional de que todos sentimos fazer parte e, por isso, deveria ser enaltecida e não enfraquecida. Enquanto os Estados Unidos continuarem a ter um papel crucial na segurança do Iraque, uma força de manutenção da paz liderada pelas Nações Unidas deveria permitir que muitas nações árabes e muçulmanas se lhe juntassem e ajudassem a isolar os extremistas.

Em quase 30 anos de vida política activa, apoiei o uso da força em várias ocasiões e não esqueço que as consequências de não fazer nada perante o mal foram graficamente demonstradas quando o mundo se pôs à parte e não impediu o genocídio do Ruanda. Nessa altura, onde estavam os manifestantes pela paz? Estavam tão silenciosos como estão hoje face aos bárbaros comportamentos dos fanáticos religiosos.

Há quem me acuse de ser mais um fomentador da guerra do que um Nobel da Paz, mas não tenho medo de confrontar os meus críticos. É sempre mais fácil dizer não à guerra, mas ser politicamente correcto significa deixar os inocentes a sofrer, desde Phnom Penh a Bagdad. E é isso que quem foge do Iraque corre o risco de estar a fazer.”


in Público 17 de Maio de 2004
DIZ-ME O QUE ESCREVES NO TEU MOLESKINE, DIR-TE-EI QUEM ÉS
Do meu Moleskine:

OAKESHOTT: “Reflection may bring to light an appropriate gratefulness for what is available, and consequently the acknowledgment of a gift or an inheritance form the past: but there is no mere idolizing of what is past and gone. What is esteemed is the present: and it is esteemed not on account of its connections with a remote antiquity, nor because it is recognized to be more admirable than any possible alternative, but on account of its familiarity: not, Verweile doch, du bist so schön, but, Stay with me because I am attached to you. If the present is arid, offering little or nothing to be used or enjoyed, then this inclination will be weak or absent; if the present is remarkably unsettled, it will display itself in a search for a firmer foothold and consequently in a recourse to and an exploration of the past; but it asserts itself characteristically when there is much to be enjoyed, and it will be strongest when this is combined with evident risk of loss.(…)
To be conservative, then, is to prefer the familiar to the unknown, to prefer the tried to the untried, fact to mystery, the actual to the possible, the limited to the unbounded, the near to the distant, the sufficient to the superabundant, the convenient to the perfect, present laughter to utopian bliss. Familiar relationships and loyalties will be preferred to the allure of more profitable attachments; to acquire and to enlarge will be less important than to keep, to cultivate and to enjoy; the grief of loss will be more acute than the excitement of novelty or promise.”



BENVINDO?
Bem-vindo! Irra!
BLAME AMERICA FIRST!
“Um carro armadilhado explodiu esta segunda-feira de manhã junto a uma das entradas da chamada “Zona Verde” em Bagdad, onde está instalado o quartel-general das forças da Autoridade Provisória da Coligação, provocando pelo menos nove mortos, entre os quais o dirigente xiita que detinha a presidência rotativa do Conselho Governativo iraquiano”, in Correio da Manhã.

Mais uma vez, a culpa será dos EUA. As razões arranjar-se-ão entre o “descuidaram a protecção do homem no local” e o “se não tivessem ido para lá, nada disto estaria a acontecer”. Algures por aí.
É O MAIS CERTO
Escreve o JMF:

1. "O que o MacGuffin escreveu a partir de Billy Bragg é uma palermice pegada."

2. "Mas, é claro, isto digo eu, que sou preconceituoso."

É bem capaz de ter razão.
LOST DOVES
Acrescentar à lista dos “grandes discos pop que desgraçadamente vão acabar esquecidos”:



