O MacGuffin

segunda-feira, maio 17, 2004

BORGES
Ando a ler A Odisseia. Nos cinemas, estreou Tróia (ainda não vi). Lembrei-me do grande Borges:

A Odisseia pode ler-se de duas maneiras. Suponho que o homem (ou mulher como pensava Samuel Butler) que o escreveu sentia haver na realidade duas histórias: o regresso de Ulisses e os prodígios e perigos do mar. Se tomarmos A Odisseia no primeiro sentido, temos a ideia do regresso à pátria, a ideia de estarmos exilados, a ideia de que o nosso verdadeiro lar fica no passado ou no céu, ou num sítio qualquer, de que nunca estamos em casa. Mas claro que a navegação e o regresso tinham de ganhar interesse. Por isso foram elaborados os muito prodígios. E quando chegamos às Mil e Uma Noites, descobrimos que a versão árabe de A Odisseia, as Sete Viagens de Sindbad, o Marinheiro, não é a história de um regresso a casa mas uma história de aventuras; e creio que a lemos assim. Quando lemos A Odisseia, penso que o que sentimos é o encanto, a magia do mar; o que sentimos é o que encontramos no navegador. Por exemplo, não tem jeito para a harpa, nem para oferecer anéis, nem para deleitar uma mulher, nem para a grandeza do mundo. Pensa apenas na longa esteira de sal do mar. Portanto, temos duas histórias numa só: podemos lê-lo como regresso a casa e podemos lê-lo como um conto de aventuras – talvez o mais belo jamais escrito ou cantado.”

“Ora, no poema épico – e podemos pensar nos Evangelhos como uma espécie de épico divino – estava tudo. Mas a poesia, como disse, dividiu-se; ou melhor, por um lado, temos o poema lírico e a elegia, por outro temos uma história contada – temos o romance. Quase somos tentados a pensar o romance como degenerescência do épico, a despeito de escritores como Joseph Conrad ou Herman Melville. Porque o romance fica aquém da dignidade do poema épico.”

“Claro que hoje as pessoas inventam tantos enredos que nos cegam. Mas talvez este ataque de inventividade feneça e talvez descubramos então que esses muito enredos não passam de aparências de uns poucos padrões essenciais.”

“De certo modo, as pessoas têm fome e sede de épicos. Sinto que o épico é uma das coisas de que o homem precisa. Entre todos os lugares (isto pode surgir como uma espécie de anticlímax, mas é um facto), Hollywood tem sido aquele que fornece épicos ao mundo. Em todo o globo, quando as pessoas vêem um Western – que contemple a mitologia de um cavaleiro, mais o deserto, a justiça, o xerife, os tiros, etc. – penso que tiram dele o sentimento do épico, saibam-no ou não. Afinal, saber não é importante.
Ora, não quero fazer profecias, porque essas coisas são perigosas (embora, com o tempo, possam tornar-se verdadeiras), mas acho que, se se pudesse de novo juntar contar um conto e cantar um poema, poderia acontecer algo de muito importante. Talvez isso venha da América . uma vez que, como todos sabem, a América tem o sentido ético de uma coisa ser certa ou errada. Pode ser sentido noutros países, mas não me parece que se encontre sob formas tão óbvias como o encontro aqui. Se isso se realizasse, se pudéssemos voltar ao épico, então ter-se-ia conseguido algo de muito grande.”

“Pensem nos principais romances do nosso tempo… no Ulisses de Joyce, digamos. Dizem-nos milhares de coisas sobre os dois personagens, no entanto, não os conhecemos. Temos um conhecimento melhor dos personagens de Dante ou Shakespeare, que nos chegam – que vivem e morrem – numas quantas frases. Não conhecemos milhares de circunstâncias relativas a eles, mas conhecemo-los intimamente. Isso, como é óbvio, é muitíssimo mais importante.
Penso que o romance está a acabar. Penso que todas essas experiências muito ousadas e interessantes como o romance – por exemplo, a ideia de deslocar o tempo, a ideia de a história ser contada por diferentes personagens – tudo isso está a levar ao momento em que sentiremos que o romance já não está entre nós.
Mas um conto, uma história têm algo que permanecerá. Não me parece que alguma vez os homens se cansem de contar e ouvir histórias. E se, a par do prazer do prazer de nos contarem uma história obtivermos o prazer adicional da dignidade do poema, algo de grande terá acontecido. Talvez eu seja antiquado, um homem do século XIX, mas sinto-me optimista, tenho esperança; e como o futuro encerra muitas coisas – como o futuro, espero, encerra todas as coisas – acho que o épico há-de regressar. Acredito que o poeta voltará a ser um fazedor, ou seja, contará uma história e também a cantará. E não pensaremos estas duas coisas como diferentes, tal como não as consideramos diferentes em Homero ou Virgílio.”


in Contar o Conto (uma das seis palestras na Harvard University)



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