O MacGuffin: dezembro 2010

sexta-feira, dezembro 31, 2010

O topete do homem

Fortíssimo candidato ao lugar de “Béria socrático” (tem como concorrente mais directo Augusto Santos Silva, agora mais sossegado por inerência de cargo), Capoulas Santos volta a sair da bruma aparelhista em defesa dos seus. “Eu acho que em política, mesmo em campanha eleitoral, não pode valer tudo e o expediente de que o professor Cavaco Silva se socorreu para introduzir o BPN na campanha é um ato de puro maquiavelismo político”, disse. Desconheço se Capoulas Santos acha que está a falar para uma plateia de néscios (permeável à sua lendária hipocrisia política) ou se, por estes dias, lhe falham algumas faculdades mentais básicas. Seja como for, alguém devia segredar-lhe ao ouvido uma pequena evidência: achar que foi o professor Cavaco Silva quem quis introduzir o BPN na campanha, é mais ou menos o mesmo que dizer que foi José Sócrates quem suscitou, por sua própria iniciativa, a discussão pública em torno da sua atribulada licenciatura ou dos seus projectos na Covilhã. Com a pequenina diferença de que Cavaco Silva tem um currículo académico que fala por si e, no que respeita ao BPN, o povo português sabe que não há réstia de ligação entre o cidadão Cavaco Silva e os putativos actos criminosos (que o ministro Silva Pereira já julgou antes dos tribunais) dos gestores da SLN e do BPN.

Farto de ser atacado, de forma insidiosa e maliciosa, por um assunto que não lhe diz respeito (o BPN), Cavaco Silva tem o legitimo direito de falar no mesmo - pronunciando-se, neste caso, não sobre matéria que está sob a alçada da justiça (e se os dirigentes e militantes do PS tanto se queixaram de, no passado, se discutirem assuntos de justiça na praça pública, deveriam ser os primeiros a compreender isso), mas sobre o presente de um banco que, é bom lembrar, foi nacionalizado com o objectivo de salvar o sistema financeiro português.

É legítimo e compreensível que Cavaco Silva levante a questão da eficácia do processo BPN pós-nacionalização (assunto, repito, que não chamou à colação, e solução que lhe suscitou dúvidas desde o início), tanto mais que parece estarmos na presença de um buraco sem fundo. E quem vai pagar a facturinha, Sr. Capoulas Santos? Quer que lhe faça um esquema em powerpoint?

The future is so bright, I gotta wear shades

Vasco Pulido Valente, Público 31-12-2010

A confusão

Não me lembro de um começo de ano tão escuro e perigoso como o de 2011. Mesmo 1975 não parecia (em Janeiro) assim tão mau. Não há precedentes para a ruína do país que se anuncia cada vez mais certa. O que não impediu Sócrates de fazer um discurso de Natal absurdo e folgazão. Nem o poeta Alegre e o dr. Cavaco de se entreterem num debate fútil, por uma honra vazia e um cargo sem verdadeira relevância. Como nos metemos neste sarilho sem fundo? A resposta é fácil. Imaginando, com o incurável provincianismo indígena, que podíamos ser como a Europa, esse modelo mítico que arrastou o liberalismo inteiro, a I República e, até certo ponto, o próprio Salazar, e que este nosso regime democrático seguiu, depois do PREC, com patético zelo e a incompetência do costume. Basta olhar e ver. Cavaco e Alegre, por exemplo, discutiram anteontem na televisão quem era ou quem não era a favor do Estado Social. Nenhum deles, evidentemente, se deu à excessiva franqueza de esclarecer o que entendia por "Estado Social". E nenhum deles achou útil explicar que espécie de "Estado Social" a economia portuguesa consegue hoje por si mesma sustentar. Para um e para outro, basta saber que "lá fora" o "Estado Social" existe (e deve, por consequência, existir cá dentro) e sobretudo que perde votos se for contra esse obrigatório aprimoramento do país. De quem paga (e do que não se paga) não se falou para não estragar o gozo desses devaneios da imaginação. Quem paga e o que não se paga é um capítulo à parte. Quase irrelevante. Infelizmente, os devaneios da imaginação acabam sempre por custar caro, agora que Portugal se tornou dependente do estrangeiro e já não ganha a vida a cavar batatas. Por uma estranha perversidade do destino a nossa perpétua "modernização", da "modernização" de 1820 (a que na altura se chamava "regeneração") à "modernização" de Sócrates, passando pela de Cavaco, nunca "modernizou" nada. Não enriqueceu o país; criou dívidas, licenciados, desemprego e miséria. Os pobres portugueses de 2011 vão comer restos de restaurantes, decorados com um doutoramento. Como os bacharéis do século XIX. O progresso é óbvio. E a confusão indescritível: o orçamento não se cumpre, os partidos não funcionam, o Presidente não manda nos partidos. Só falta o FMI. Mas por pouco tempo.