CLEARASIL HARDCORE (P/ MAIORES DE DEZOITO)
“Veio depois a adolescência – metade da minha vida desperta trancado na casa de banho, disparando os meus cartuchos para dentro da sanita, ou para cima das roupas do cesto da roupa suja, ou splat, contra o espelho do armário dos medicamentos, diante do qual me postara, arriando as calças, para ver o aspecto da coisa a jorrar cá para fora. Ou então estou curvado sobre o meu punho em movimento, olhos cerrados mas boca bem aberta, para receber na língua e nos dentes o molho viscoso de soro de leite e Clorox – embora não fosse raro, na minha cegueira e no meu êxtase, apanhar com tudo na poupa, como um jorro de Wildroot Cream Oil. E assim vivia num mundo de lenços de pano ou de papel amarrotados, de pijamas manchados, com o meu pénis vermelho e inchado, no perpétuo pavor de que a minha abjecção fosse descoberta por alguém que me apanhasse no frenesim de alijar a minha carga. Mas mesmo assim era absolutamente incapaz de manter por muito tempo as mãos longe do pirilau quando este começava a trepar-me pela barriga acima. Em plena aula levantava o braço, pedindo para sair, precipitava-me pelo corredor até à casa de banho, e com dez ou quinze carícias brutais vinha-me de pé para dentro de um urinol. Na matinée de sábado deixava os meus amigos para ir à máquina dos chocolates – e acabava num longínquo lugar do balcão, derramando a minha semente na embalagem vazia de um chocolate Mounds. Numa excursão do nosso clube familiar, descarocei certa vez uma maçã, vi para meu grande espanto (e com a ajuda da minha obsessão) com que é que a maçã se parecia e corri para o meio do bosque para me lançar sobre o orifício do fruto, imaginando que o buraco fresco e pegajoso estava na realidade entre as pernas desse ser mítico que me tratava sempre por Matulão quando pedia aquilo que nenhuma outra rapariga, desde que o mundo é mundo, alguma vez tivera. «Anda, mete-mo, Matulão», exclamava a maçã descaroçada que eu fodi nesse piquenique. «Matulão, Matulão, oh, dá-me tudo o que tens», suplicava a garrafa de leite vazia que eu escondera na nossa arrecadação da cave, para a arrebatar depois das aulas com a minha verga besuntada de vaselina. «Anda, Matulão, vem-te», guinchava o naco de fígado desvairado que na minha loucura comprei certa tarde no talho e, por incrível que pareça, violei atrás de um tapume a caminho de uma lição de bar mitzvah.
Foi no fim do meu primeiro ano de liceu – e primeiro ano de masturbação – que descobri na face inferior do meu pénis, mesmo no limite entre a haste e a cabeça, uma pequena mancha descorada que posteriormente veio a ser diagnosticada como um sinal. Cancro. Tinha arranjado um cancro. Todo aquele puxar e espremer a minha própria carne, toda aquela fricção, tinham-me provocado uma doença incurável. E ainda nem fizera catorze anos! À noite, na cama, corriam-me lágrimas dos olhos. «Não!», soluçava. «Não quero morrer! Por favor – não!» Mas depois, e já que de uma maneira ou de outra seria em breve um cadáver, voltava às lides do costume e vinha-me dentro da minha meia. Ganhara o hábito de levar comigo para a cama à noite as meias sujas para poder usar uma como receptáculo antes de adormecer, e a outra ao acordar.
Se ao menos eu conseguisse fazer aquilo só uma vez por dia, ou fixar um limite nas duas ou mesmo três vezes! Mas, com a perspectiva da morte iminente, comecei pelo contrário a atingir novos recordes. Antes das refeições. Depois das refeições. Durante as refeições. Levantando-me de um salto da mesa do jantar, agarro-me tragicamente à barriga - «diarreia!», exclamo, «estou com um ataque de diarreia!» - e uma vez atrás da porta trancada da casa de banho, enfio na cabeça umas calcinhas que roubei da cómoda da minha irmã e que trago no bolso, embrulhadas num lenço. Tão galvanizante é o efeito das calcinhas de algodão junta à minha boca – tão galvanizante é a palavra «calcinhas» - que a trajectória da minha ejaculação atinge novas e assombrosas alturas: saindo do meu pirilau com um foguete, sobe direita à lâmpada suspensa do tecto, onde, para meu espanto e horror, acerta e fica colada. Desvairado, no primeiro instante escondo a cabeça, à espera de uma explosão de vidro, de uma irrupção de chamas – a catástrofe, como vê, nunca anda muito longe do meu espírito. Depois, o mais silenciosamente que consigo, subo para cima do radiador e retiro o muco fervilhante com um pedaço de papel higiénico. Procedo a uma inspecção escrupulosa da cortina do chuveiro, da banheira, do chão, das quatro escovas de dentes – Deus nos livre! – e no preciso instante em que me preparo para abrir a porta, julgando ter feito desaparecer todas as pistas, o meu coração dá um pulo ao ver o que escorre como ranho da biqueira do meu sapato. Sou o Raskolnikov da punheta – há indícios viscosos por toda a parte! Terei também alguma coisa nos punhos da camisa? No cabelo? na orelha? Faço a mim próprio estas perguntas enquanto volto para o meu lugar à mesa da cozinha, carrancudo e irritado, e respondo ao meu pai num resmungo indignado quando ele abre a boca cheia de gelatina vermelha e me diz: «Não percebo para que é que hás-de trancar a porta. Onde é que estamos, em casa ou numa estação de comboios?» »...o direito à privacidade... um ser humano... cá em casa nunca», murmuro eu, e a seguir ponho de lado a minha sobremesa e grito: «Não me sinto bem - porque é que não me deixam em paz?».

Philip Roth, in O Complexo de Portnoy

segunda-feira, maio 17, 2004

FAIRPLAY
Parabéns ao Almocreve.

(espero não me arrepender disto)
É A VIDA
Por esta altura, já li mais e melhor Borges do que este rapaz.
O FACTOR ‘NAN’
Não há critico musical que se preze que não adira, de quando em vez ou regularmente, ao famoso argumento NAN: Não acrescenta nada. A criatura x lança um novo disco, o grupo y edita o mais recente opúsculo? Fatal como o destino: há-de aparecer um sábio a esgrimir o famoso argumento NAN para desvalorizar ou denegrir a obra. Observe-se o que se passou com o mais recente disco dos Magnetic Fields, de seu nome I: à excepção de Jorge Mourinha, no Blitz, a generalidade dos críticos apoiaram-se no famoso factor NAN. A pergunta que se impõe, colocou-a Mourinha: “«Mais do mesmo»? Quando o «mesmo» é apenas alguma da melhor pop clássica feita nos EUA nos últimos 50 anos, porque é que isso há-de ser um problema?”

Mas, pelos vistos, constitui um problema. Vivemos na mais cretina das épocas, onde até o «mais do mesmo do melhor» passou a ser criticável ou descartável. A ultra-exigência, a arrogância e a ingratidão passaram a ser a pedra de toque. Reclama-se hoje pela novidadezinha, pela «evolução», por «novas atitudes» e «novas abordagens». Em suma, pela bendita «inovação». Falhada esta, está tudo estragado. Ai o fabuloso Stephen Merritt resolveu reunir um conjunto de canções que “nada acrescentam” às sessenta e nove anteriores? Merda! Os Strokes fizeram de Room On Fire um «mero» prolongamento de Is This It? Que grande chatice!

Das duas uma: ou estes gajos nada percebem de música, ou terão de começar a provar que a pesca não é, para já, a sua maior vocação. Podem começar por colocar de lado os argumentos da treta e o que não interessa nem ao menino Jesus. A malta agradece.


