O MacGuffin

quinta-feira, maio 27, 2004

ALBERGUE ESPANHOL
(actualizado)
Daniel Oliveira, no seu Barnabé, publica, solícito, a lista dos «países mal frequentados», com base no relatório da Amnistia Internacional. Ou seja, a lista de países onde: há prisioneiros de consciência; foi aplicada a pena de morte; se verificam execuções extra-judiciais; se pratica a tortura e os maus tratos; há detenções sem julgamento ou acusação; se verificam “desaparecimentos”; grupos armados da oposição violam os Direitos Humanos.

A lista é útil, diz o Daniel, porque ”ajudará a muitos debates sobre o «bem» e o «mal», a «civilização» e os «barbáros».” (sic).

De facto, a lista é utilíssima, sobretudo para quem esfrega as mãos de contente ao verificar que países como a Áustria ou os EUA podem estar associados a outros como o Congo, o Irão ou a Libéria. É utilíssima a quem pratica, com especial afinco, o relativismo e a má-fé (não propriamente a mentira, mas a má-fé). São estas listas que sustentam as equivalências morais e retóricas entre países e regimes cujo único ponto de contacto é estarem situados no mesmo planeta.

Ao colocar no ar essa lista – não ponderada e não graduada – de países onde se violam os direitos humanos (sem estar em causa a existência desses atropelos), Daniel Oliveira acaba por fazer eco daqueles que, sem qualquer problema de consciência e fazendo gosto em passear a sua ignorância, conseguem desculpar ou amenizar os atropelos aos direitos humanos na Arábia Saudita ou no Irão, afirmando que também nos EUA se verificam. Ou em Portugal. Está lá a listinha para o confirmar. A própria expressão do Daniel (de que ”ajudará a muitos debates entre o «bem» e o «mal», a «civilização» e os «barbáros»”), aponta já nesse sentido: esta história dos «civililzados» e dos «bárbaros» é muito relativa, não é? E o «bem» e o «mal» tem muito que se lhe diga, não tem? Portanto, muito cuidadinho na hora de apontar o dedo ao regime x ou ao país y: a nossa casinha (leia-se: a nossa civilização e os países que denominamos de «civilizados») pode ter telhados de vidro.

Pois. O problema surge logo a seguir, quando decidimos comparar o tipo, quantidade, natureza e origem dos «atropelos». Daniel Oliveira bem pode dizer que, mais à frente, a AI explica tudo. É verdade que tenta explicar, mas explica-o de forma nebulosa e por vezes incerta. Por exemplo: comparando os relatórios de vários países acentuadamente diferentes, chegamos à conclusão que, para a AI, “death sentences carried out under federal and state law” e “extra-judicial death sentences” se podem equivaler. Não podem. Outro exemplo: aos EUA são dedicadas cinco páginas de denúncias e factos; ao Irão apenas três. No relatório sobre Israel, a AI refere o assassínio de 600 palestinianos por parte das forças israelitas, ao passo que, no que respeita aos ataques perpetrados pelos grupos armados palestinianos, a AI tem o cuidado de separar as mortes dos civis (130) das dos soldados israelitas (70). Fica-se com a ideia de que Israel atacou indiscriminadamente civis (podendo o relatório escudar-se no facto de não existir um exercito formal do lado dos palestinianos), enquanto que os grupos extremistas palestinianos terão tentado atingir militares (ou seja, um confronto marcial taco-a-taco), embora tenham ceifado a vida de 130 civis. Ou seja, uma total subversão da realidade.

A lista da AI deve ser lida com parcimónia e cautela. Acima de tudo, devem evitar-se comparações que, para além de absurdas, ajudam à impunidade de dezenas de regimes que espezinham grosseira, sistemática e deliberadamente os mais elementares direitos humanos. O facto de se verificarem excessos e abusos no denominado mundo «civilizado» (o mundo das democracias, dos Estados de Direito, da liberdade, dos direitos e garantias), não pode resultar na confusão entre «civilizados» e «bárbaros». Os estados párias e os regimes bárbaros não são uma ficção nem resultam de perspectivas ou interpretações. As suas acções não podem acabar alegremente «contextualizadas» ou «suavizadas», com base em leituras simplistas e distorcidas de um relatório que, já por si, aparenta falhas de rigor e de tom, juntando realidades completamente díspares no mesmo saco. E o contrário também é válido: é injusto e incorrecto fazer crer que países onde o «rule of law» está solidamente implantado; onde o escrutínio popular, a liberdade de expressão, os valores democráticos e o respeito pela dignidade humana são dados adquiridos; que esses países, dizia, possam ser comparados, quase que de igual para igual, com países e regiões onde o ser humano ainda é sinónimo de carne para canhão.

0 Comentários:

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]

<< Página inicial

Powered by Blogger Licença Creative Commons
Esta obra está licenciado sob uma Licença Creative Commons.