quinta-feira, dezembro 30, 2010

Uma tragédia


O MacGuffin (aka Contra a Corrente) está de luto: morreu o Denis Dutton.




terça-feira, dezembro 28, 2010

O melhor resumo de 2010 (so far...)

Alberto Gonçalves (Diário de Notícias, 26 de Dezembro de 2010) em grande forma:
Um ano muito português

Janeiro

Depois de ter despertado para o século XXI em 2007, com a legalização do aborto, Portugal voltou a despertar para o século XXI através da aprovação do casamento homossexual. Entre um marco e o outro, ao contrário do que se poderia esperar, Portugal não dormiu: o berreiro dos apoiantes e adversários de ambas as "causas" não deixou. Valeu a pena o berreiro? Duvido. Os "conservadores" perderam ambos os combates. Os "progressistas" ganharam os combates e a melancolia que se lhes seguiu. Entretanto, sem que a maioria dos cidadãos e a norma social reparasse, algumas (muitas) mulheres abortaram em hospitais públicos e alguns (poucos) gays casaram. E depois? Depois é o vazio, que o debate da adopção por casais do mesmo sexo e, talvez um dia, a questão da eutanásia não conseguirão impedir. A verdade é que as "causas" começam a escassear, e as poucas que restam vêem-se abafadas por problemas comezinhos como a penúria para a qual, tarde como em todos os séculos, Portugal às vezes desperta.

Fevereiro

O país conheceu Rui Pedro Soares, modelo de ascensão social que em poucos anos trepou de estampador de T-shirts do "Che" para a Juventude Socialista até à administração da PT. A súbita, e justíssima, fama do rapaz deveu-se às "escutas" que revelaram o seu papel de intermediário no negócio (interrompido) da compra da TVI, mais uma das inúmeras proezas cuja paternidade a modéstia do eng. Sócrates o impede de assumir. Desde então, o rapaz foi a uma Comissão de Ética na AR enxovalhar os deputados que se prestaram àquilo e, de castigo, acumulou uma quantidade indeterminada de indemnizações, novos cargos na PT, uma auditoria interna nunca divulgada, privilégios e euros. E um jornal, que promete lançar em 2011 a meias com Emídio Rangel, outro exemplo de como o esforço, o talento e a integridade compensam.

Março

Após o eleitorado punir Manuela Ferreira Leite por esta passar dois anos a dizer a verdade sobre o buraco a que chegamos, o PSD imitou o eleitorado e, numa daquelas regenerações internas que mobilizam sazonalmente o partido e enriquecem o anedotário nacional, trocou a senhora por Pedro Passos Coelho. Mal alcançou a liderança, o dr. Passos Coelho afirmou não ter pressa de que o Governo caísse. Foi a única afirmação consequente de todas que desde então produziu.

Abril

Ignoro quem se culpava quando um vulcão irrompia há dois milhões de anos, mais dia, menos dia. Hoje, o culpado encontra-se num instante. Segundo Mário Soares, os soluços do islandês Eyjafjallajökull, que por atrapalhar os transportes aéreos durante uns dias foi o herói da esquerda do mês, deveram-se à "mão inconsciente e desastrada do homem, que agride e maltrata o planeta". Outros milenaristas não foram tão longe e limitaram-se a ver no Eyjafjallajökull (cortei e colei, o que é que queriam?) um prenúncio do fim do petróleo, do capitalismo, do modo de vida ocidental ou da nossa paciência, de acordo com o que ocorresse primeiro. Não é preciso lembrar o que ocorreu.