E SE?
Sempre gostei de Billy Bragg. Não do Billy Bragg activista político, mas do Billy Bragg músico pop. Ontem, voltei a ouvir “Talking With The Taxman About Poetry”, um dos seus melhores álbuns. Estão lá, pelo menos, duas das melhores canções pop alguma vez escritas: “Levi Stubb’s Tears” e “Ideology”.
Enquanto o ouvia, pus-me a pensar como sempre embirrei com aquele título. E se o cobrador de impostos, ou fiscal das finanças, gosta de poesia? E se, nas suas horas vagas, o fiscal consome Yeats, Whitman ou Keats? E se o dito fiscal sabe falar de poesia como Bragg nunca soube falar?

Tenho uma teoria para a escolha daquele título. Bragg foi toda a sua vida um declarado comunista e utopista. O título escolhido espelha bem a atitude da esquerda (passo a generalizar, para efeitos retóricos). Toda a presunção e todo o preconceito da esquerda, relativamente aos «outros» (aos não eleitos do clube), estão presentes naquele título. Eis o seu modus operandi: 1) por um lado, tomar o povo como uma massa uniforme e homogénea de sensibilidades, visões, objectivos e desejos, ou seja, uma massa que implora pelo patrocínio e protecção da esquerda, e que estará sempre receptiva a aceitar, abnegadamente, as soluções que alguns sábios e visionários - guardiões da boa vontade, da justiça, da seriedade e da competência – preconizam para si (isto, é claro, se cada um, de per si, estiver bom da cabeça); 2) por outro lado, ainda que paradoxalmente, encetar um trabalho de rotulagem e de etiquetagem com base em critérios supostamente infalíveis, forjados na montanha do preconceito, do estereotipo e da caricatura - precisamente a uma latitude que lhe permite “ver o filme todo”. Juntem a isto uma completa e pueril incapacidade para lidar com o imponderável, o irracional e as liberdades individuais, et voilà: eis a esquerda em todo o seu “esplendor” (leia-se “pior”). O fiscal das finanças? O empresário? O capitalista? O banqueiro? O contabilista? O broker? Coitados, que saberão eles das «coisas do espírito»? Que sensibilidade e capacidade terão para compreender Bacon, Borges, Ibsen ou “Morangos Silvestres” – coisas, aliás, como toda a gente sabe, de importância brutal para a sobrevivência e felicidade humanas? Criaturas insensíveis, egoístas, ignorantes, materialistas, ao fim ao cabo detritos da sociedade do consumo e do ímpio sistema capitalista. Enfim... the usual stuff.

“Talking With The Taxman About Poetry”? So fucking what, Mr Bragg?


BORGES
Ando a ler A Odisseia. Nos cinemas, estreou Tróia (ainda não vi). Lembrei-me do grande Borges:

A Odisseia pode ler-se de duas maneiras. Suponho que o homem (ou mulher como pensava Samuel Butler) que o escreveu sentia haver na realidade duas histórias: o regresso de Ulisses e os prodígios e perigos do mar. Se tomarmos A Odisseia no primeiro sentido, temos a ideia do regresso à pátria, a ideia de estarmos exilados, a ideia de que o nosso verdadeiro lar fica no passado ou no céu, ou num sítio qualquer, de que nunca estamos em casa. Mas claro que a navegação e o regresso tinham de ganhar interesse. Por isso foram elaborados os muito prodígios. E quando chegamos às Mil e Uma Noites, descobrimos que a versão árabe de A Odisseia, as Sete Viagens de Sindbad, o Marinheiro, não é a história de um regresso a casa mas uma história de aventuras; e creio que a lemos assim. Quando lemos A Odisseia, penso que o que sentimos é o encanto, a magia do mar; o que sentimos é o que encontramos no navegador. Por exemplo, não tem jeito para a harpa, nem para oferecer anéis, nem para deleitar uma mulher, nem para a grandeza do mundo. Pensa apenas na longa esteira de sal do mar. Portanto, temos duas histórias numa só: podemos lê-lo como regresso a casa e podemos lê-lo como um conto de aventuras – talvez o mais belo jamais escrito ou cantado.”

“Ora, no poema épico – e podemos pensar nos Evangelhos como uma espécie de épico divino – estava tudo. Mas a poesia, como disse, dividiu-se; ou melhor, por um lado, temos o poema lírico e a elegia, por outro temos uma história contada – temos o romance. Quase somos tentados a pensar o romance como degenerescência do épico, a despeito de escritores como Joseph Conrad ou Herman Melville. Porque o romance fica aquém da dignidade do poema épico.”

“Claro que hoje as pessoas inventam tantos enredos que nos cegam. Mas talvez este ataque de inventividade feneça e talvez descubramos então que esses muito enredos não passam de aparências de uns poucos padrões essenciais.”

“De certo modo, as pessoas têm fome e sede de épicos. Sinto que o épico é uma das coisas de que o homem precisa. Entre todos os lugares (isto pode surgir como uma espécie de anticlímax, mas é um facto), Hollywood tem sido aquele que fornece épicos ao mundo. Em todo o globo, quando as pessoas vêem um Western – que contemple a mitologia de um cavaleiro, mais o deserto, a justiça, o xerife, os tiros, etc. – penso que tiram dele o sentimento do épico, saibam-no ou não. Afinal, saber não é importante.
Ora, não quero fazer profecias, porque essas coisas são perigosas (embora, com o tempo, possam tornar-se verdadeiras), mas acho que, se se pudesse de novo juntar contar um conto e cantar um poema, poderia acontecer algo de muito importante. Talvez isso venha da América . uma vez que, como todos sabem, a América tem o sentido ético de uma coisa ser certa ou errada. Pode ser sentido noutros países, mas não me parece que se encontre sob formas tão óbvias como o encontro aqui. Se isso se realizasse, se pudéssemos voltar ao épico, então ter-se-ia conseguido algo de muito grande.”

