O MacGuffin

sexta-feira, maio 28, 2004

UMA VEZ MAIS, A LADAINHA
Há muitos anos que não lia a Newsweek. A semana passada, passando por uma banca de jornais, dei de caras com uma capa que me deixou curioso: “The Death of The Bristo – Are Taxes and Red Tape Strangling the French Food Industry?”, edição de 24 de Maio. Comprei a revista e mergulhei de cabeça na página 41, local da dita reportagem.

A oriente, nada de novo. O artigo em questão, de Marie Valla e Christopher Dickey, parece ter sido encomendado pelo Sr. Bové, pelo Sr. Villepain e pelo sindicato dos agricultores franceses. Nele se defende a idiossincrasia e exclusividade da cozinha francesa, apresentando-a ao mundo como a mais recente vitima da, claro está, «globalização». O que prova, mais uma vez, que a «globalização» passou a a ser o bode expiatório preferencial quando alguma coisa corre mal. Sobretudo, e por ironia, nos países do «primeiro mundo».

O artigo começa com a lapidar e dramática afirmação de que “a famosa industria alimentar francesa está em declínio”. A culpa, segundo os autores da reportagem, é da “globalização, bem como do governo francês.” Mais à frente, diz-se que “o que é medíocre lá fora, acaba por ser importado para a França”, provocando o descontentamento dos turistas, que, de lágrima no canto do olho, “já não conseguem discernir o que há assim de tão especial na cozinha francesa”. Depois, chega a vez dos agricultores: “Cheaper imports threaten the backbone of French cuisine – its local farmers”, lê-se numa das caixas. A activista Brigitte Allain, ela própria uma agricultora, afirma que “neste sistema [PAC] os agricultores são fornecedores de produtos básicos, onde apenas se exige [de forma a receber o subsídiozinho da ordem] que os bens agrícolas sejam entregues de acordo com as regras”, sem que estas tenham em consideração aspectos como a qualidade e a variedade de sabores, acrescentam os jornalistas. E por aí fora.

O artigo está pejado de contradições, incoerências e propaganda anti-globalização com direito a tiro no pé. Os agricultores franceses e, em geral, os da UE, vivem há décadas da «mama» dos subsídios para evitar entrar em confronto directo com os produtos dos países em vias de desenvolvimento, cuja grande diferença, sejamos honestos, não é de qualidade mas sim de preço: são muito mais baratos. A queixa relativa à globalização é, neste caso, completamente absurda. No CEPR Policy Paper N.º 8, um estudo comissionado pelo Centre for Economic Policy Research, através da UE, onde participaram inúmeros e conceituados investigadores de universidades e institutos franceses, italianos, ingleses e americanos (estudo esse que o Sr. Prodi meteu na gaveta, uma vez que contrariava a litania contra a globalização), concluía-se que ”Farmers in developing countries switch to cash crops that despoil the local environment and mean they can no longer feed themselves in case of a crisis, all in order to satisfy the whims of northern consumers. They are forced out of world markets for their traditional crops by agricultural protection and face dumping of subsidized northern crops on their own markets. (…) Farmers in poor countries have indeed been forced out of northern markets, and face subsidized exports from rich countries. Fortunately, there are suitable domestic policy responses to the first problem, while the second problem requires developed countries to live up to their own globalizing rhetoric. In other words, more (or more consistent) globalization rather than less.”.

É particularmente obsceno verificar como os jornalistas da Newsweek se debruçaram sobre este tema sem estudar todas as suas implicações e variáveis. A cozinha francesa não entrou em declínio por causa da globalização. Se o motivo a apontar é o da quebra da qualidade, culpe-se a UE por apostar numa agricultura intensiva e pouco diversificada e, paralelamente, por fechar as portas à riqueza e variedade de uma multiplicidade de produtos provenientes dos países do terceiro mundo. O sistema dos subsídios não estrangula, apenas, os agricultores dos mercados exteriores à UE; inflaciona, também, o preço dos produtos agrícolas europeus, através de taxas e regulamentações proibitivas que, por sua vez, servem para alimentar o ciclo vicioso dos subsídios à agricultura. Para além disso, o argumento da qualidade é falso. Qualquer chef que se preze, sabe onde ir e como arranjar os bons ingredientes e a melhores matérias-primas, venham elas dos quintaneiros espalhados nos arredores dos grandes centros urbanos, das pequenas explorações viradas para a qualidade ou, ainda, do próprio mercado externo.

Esqueceram, também, que o declínio do chamado “turismo gastronómico” em França, está associado a uma melhoria significativa dos métodos, meios e qualidade de outras cozinhas europeias e mundiais, a que se associa a maior mobilidade de pessoas. Espanha e Portugal são o exemplo disso mesmo. Os franceses ainda não terão percebido que já não é só em França que se come bem. Come-se muito bem "lá fora" e muito mais em conta. Não foi tanto a França que decaiu. Houve, sim, quem se tivesse levantado.

A globalização é, de facto, uma coisa «lixada». Mas é lixada para quem, durante décadas, adormeceu à sombra da bananeira, mamando na teta do proteccionismo e subvalorizando quem, ali ao lado, foi fazendo pela vidinha. Os mesmos que, agora, reclamam justamente um lugar ao sol.

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