Maio

Do dr. Passos Coelho ao dr. Louçã, passando pelo eng. Sócrates, pelo ministro das Finanças e pelo sempre interessante dr. Vital Moreira, noventa e nove em cada cem políticos indígenas descobriram que a soberania nacional estava a ser atacada por misteriosos especuladores estrangeiros. Em sintonia, todos reagiram como se impunha: através de insultos aos "mercados" e juras de fidelidade ao "investimento" público. Não fora a maçadora realidade, a qual mostrava que os especuladores e os "mercados" apenas se cansaram de financiar o exacto "investimento" público que nos arrastou para a indigência, a estratégia teria sido infalível.

Junho

Em Junho morreram José Saramago, nas Canárias, e a selecção do "professor" Carlos Queiroz, uns milhares de quilómetros a sul. Não tenho particular interesse pelo primeiro nem pela segunda, mas o "professor" propriamente dito fascinou-me por umas semanas. Primeiro, pelo violento contraste entre o optimismo do seu discurso e o fracasso do seu desempenho. Depois, pelo contraste surrealista entre o fracasso do desempenho e a paixão dos seus simpatizantes nos media. Afinal, não é só na política que as catástrofes ambulantes - ocorre-me uma em particular - beneficiam de um apoio muito para lá do compreensível. A diferença é que no futebol a catástrofe é varrida mais depressa.

Julho

Sem consequências visíveis, excepto pela histeria da esquerda, o PSD sugeriu alterar a Constituição. A extemporaneidade da proposta foi proporcional à do próprio texto constitucional, que em diversas nações civilizadas não existe ou, quando existe, resume-se com frequência a um punhado de observações vagas e consensuais. Apesar das revisões anteriores, a interminável Constituição Portuguesa ainda é um manifesto de facção, um relicário das conquistas de "Abril", na acepção que entende "Abril" enquanto um estado de sítio que opõe parte do país à parte restante. Por um lado, uma Constituição que aponta o "caminho a uma sociedade socialista" nunca pôde ser levada demasiado a sério. Por outro lado, vem sendo levada a sério o suficiente para servir de memória descritiva daquilo que hoje somos. Se alguém quiser perceber como o progresso das últimas décadas nunca deixou de arrastar a iminência estrutural da pobreza e do fracasso, encontrará algumas luzes nessa tensão entre a irrelevância e a influência do Livrinho Sagrado a que temos direito.

Agosto

A sanha descentralizadora do eng. Sócrates prosseguiu com o fecho de mais 701 escolas da província, as quais se somam às 3200 já fechadas durante o respectivo reinado. Não consigo discordar da medida. A partir do momento em que se decidiu abolir a educação do sistema educativo, é absurdo continuar a ocupar milhares de edifícios com inutilidades. Se a escola, no sentido lato, é hoje apenas um meio de armazenar crianças enquanto os progenitores labutam no emprego ou na papelada do rendimento mínimo, nada justifica que não se utilizem armazéns de facto, deixando as escolas, no sentido estrito, disponíveis para reconversão a actividades realmente úteis: restaurantes, adegas regionais, etc. Muitos acham que o turismo é o futuro de Portugal, mesmo porque não vêem outro.

Setembro

Pela leitura da sentença do processo Casa Pia desfilaram réus indignados, vítimas traumatizadas, populares excitados, advogados, juristas, psicólogos, criminologistas, comentadores genéricos, repórteres, jornalistas, malabaristas e, possivelmente, o ocasional médium. As opiniões e o ardor envolvidos foram tais que levavam a crer que o desfecho de uma história velha e sórdida redimiria todas as misérias colectivas. Escusado dizer, não redimiu.