“Pensem nos principais romances do nosso tempo… no Ulisses de Joyce, digamos. Dizem-nos milhares de coisas sobre os dois personagens, no entanto, não os conhecemos. Temos um conhecimento melhor dos personagens de Dante ou Shakespeare, que nos chegam – que vivem e morrem – numas quantas frases. Não conhecemos milhares de circunstâncias relativas a eles, mas conhecemo-los intimamente. Isso, como é óbvio, é muitíssimo mais importante.
Penso que o romance está a acabar. Penso que todas essas experiências muito ousadas e interessantes como o romance – por exemplo, a ideia de deslocar o tempo, a ideia de a história ser contada por diferentes personagens – tudo isso está a levar ao momento em que sentiremos que o romance já não está entre nós.
Mas um conto, uma história têm algo que permanecerá. Não me parece que alguma vez os homens se cansem de contar e ouvir histórias. E se, a par do prazer do prazer de nos contarem uma história obtivermos o prazer adicional da dignidade do poema, algo de grande terá acontecido. Talvez eu seja antiquado, um homem do século XIX, mas sinto-me optimista, tenho esperança; e como o futuro encerra muitas coisas – como o futuro, espero, encerra todas as coisas – acho que o épico há-de regressar. Acredito que o poeta voltará a ser um fazedor, ou seja, contará uma história e também a cantará. E não pensaremos estas duas coisas como diferentes, tal como não as consideramos diferentes em Homero ou Virgílio.”


in Contar o Conto (uma das seis palestras na Harvard University)



sábado, maio 15, 2004

AFORISMO
"Os socialistas são contra o lucro. Os capitalistas são apenas contra os prejuízos".

Millôr Fernandes

quinta-feira, maio 13, 2004

A INDIFERENÇA DÓI
É verdade, querida Batukada: já ninguém me liga. Obrigado pela mezinha. Já comprei os limões, na mercearia do Sr. Custódio. O mel é da Serra de Portel, um valor seguro. A água, do Luso, tão natural como a minha sede. Vou agora preparar o elixir. Ainda a tempo de acompanhar o terceiro e último Zithromax. Beijos.
ANIVERSÁRIO
Celebraram o primeiro aniversário. Muitos parabéns. No Quinto dos Impérios!
JEFF, IF YOU COULD ONLY SEE YOURSELF? (revisto e corrigido)
Jeff: What's the matter? Lisa: Sitting around looking out of the window to kill time is one thing but doing it the way you are with binoculars and, and wild opinions about every little thing you see is, is diseased!

Há coisa de três semanas, este biltre teve o atrevimento de tocar no assunto, com a perguntinha da praxe: “De todos os filmes de Hitchcock, qual é para ti o melhor?”. A questão é assaz ofensiva, só desculpável porque Borges é Borges, o resto é paisagem. Disse-lhe que teria, pelo menos, de escolher três ou quatro filmes. Arrisquei uma resposta: ”Certamente Janela Indiscreta, Vertigo e Mentira. E, já agora, A Corda, Difamação e Intriga Internacional. E, claro, Marnie, Um Barco e Nove Destinos, Ladrão de Casaca...” Parei por ali. Já deveria saber que não é humanamente possível escolher «o» filme de Hitchcock. Qualquer tentativa nesse sentido resulta num exercício penoso e num esforço inglório.

Imobilizado que estou em casa, por ordem do médico, vai para três dias, lembrei-me de um outro imobilizado. Um tal de L. B. Jefferies. Fatalmente, revi ontem o filme (é seguramente o mais visto e revisto filme da minha vida). Hoje, fazendo jus ao meu nickname, decidi postar umas breves notas sobre Rear Window.



Janela Indiscreta (título feliz para um país que se habitou à infelicidade de inventar os títulos mais improváveis para os filmes made abroad) foi realizado em 1954, no mesmo ano de Chamada Para a Morte. Eis a ficha técnica:

Realização: Alfred Hitchcock
Produtora: Paramount, USA
Argumento: John Michael Hayes, baseado numa novela de Cornell Woolrich
Fotografia: Robert Burks
Interpretes: James Stewart, Grace Kelly, Wendell Corey, Thelma Ritter, Raymond Burr, Judith Evelyn, Ross Bagdasarian, Georgine Darse, Jesslyn Fax, Rand Harper, Irene Winston, entre outros.

O filme conta-nos a história de L. B. Jefferies (James Stewart), um fotografo que se encontra «preso» num quarto de um apartamento nova-iorquino, de perna engessada, resultado de um acidente de trabalho (Jefferies fazia a cobertura de uma corrida de automóveis quando um carro se despistou na sua direcção - momento, aliás, registado pela sua objectiva). Nessa sua condição de inválido, Jefferies recebe a visita diária de duas personagens: Stella (a fabulosa Thelma Ritter), enfermeira da seguradora que assegura a massagem rotineira e a injecção diária de «common sense» (os diálogos são irresistíveis); Lisa Carol Fremont (Grace Kelly), a improvável namorada de Jefferies (e futura noiva), menina da alta sociedade nova-iorquina, colaboradora da Harper’s Bazaar, muito ciosa da sua imagem e postura, sempre a par do último gadget da Tiffany & Co. ou do mais recente grito da moda, directamente de Paris para a sua Park Avenue. Contudo, Lisa está longe de ser a típica fashion victim, patetinha e frívola: Lisa é uma mulher encantadora, educada e sofisticada, senhora de um excelente sentido de humor, que sonha, um dia, casar com Jefferies. Apesar de nitidamente apaixonado (quem não ficaria?) Jefferies mantém algumas reservas relativamente ao casamento, face à notória diferença de estilos de vida. Jefferies é o típico fotografo aventureiro, sempre em busca do furo jornalístico, da fotografia impossível, seja ela tirada em Long Island, Calcutá ou Caxemira. Lisa é o oposto. Um dos temas abordados em Janela Indiscreta é, precisamente, a questão do compromisso vs. incompatibilidades.

Jefferies encontra-se numa situação que é um convite ao tédio, não colmatado pelas esporádicas visitas da enfermeira Stella e da encantadora Miss Lisa. Agarra-se ao único foco de distracção disponível naquele cubículo: o cenário exterior de um pátio traseiro, proporcionado por uma abertura na parede vulgarmente conhecida como «janela». «A» janela. Por via de uma quase «inevitabilidade», Jefferies acaba por vestir o fato de peeping-tom, entregando-se a um exercício de voyeurismo que, de inicio, tem mais de lúdico do que de patológico. A janela de Jefferies passa a ser, também, a nossa janela, a janela (física e metafórica) do espectador, como voyeur em segunda-mão.

Pode sempre dizer-se que Janela Indiscreta é um filme sobre o voyeurismo. Mas de que tipo? Jefferies é, sem margem para dúvidas, um voyeur, mas um voyeur de circunstância, forçado, gozando da atenuante de se encontrar imobilizado e confinado a um espaço exíguo, rodeado por quatro paredes e, lá está, uma janela. O seu voyeurismo não advém de uma obsessão doentia (de índole sexual ou não), mas resulta «apenas» do «natural» índice de curiosidade sobre o alheio, intrínseco a qualquer ser humano. No caso de Jefferies, pode até dizer-se que se trata de defeito profissional (a profissão de fotógrafo obriga-o a ser curioso e observador). “Eu aposto consigo que nove em cada dez pessoas que vejam uma mulher a despir-se a caminho da cama, ou até mesmo um homem arrumando o seu quarto, vão ficar especadas a observar; ninguém dirá, desviando o olhar, 'aquilo não me diz respeito'. Poderiam descer as cortinas mas raramente o fazem; ficam parados, observando”, afirmou Hitchcock em entrevista a Truffaut. A eventual crítica de Hitchcock ao voyeurismo é, desta forma, mitigada pelo constatar e pela aceitação tácita dessa fraqueza humana. Essa ambiguidade é transposta magistralmente para o final do filme: Jefferies, o voyeur, é coroado herói embora, momentos antes, tivesse sido «castigado» pelo seu atrevimento e pela sua indiscrição (partindo outra perna e quase acabando morto).



Janela Indiscreta é um dos filmes onde Hitchcock deu mais largas ao seu sadismo e ao seu exquisite humor negro. Um filme pincelado por uma crueldade que o faz ir muito para além de qualquer visão pessimista da natureza humana. Em jeito de parábola, podemos dizer que o cenário revelado pela janela representa o mundo, e Jefferies o realizador de cinema que, com a sua objectiva (binóculos), nos dá a conhecer o grotesco, o patético, a impossibilidade da felicidade, as pífias misérias humanas. Nós, que juntamente com Jefferies observamos o quotidiano daquele pátio, damo-nos conta de que nos observamos a nós próprios. Miss Torso: a boazona bailarina, rodeada pela homenzarrada que só pensa em saltar-lhe para cima, mas incapaz de a compreender e amar; Miss Lonely Heart: a triste, solitária e amargurada solteirona, cujo desespero a leva a compor jantares à luz das velas com homens imaginários, culminando numa tentativa de suicídio; o compositor falhado, insatisfeito com a sua provável mediocridade e lutando contra a solidão, apesar de conseguir encher o apartamento de gente; o casal sem filhos que, em contrapartida, tem um adorável cãozinho semi-amestrado (que, por sinal, acaba morto); o caixeiro-viajante, homem de poucas falas, antipático, casado com uma mulher impertinente que se encontra acamada e lhe corrói a paciência; o jovem casal recém-casado, para quem a vida ainda é tudo, passando os seus dias a... brincar. É neste cenário, com estas personagens, que Hitchcock mistura, como só ele o sabe fazer, casamento, suicídio, degradação humana e desespero, juntando-lhe o cinismo e a ironia hitchcockiana, mas sem nunca perder de vista uma espécie de solidão moral. Truffaut disse um dia que “a impassividade e ‘objectividade’ em Hitchcock são mais aparentes que reais”. Por detrás da trama e de um tom que mistura realismo, poesia e humor macabro, persiste uma visão do mundo que caminha na direcção da misantropia.Janela Indiscreta deixa também no ar a ideia de que, no remanso e na paz do mais comum dos lares, povoado pela ordinary people mais inofensiva, podem esconder-se os piores crimes.



Do ponto de vista cinematográfico, Janela Indiscreta é riquíssimo. Começa com um magistral e histórico travelling onde, em pouco mais de dois minutos, sem uma palavra ou diálogo, se fica a saber quase tudo sobre todas as personagens. Por outro lado, Janela Indiscreta é um dos raros filmes em que o que é mostrado está quase exclusivamente ligado à observação directa de um dos personagens, como se o filme estivesse contido dentro de outro. Alfred Hitchcock disse uma vez uma coisa sobre Rear Window que resume na perfeição o filme: “Temos um homem imobilizado que olha para fora de casa. É uma parte do filme. A segunda parte revela-nos o que é que ele observa. A terceira parte dá-nos a conhecer a sua reacção. Isto é a mais pura expressão da ideia cinematográfica”. Em nome dessa «pureza», cerca de 60 minutos de Janela Indiscreta (uma hora) são mudos ou semi-mudos. Hitchcock fragmentou o filme, apostou na simetria de planos, numa rigorosa mise-en-scene, voltou a usar, como já o tinha feito em A Corda, o método do «cenário único», deteve-se nos pormenores mais bizarros e recusou os habituais clichés cinematográficos, mesmo que isso colidisse com o solilóquio da representação. Não foi por acaso que Stewart confessou, após ter visionado pela primeira vez o filme, não se lembrar de ter representado «daquela maneira». Em Janela Indiscreta, Hitchcock conseguiu separar a linguagem estrutural do cinema com a da expressão teatral. Com isso compôs um verdadeiro hino ao cinema.