Outubro

Hugo Chávez visitou Portugal e o querido amigo José Sócrates. Aliás, o ogre de Caracas parece estar quase sempre de visita. E quando não é o ogre de Caracas é o ogre de Trípoli. E quando os ogres não visitam o eng. Sócrates é o eng. Sócrates que, como a montanha da lenda e com um sorriso cheio de dentes, visita os ogres nos respectivos covis. O discurso oficial jura que semelhantes relações fomentam o negócio de computadores de brincar e pechisbeques afins. A influência do negócio na nossa economia mede-se pelo estado da mesma. É frequente ver estados melhorarem as contas à medida que descem os padrões morais: o eng. Sócrates conseguiu a proeza de descer ambos em simultâneo. Pobres mas desonrados podia ser um lema do actual PS, e é uma súmula do actual país.

Novembro

Contra a bancarrota, nada melhor do que uma greve geral a exigir a perpetuação do tipo de medidas "sociais" que nos atiraram sem desvios para a bancarrota. Pelo menos é este o entendimento dos sindicatos, que se opõem frontalmente às políticas "de direita", ao "neoliberalismo", ao "capitalismo selvagem" e, já que falamos de entidades imaginárias, aos duendes, aos lobisomens e ao Pato Donald. Carvalho da Silva garante: o Pato Donald não passará.

Dezembro

Também por cá quase toda a gente festejou a fuga de informações diplomáticas dos EUA providenciada pelo site WikiLeaks. Poucos notaram que os segredos revelados até dão uma imagem simpática da política externa americana, que a maioria dos segredos revelados corresponde à América de Obama que fingem apreciar e não à América abstracta que odeiam de facto e que, dado o princípio inaugurado, os segredos revelados um dia serão os seus.

A Figura do Ano

É redundante recordar o imenso contributo do eng. Sócrates para a desesperada situação nacional. Mais do que notar que a crise se deve a ele convém notar que a crise é ele. Sem ele, nada será fácil; com ele, tudo será impossível. A capacidade de sobrevivência do eng. Sócrates e a capacidade de sobrevivência do País tornaram-se condições mutuamente exclusivas. Para quem nos prometeu tanto, não está mal.

sexta-feira, dezembro 24, 2010

As canções pop de 2010

















quinta-feira, dezembro 23, 2010

Falem com o Assange que ele trata do assunto (com o beneplácito do João Marcelino)

Notícia Público: A Comarca do Baixo Vouga descobriu que ainda há uma cópia das escutas telefónicas do processo Face Oculta com conversas entre o primeiro-ministro e o então presidente do BCP, Armando Vara, noticia o semanário Sol na sua edição de hoje. (…) A existência destas escutas reacende o debate em torno do processo Face Oculta, visto que várias pessoas entenderam que a destruição ordenada por Noronha Nascimento implicaria a nulidade das demais escutas em que se alicerça o processo que envolve Manuel Godinho e mais 35 arguidos. Mesmo que o presidente do Supremo insista que estas cópias devem ser destruídas, Carlos Alexandre poderá contrapor com a nulidade do processo e o recurso irá parar ao Tribunal da Relação.

domingo, dezembro 19, 2010

Estará muito frio?

Dia 23 de Janeiro, um Domingo, se não estiver frio, provavelmente irei votar. Votarei em Cavaco Silva. Não que me entusiasme muito votar em Cavaco Silva. A Cavaco Silva sempre faltou uma patine de à vontade e sentido de humor, aliada a uma aura de grandeza intelectual (de cariz popular, não escolástica), que sempre apreciei noutros políticos de dimensão nacional. Aquela coisa difusa do carisma. Francisco Sá Carneiro, por exemplo (cuja personalidade e estilo absorvi a título póstumo). Ou Mário Soares - que, por muito que dele discorde e considere que as suas intervenções públicas, de há uns anos a esta parte, se tenham pautado por uma pitada de insanidade e por doses massivas de infantilidade, lhe reconheço graça e espirituosidade. Há em Cavaco Silva uma rigidez que é filha do receio, ainda que residual e não propriamente determinante para a composição da persona política, da gaffe e do deslize. Um quadro muito comum em gente tímida, mais reservada, mas acima de tudo em gente cuja vivência ou aprendizagem não muito «abrangente» e «multidisciplinar», não terá contribuído para a sedimentação de características de personalidade particularmente cativantes. Simplificando: o homem é um chato (um típico académico opaco), não se lhe reconhecendo grandes interesses, passe o pleonasmo, interessantes.