Stella: The New York State sentence for a Peeping Tom is six months in the workehouse. Jefferies: Oh, hello Stella. Stella: You know, in the old days they used to put your eyes out with a redhot poker. Any of those bikini bombshells you’re always watchin’ worth a redhot poker? Oh dear, we’ve become a race of Peeping Toms. What people ought to do is get outside their own house and look in for a change. Yes, sir, how’s that for a bit of homespun philosophy?Jefferies: ’Reader’s Digest’, April 1939. Stella: Well, I only quote from the best. You know, I should have been a gipsy fortune teller instead of an insurance-company nurse. I got a nose for trouble. Smell it ten miles away. You heard of that stock market crash in 29? I predicted it. Jefferies: Just how’d you do that Stella? Stella: Oh, simple. I was nursing a director of General Motors. Kidney ailment, they said. Nerves, I said. Then I asked myself: what’s General Motors got to be nervous about? Overproduction, I said. Collapse. When General Motors has to go to the bathroom 10 times a day, the whole country’s ready to let go. Jefferies: You know Stella, in economics, a kidney ailment has no relationship to the stock market. None whatsoever. Stella: It crashed, didn’t it? Stella: I can smell trouble right here in this apartment. First you smash your leg, then you get to lookin’ out the window – see things you shouldn’t see. Trouble. I can see you in court now, surrounded by a bunch of lawyers in double-breasted suits. You’re pleading. You say: ‘Judge, it was only a bit of innocent fun. I love my neighbours like a father.’ And the judge says: ‘Well, congratulations. You’ve just given birth to three years in Dannenora.’ Jefferies: Yeah, well, right now, I’d even welcome trouble, you know? Stella: You’ve got an hormone deficiency. Jefferies: I can you tell from a thermometer? Stella: Those bathing beauties you’ve been watching haven’t raised your temperature one degree in a month. Are you never going to get married? Jefferies: Oh, I’ll probably get married, one of these days, but when I do, it’s gonna be to someone who thinks of life not just as… just as a new dress and a lobster dinner and the latest scandal. I need a woman who’s willing to – hold it – willing to go anywhere and do anything and love it. Jefferies: So the honest thing for me tod do is just call the whole thing off… Let her find somebody else… Stella: Yeah, I can hear you now. Get out of my life, you perfectly wonderful woman! You’re too good for me. Stella: Look Mr. Jefferies. I’m not an educated woman, but I can tell you one thing: When a man and a woman see each other and like each other, they oughta come together – wham – like a coupla of taxis on Broadway and not sit around analysing each other like to specimens in a bottle.

A ORIGEM DE TODOS OS MALES
ou Quais ADM's Qual Carapuça!
Num livrinho de ficção dirigido a crianças, intitulado "O Menino Que Não Gostava de Ler", Susanna Tamaro conta-nos a história de Leopoldo, um rapaz que tinha aversão aos livros e à leitura. A páginas tantas, lê-se:

"No ano anterior, a mãe, preocupada com os seus péssimos resultados escolares, tinha-o inclusivamente levado a um psicólogo. O psicólogo tinha-lhe feito imensas perguntas, tinha-o feito brincar com uns cubinhos de plásticos e depois, no fim, tinha dito:
- Papirofobia, mais um caso de papirofobia.
- Papirofobia?! - tinha repetido a mãe, alarmada, e aí o psicólogo tinha-lhe explicado que se tratava de um problema recentíssimo e em rápida expansão: os primeiros casos tinham sido registados nos Estados Unidos dez anos antes e, de lá, como uma epidemia invisível, tinha invadido todo o mundo civilizado."


É bom que as criancinhas aprendam: daquele país só vem desgraça. Perguntem ao Dr. Soares que ele explica.

quarta-feira, maio 12, 2004

AFINAL...
Já houve um desmentido, por parte de Pedro Amorim. Tudo indica que se tratou de uma inocente calinada de uma qualquer estagiária do Expresso. Que é, como se sabe, a referência.
EU NÃO LI ISTO, POIS NÃO?
Descobri esta pérola, via Grande Loja do Queijo Limiano:

Autoridade quer acabar «blogs»
A Autoridade Nacional de Comunicações (ANACOM) pretende acabar com a existência dos chamados «blogs», páginas de opinião muito em voga na Internet, alegando que estes sítios são frequentemente utilizados para difamação, afirmou ao EXPRESSO Online Pedro Amorim, especialista em direito para as novas tecnologias da informação.
O jurista falava à saída do seminário «Ciberlaw'2004», organizado pelo Centro Atlântico, que decorreu na terça-feira no Centro Cultural de Belém.
«Os blogs estão cada vez mais a ter uma relação com o jornalismo, e prevê-se uma grande tendência para a difamação. O objectivo da ANACOM é acabar com a criação de "blogs" e espero que seja cumprido», disse Pedro Amorim.

Meus caros leitores: por culpa de uma amigdalite e do meu estado febril, digam-me, por favor, que tudo não passa de uma ilusão derivada dos efeitos secundários do meu delirium tremens.

terça-feira, maio 11, 2004

SERVE
Desde que tenha cama e roupa lavada. Não sou esquisito.
COISA LINDA
Esse novo vestido. Melhor só mesmo o wallpaper. O tal.