O que é que isto tem que ver com política? Muito pouco. Em política, outras características e valores tendem a suplantar os eventuais tiques maneiristas e acinzentados que pontuam uma personalidade desgraçadamente apática. Dito de outra forma, de pouco valerá um elaborado sentido de humor ou um grande à vontade na expressão oral, se se constatar que a praxis política evidencia anos e anos de uma lógica conjectural, de uma observação distorcida da realidade, de um módico de realismo, de recorrentes provas de deslealdade argumentativa e de uma propensão para o logro e para a intrujice. Aquela coisa da «seriedade», do «bom senso» e da «lucidez», têm um peso preponderante na minha escala de critérios. Cada um tem a sua pancada.

Cavaco Silva pode ser tudo isso: cinzento, chato, monocórdico no discurso e não muito brilhante na forma. Pode até ter uma ficha na PIDE declarando-se «integrado no sistema» (um episódio que levou a que moralistas e inquisidores, acompanhados pelas brigadas antifascistas, saíssem da sombra ou das tocas para produzir textozinhos abjectos). Mas é, também, outras «coisas»: um homem sério, realista, sabedor (ao contrário de outros candidatos, nos antípodas do bovarismo) e, graças a Deus, previsível. No meio da tempestade, é bom saber que podemos não ter o mais interessante dos faróis, mas calhou-nos em sorte um dos mais sólidos. Brindo a isso.

Estas coisas têm de ser debatidas

É muito importante aquilo de que fala o maradona no post das 11:19 do dia 17 de Dezembro de 2010 (que dentro de algumas horas ou dias desaparecerá). Há (sempre houve e continuará a haver) indicadores e sinais de aparência fátua, inconsequente, mesquinha até, que muito revelam e marcam (acabam por institucionalizar-se por via da aceitação tácita) um povo e um país. Exemplos: o número reduzido de pessoas que se observa a ler nos transportes públicos ou na fila para o autocarro; a percentagem ínfima de veículos com caixa automática, com especial e incompreensível incidência no caso dos táxis; o número insignificante de pessoas que recorre a trolleys para transportar as compras no supermercado; a estranha aversão dos cafés e pastelarias em disponibilizar compotas e derivados para servir com ou no pão; o grau de utilização da bicicleta nas cidades; as horas improváveis que a generalidade dos serviços de recolha do lixo escolhe para o fazer; e por aí fora (podia estar aqui a noite toda, mas tenho que ir levar o lixo).

O caso dos livros é outro que obriga a reflexão aturada. Nenhuma editora em Portugal (nem mesmo a Assírio & Alvim, a Cotovia ou a Relógio d’Água, que a certa altura das respectivas existências pareceram apostadas numa espécie de simplicidade levemente elaborada, ou num estilo falsamente simples), observando o ‘modus operandi’ da Penguin, parou para pensar: por que carga a Penguin compõe e imprime os seus livros assim (com aquele papel, aquelas dimensões, aquela letra miudinha, 99% em paperback livre de orelhas)? No mundo editorial português, vive-se um paradoxo: Portugal é, provavelmente (ainda não fui à Pordata verificar), o país Europeu onde mais dinheiro se gastará em encadernações de encher o olho (vamos pensar que enchem o olho e esquecer que vertem pirosice) a envolver papel de primeiríssima qualidade (grosso e branquinho como a neve), ao mesmo tempo que se leva uma eternidade a traduzir e a publicar obras de referência editadas lá fora ou, pior ainda, se ignora a existência das ditas por tempo indeterminado. É como se os editores, ciclicamente falidos e eternamente amedrontados com índices de leitura próximos do Mali, apostassem toda a prata da casa no packaging e na «qualidade do material», na secreta esperança de deslumbrar a pouco motivada mente dos nativos e de despoletar o respectivo processo de salivação à medida que observam a profusão de cores impressas em capas e badanas produzidas com a mais forte cartolina do mercado. Explicar a um português as vantagens da maleabilidade de um paperback leve, dobrável, de dimensões reduzidas, com letra miudinha, ao preço da uva mijona e como que a dizer-nos «lê o que está lá dentro e deixa-te de merdas», é tarefa equivalente a explicar a um taxista lisboeta a existência, há já algumas décadas, de um sistema de mudanças (automático e ultra-fiável) que lhe facilitaria a vida no pára-arranca citadino como ele nunca pensou ser possível. Não vale a pena.

Da mesma forma que o taxista quer continuar a exercitar centenas de vezes a perna esquerda, para baixo e para cima, o leitor português vai continuar a querer levar para casa livros, aí vem a bendita expressão, «de qualidade»: encadernação «de qualidade»», papel «de qualidade» e, claro, páginas «com leitura». «Com leitura» significa que o tamanho da fonte deverá estar ligeiramente abaixo da dimensão de parangona, não se vá dar o caso de, durante a noite, o incauto leitor acabar picado pelo bichinho da hipermetropia.

Em certa medida, compreende-se: o preço médio dos livros em Portugal conduz à reacção meio saloia do «já que paguei o que paguei, quero levar uma coisa pesada, indobrável, resistente às intempéries, que encha a estante, faça companhia, sirva de cunha numa eventualidade». Mas deixo de compreender o que quer que seja quando pego num daqueles calhamaços do Paul Johnson, da Phoenix Press, e recordo o prazer que foi manusear um livro (objecto) que foi produzido, impresso e encadernado com a única e simples pretensão de projectar nas minhas retinas milhares de caracteres economicamente aconchegados num paperback maleável, leve, de dimensões justas, e com um preço inferior a dez euros. E, verifico agora, que veio a envelhecer de forma digna e assumida.

Continua impenetrável a razão porque, em Portugal, as editoras não apostam no essencial (o conteúdo, incluindo a qualidade das traduções), sabendo que, com isso, baixariam o custo de produção dos livros (reflectindo-se essa economia no preço final ao consumidor), tornariam o objecto mais leve e mais fácil de manusear (porque mais pequeno), e contribuiriam para a consciencialização de que um livro, enquanto objecto, não tem que ser «giro» e «diferente» e «espectacular» e «indestrutível». Um livro deve ser, apenas e tão só, um livro: leve, simples, fácil de abrir, adaptável às mãos. E, claro, barato.

sábado, dezembro 18, 2010

Mais um exemplo da bafienta e endémica manha do Eng. José Sócrates


Traduzindo: o Eng. José Sócrates tenta o aproveitamento político do putativo aproveitamento político da pobreza, supostamente perpetrado pelo Presidente da República. É obra. Seja como for, este golpe argumentativo é para aí o 5.044.º a provar que a demagogia e a aleivosia são parte integrante e capital da coluna vertebral deste senhor - que é, nada mais, nada menos (é bom lembrar) primeiro-ministro de Portugal. É por estas e por outras que o Eng. Sócrates é o representante máximo de uma geração de políticos que trouxe para a política um modo de estar que ajudou a concretizar, por muitos e bons anos, o divórcio entre a população e os políticos, por via da popular e não raras vezes sábia constatação de que «não são de fiar». Quando personagens deste calibre, versadas numa linguagem política miserável (plena de remoques, recadinhos, farpinhas e cinismo) e praticando um posicionamento ideológico escorregadio, preenchem um lugar que, antes de tudo o mais, deveria constituir um último e derradeiro reduto de ordem moral, de discrição e seriedade, parece-me a mim que está mais ou menos tudo dito.

sexta-feira, dezembro 17, 2010

Isto está um espectáculo

Um reputa de extraordinárias as suas capacidades políticas porque, algures no passado e no estrangeiro (pormenor importante este), se angustiou gravemente ao observar uma criança esfomeada a correr atrás de uma galinha para tirar o naco de pão que esta transportava no bico.

Outro jura a pés juntos que testemunhou o mesmo (galináceo + naco de pão), mas desta vez em solo pátrio (mas com igual comoção), enquanto lutava pelos direitos dos trabalhadores.

Outro, ainda, acha-se moralmente superior, e politicamente um portento, porque não teve ficha na PIDE declarando «integração no sistema» (traição das traições).