PS: por acaso, é muito parecido com o novo fato deste senhor.

PPS: Xiii, só agora reparei na quantidade de novos fatos e fatos e...

E AINDA TE QUEIXAS…
Este pobre rapaz lamenta o facto da doce Inês o ter relegado para a categoria de “Outros Links”. O que direi eu, relegado que fui para a categoria de “Link? Népias”.
UM INTELECTUAL ANTI-LIBERAL?
Este senhor tem por hábito apelidar-me de várias coisas: “guarda-portão liberal” (o último), “neófito da economia política”, “liberal eborense”, “contabilista”, etc. etc. É o mesmo senhor que cultiva uma bravata de recorte académico, regada por tiques próprios de um amanuense manga-de-alpaca, no espaço que se convencionou ser de “serviço público”. Muito bem. Palmas. Bis. O pior surge quando, de tempos a tempos, o senhor em questão resolve, num gesto de magnanimidade, género “aprendam que eu explico”, descer desse etéreo pedestal para investir em terrenos espúrios. Ou seja: para se imiscuir na discussão política dos ignaros. Vai daí, resolve, através da ironia e de uma pseudo-equidistância ideológica, colocar a nu as vulgaridades e vanidades que esse bando de papalvos liberais por aí apregoam, pondo-os ao mesmo tempo na ordem. Por azar, ou talvez não, esse senhor nem sequer repara que o faz usando e abusando da pesporrência, da presunção e de um paternalismo bacoco (repare-se nas boas-vindas dirigidas a Vasco Rato). Nem sequer se dá conta que a sua tentativa para disfarçar e florear a generosa quantidade de insultos distribuídos pelos “bushistas”, “sharonistas” e, sei lá, “fascistas” (?) (o senhor adora slogans e pela-se por um bom estereótipo), é levada a cabo pelo uso de uma linguagem verborrágica – ou seja, nula de ideias ou contra-argumentos. Aliás: ideias e contra-argumentos parecem não lhe interessar. Fleumática e enfadadamente, acrescentaria eu.
No meio dos seus recados e do role de epítetos por ele tecidos como se de uma filigrana aracnídea se tratasse, ficam no ar algumas dúvidas. Por exemplo: será ele um anti-liberal? Será marxista? O que entenderá ele por liberalismo? O que saberá ele de Berlin? Terá lido uma linha de Locke, Montesquieu, Mill ou Tocqueville? A avaliar pela sua condição e vocação de bibliotecário, só pode.

segunda-feira, maio 10, 2004

OS CANALHAS
1. Hediondos. Execráveis. Injustificáveis. Inqualificáveis. Estes são apenas quatro dos epítetos que melhor se adequam aos actos de tortura e humilhação de que foram alvo alguns prisioneiros iraquianos, por parte de alguns elementos das tropas da coligação, em Abu Ghraib - justamente um dos locais de tortura e execução tradicionais de Saddam Hussein. Da administração Bush espera-se, agora, duas coisas: 1) que leve esses soldados à justiça para que sejam punidos exemplarmente; 2) que apure responsabilidades criminais e morais.

Os incidentes foram graves, mas pouco ou nada há a acrescentar ao que já foi dito. Pode dizer-se, como atenuante, que, em guerra, há sempre lugar a abusos e a comportamentos desviantes por parte dos que actuam no terreno. Pode. É verdade. Seja como for, estes actos têm de ser condenados clara e inequivocamente, sem rodriguinhos ou contextualizações.

Duas notas finais. A primeira: Rumsfeld deverá demitir-se? Pelas hesitações no pedido de desculpas e pela forma como terá, supostamente, escondido durante meses esta situação, a sua demissão pode exigir-se. A segunda: lamentar que os que agora condenam de forma tão veemente a administração Bush, aproveitando para generalizar o comportamento de uns quantos pela totalidade das forças no terreno, tenham sido tão frouxos e afónicos a condenar, no passado, a barbárie que Saddam perpetrou contra o seu povo. Critérios...

2. Mário Soares aproveitou a situação para dizer que “o exército norte-americano” (ou seja: todo) está a ser pior do que de pior teve o soviético, estando envolvido em actos deliberados de tortura e humilhação dos iraquianos. Uma afirmação canalha pela injustiça e demagogia que encerra. Como escreveu José Bourbon Ribeiro, as atrocidades de cinco ou seis energúmenos, mesmo que fardados, não se podem confundir com o profissionalismo de milhares de soldados. Mário Soares deveria sabê-lo e deveria recusar a demagogia das extrapolações e das generalizações. Deveria ter memória e lembrar-se que alguns elementos do exército português fizeram o mesmo em África e que seria errado e impróprio olhar para esses actos como um paradigma. Nada, aliás, que surpreenda. A obsessão anti-americana de Soares e a sua viragem à esquerda mais extrema abriram a porta à pusilanimidade e à estupidez.

sexta-feira, maio 07, 2004

PARABÉNS!!!!!


quinta-feira, maio 06, 2004

DIA ESPECIAL
Hoje a minha filhota faz 8 anos. Perdoem-me se não escrevo. A vida é feita de prioridades.


quarta-feira, maio 05, 2004

(CO)MISSÃO IMPOSSÍVEL


DIÁLOGOS FALHADOS

“Num momento em que tanto diálogo (até que enfim!) se trava, não será pessimismo encetar diálogos… falhados? A conhecida conversa de surdos:
- Vais à pesca?
- Não. Vou à pesca.
- Ah, pensava que ias à pesca…”

Alexandre O’Neill in Flama 31 Maio 1974


- Os americanos pretendem passar o poder para os iraquianos.
- Ai sim?
- Sim, o processo de transição da soberania está já em marcha.
- E as ADM? Não as encontraram, pois não?
-…