Espera-se, a todo o momento, que o quarto candidato – uma inutilidade que exerce actividade de cacique para os lados de Viana do Castelo – faça o pleno, declarando que, circa 1968, assassinou uma galinha agente da PIDE, entregando-a para alimento augusto de uma família carenciada que vivia há anos sob o jugo de um capataz do Sr. Champalimaud, compondo de seguida, atingido pela forte emoção de se auto-constatar um bravo, um conjunto de versos de que ainda hoje Harold Bloom fala.

terça-feira, dezembro 14, 2010

A Sr.ª D.ª Maria de Lourdes Modesto explica, entre outras coisas, um dos fundamentos do conservadorismo

“O Joaquim Figueiredo dizia-me que era mais difícil fazer o que eu faço do que a cozinha moderna. Por causa da memória. É dificílimo reconstruir o gosto da comida da mãe, da tia ou da avó. Houve um tal exagero e tais abusos por toda a gente em desatar a fazer cozinha de autor que, muitas vezes, esta se resume a uma pintura, e de má qualidade.”

Entrevista à revista LER, Março de 2010.


segunda-feira, dezembro 13, 2010

O cantinho do hooligan *

(* com a devida vénia ao Francisco José Viegas)

Como eborense, resta-me a consolação de que o Juventude de Évora teve «melhor» resultado que o Benfica, na deslocação ao Porto.

sábado, dezembro 11, 2010

O João Marcelino é que sabe

A defesa apaixonada do Wikileaks feita por João Marcelino, parte do seguinte pressuposto: tudo às claras, desde que não toquem nas minhas fontes e nas minhas conversas «off the record». Ou seja, na minha (dele) esfera privada ninguém toca. Porquê? Porque, tenho a certeza, João Marcelino decreta-la-á de desinteresse público. Critério dele, claro. Os «arautos da verdade» são os outros, que têm «preconceitos», «medos» ou «dependências». O João Marcelino, não. O director do DN afasta-se, assim e em definitivo, da seita dos «arautos» quando decreta: tudo é do interesse público e ninguém tem o direito de decidir o que não é. A Verdade do João Marcelino está, definitivamente, acima das verdades dos «arautos».

Muito bem: eu acho (bom, se calhar não posso achar nada, se o João Marcelino me decretar um «arauto») que é do interesse público saber até que ponto João Marcelino e o jornal que dirige é permeável e conivente com o poder instituído. Há muito que se lança esse terrível anátema sobre a direcção de um importante jornal nacional. Tenho um amigo hacker que, para a semana, vai prestar um inestimável serviço à liberdade de expressão, sacando todos os emails trocados entre o director, chefes de redacção e jornalistas do Diário de Notícias, e membros ou assessores de imprensa do governo.

Pode ser João Marcelino? Não há limites, pois não? Óptimo.


PS: João Marcelino invoca «preconceitos» e «dependências». É a saída fácil: as «dependências» e os «preconceitos» têm mau nome na praça. Quem se atreve a desdizer um clamor por mais objectividade e independência? João Marcelino ignora, esquece ou desvaloriza um «pequeno» pormenor: toda a civilização ocidental assenta (no sentido de condição necessária) em preconceitos e dependências. Exemplo: o papel de escrutínio do poder (económico e político), atribuído ao jornalismo, parte de um preconceito: o de que o poder corrompe, perverte, tende para a dissimulação. Ou seja, há preconceitos e preconceitos. Ou como disse Mark Twain, “I know I am prejudiced on this matter, but I would be ashamed of myself if I were not.” O problema é que a questão Wikileaks tem muito pouco que ver com «preconceitos» ou «dependências». Tem que ver com a arrogante e egoísta tendência dos que, em nome do «racionalismo» e da «verdade» (a sua verdade, auto-validada), fazem tabula rasa de valores, conceitos (não preconceitos) e preceitos de ordem moral que, até há bem pouco tempo, se consideravam «absolutos» por via da aceitação colectiva e tácita de realidades metafísicas: a privacidade; o sigiloso; a hipocrisia ao serviço do civismo e das convenções sociais. Discutir as revelações do Wikileaks sem perceber que há coisas que interessa saber, outras que nem por isso e outras que importa não revelar, é não perceber nada.