- Existem sérios receios sobre os programas nucleares iraniano e norte-coreano.
- Eh pá, e quem anda a controlar os de Israel e dos EUA?
-…

- Segundo uma sondagem, cerca de 65% dos iraquianos inquiridos entende que as forças da coligação devem ficar até que um governo iraquiano tome posse.
- E as ADM? Não as encontraram, pois não?
-…

- Parece que um grupo de soldados das tropas da coligação torturou e maltratou alguns prisioneiros iraquianos.
- Bush, Saddam, Bin Laden: são todos iguais.
-…

- Foram dezenas de milhares os corpos encontrados em valas comuns, no Iraque.
- E as ADM? Não as encontraram, pois não?
-…

(continua)

segunda-feira, maio 03, 2004

SING ME SOMETHING NEW
Olha...não é que o Pedro Mexia decidiu interromper as suas emissões por duas semanas?
E...
...o meu «Sporteng» (como diria Sousa Cintra) lá se deixou vencer pelo clube da 2.ª circular. Como diria o Eduardo Prado Coelho, quem não faz por marcar arrisca-se a sofrer.

domingo, maio 02, 2004

BÉÉÉ (COMO A OVELHA)
ou A Minha Vez De Bater No Bloco
Não há paciência para o moralismo e para a arrogância de Francisco Louçã. Dizem coisas de Paulo Portas, mas Louçã é, na sua altivez e proverbial presunção, muito pior. O estilo e a atitude de Louçã representam, aliás, o cânone do seu partido: a pregação de um moralismo hipócrita, aliado à demagogia mais primária.

Ao contrário do que se pretende vender, o Bloco de Esquerda é um partido extremamente intolerante, maniqueísta e reaccionário, que se auto-segrega deliberadamente por força da sua soberba. A sua metodologia é a do franco-atirador: disparos avulsos sobre alvos em movimento, mas sem estratégia ou visão global abrangente. Ideias formadas e consolidadas sobre o que fazer com a Economia, a Educação, a Saúde ou a Justiça? Não se lhes conhecesse uma. Todos nós sabemos quais são as posições do Bloco sobre a droga, o aborto, os imigrantes, o racismo, mas sobre os temas mais prementes e que mais directamente têm que ver com o dia-a-dia do comum dos mortais, parece repousar um manto que emudece todo e qualquer dirigente bloquista (o que confirma a suspeita: o Bloco é um partido de e para «franjas»). Por exemplo: o que é que os bloquistas pensam da iniciativa privada e das empresas? Como torná-las mais competitivas? O que pensam do problema da produtividade? Como «atacar» os mercados externos? Que mecanismos deve o Estado disponibilizar? Deve o Estado disponibilizar alguma coisa às empresas? Que experiência ou conhecimento tem Louçã, Portas, Rosas ou Fazenda do que significa gerir uma empresa ou um conjunto de pessoas? Que solução preconizam para acabar com as listas de espera nos hospitais? Que medidas se podem tomar para tornar os hospitais mais eficientes sem se hipotecar a qualidade dos serviços prestados? Como tornar a justiça mais célere? Qual é a sua política para o ensino básico? Nada. Absolutamente nada. São temas que não fazem parte da «agenda» - a bendita e já famosa «agenda» do Bloco de Esquerda.

Depois, qualquer aproximação a temas mais genéricos é levada a cabo pela já famosa cassete: contra o sistema capitalista, contra a globalização, contra o modelo liberal, contra o imperialismo, contra o «neo-colonialismo», marchar, marchar, marchar! Como o próprio nome deixa antever, o "Bloco" é sempre contra muita coisa. Não é de estranhar: por detrás dos slogans berrados, do olhar arrogante e maniqueísta dirigido aos «outros» e da irresponsabilidade das suas propostas (ainda há tempos propunham a nacionalização da Bombardier), esconde-se a certeza de que jamais chegarão ao poder – facto que os deixa livres para dizer o que é sempre fácil dizer, soterrando algumas ideias interessantes por um oceano de inconsciência pueril.

A constante insinuação da sua «pureza e altruísmo», de quem luta pelos «pobres e desfavorecidos» e pelas «minorias» - ao contrário, por exemplo, da direita dos «interesses» - chega a ser obscena. Mas o que é verdadeiramente obsceno é a forma como os bloquistas em geral, e os seus dirigentes em particular, se tentam apropriar dos bons costumes, das boas intenções e dos sentimentos mais nobres, fazendo-os seus. A patente da seriedade e da bondade parece ter sido adquirida, algures no tempo, pelo Bloco. O resto – a malícia, a má-fé, o egoísmo, o desamor ao próximo, o materialismo, a intolerância, o xenofobismo e por aí fora – pertence irremediavelmente aos «outros», ou, como lhes chamava o Dr. Rosas, aos “engomadinhos e pomposos nesse estilo de compromisso entre o vendedor de Alfa Romeos e o estagiário pretensioso de firma chique de advogados, com o seu convencionalismo postiço”. No fundo, é disto de que o Bloco se alimenta: do estereótipo e do preconceito, enrolados em clichés velhos e slogans baratos, que saem da sua palavrosa boca a uma velocidade estonteante. O respeito, o benefício da dúvida, a tolerância, o saber ouvir e, eventualmente, o saber pensar, fazem parte de um pais longínquo para quem se julga acima da ralé e de qualquer suspeita.

Curioso é que, no seio de tanta clarividência e de tanto génio, ainda ninguém dentro do partido reparou que, com o passar do tempo, o discurso e os sound bytes do Bloco de Esquerda estão a tornar-se numa espécie de ladainha surda, inconsequente e extremamente previsível.
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