O espírito dos tempos

Acabou de ser lançada a Coca-Cola Zero Sem Cafeína. Espera-se, para breve, o lançamento da Coca-Cola Zero Sem Cafeína Incolor, seguida da Coca-Cola Zero Sem Cafeína Incolor com Ómega-3, seguida da Coca-Cola Zero Sem Cafeína Incolor com Ómega-3 e Cálcio. Tenho a certeza: vamos todos viver mais uns meses à conta disto.


A resposta à réplica

Excelente réplica, que agradeço, de João Amaro Correia, ao meu post sobre arquitectura. Agradeço, em particular, a forma condescendente como o João (que é arquitecto) «malha» num leigo que se atreveu a trilhar territórios escorregadios.

Começo por responder ao suposto «erro inicial de atribuir à arte (pintura, escultura) o estatuto supérfluo [luxos?]». Mea culpa. Faltam, obviamente, as aspas na palavra «luxos» (que aproveito para acrescentar, para que não haja equívocos; a pintura e a escultura não são disciplinas ou artes supérfluas). O sentido do que pretendia dizer é simples: um quadro ou uma pintura são realidades que se insinuam numa dimensão extremamente restrita. Dito de outra forma, um mau escultor ou um mau pintor dificilmente condicionará a vivência orgânica e funcional dos espaços públicos ou semi-públicos, por parte dos cidadãos, e o impacto estético da sua obra será, digamos, tendencialmente privado e não invasivo. Quando muito, prejudicar-se-ão a si próprios, correndo o risco de não reconhecimento ou chacota. Mas, repito, estarão longe de deixar uma marca indelével e inescapável no dia-a-dia de centenas ou milhares de cidadãos, sobretudo no que respeita à função/funcionamento do seu ‘output’ artístico. Dito ainda de outra forma, o impacto negativo de um mau pintor ou de um mau arquitecto sobre a vida (colectiva) em sociedade, não são comparáveis: se o primeiro pintar um quadro «feio» e, digamos, insignificante, grande mal não virá ao mundo; se o segundo, com a sua equipa multidisciplinar, projectar um bairro com ruas acanhadas, ausência de árvores ou espaços verdes, casas mal iluminadas, volumetria pesada e monocórdica, materiais não apropriados para as amplitudes térmicas, escadas íngremes, acessos para pessoas deficientes insuficientes, é a própria vida das pessoas que sairá prejudicada. Dito ainda de outra forma (prometo que será a última): os arquitectos não se podem dar ao «luxo» de extravagâncias ou experimentalismos sem atender a toda uma parafernália de exigências mínimas cuja inobservância influenciará negativamente e por muitos e bons (neste caso maus…) anos a vida «concreta» das pessoas. O betão não se varre com facilidade.

Aceito o reparo do João, quando refere que o meu texto acaba a confundir arquitectura e construção. «É que a arquitectura é, também, construção, o contrário nem sempre é verdade», escreve o João. É um facto: muito do que se vê por aí construído não tem o cunho de um arquitecto (nem sequer de um desenhador). E diz o João, também com alguma razão, que algum do ‘output’ arquitectónico visível foi alvo do «escrutínio do poder política, via autarquias», ou seja, que muitas vezes o papel do arquitecto é instrumental no caciquismo: quem paga é quem manda; e quem manda, manda assim (por vezes mal) e não assado (desejavelmente bem). Tudo isto pode ser verdade, mas o João terá que concordar que, na maior parte dos casos, hoje em dia a liberdade criativa que é dada aos arquitectos é imensa (se não mesmo total), e que são os próprios arquitectos que aproveitam a encomenda, mesmo que condicionada por ditames genéricos (ou se quiserem, de ordem política, demográfica, etc.), para «mostrar serviço», i. e., para forjar a «espectacular e definitiva» obra que preencherá o desígnio de, recorro às palavras do João, «devolver, pela arquitectura, a felicidade a todos os indivíduos.» Não estou convencido, e o João também o reconhece, que a assumpção desse suposto desígnio seja, por sí só, uma garantia (apriorística) de qualidade e competência. De boa vontade está o mundo cheio. Do que estamos a falar é da necessidade de escrutínio público a que os arquitectos devem estar sujeitos. Para benefício, saliente-se, dos próprios. Eu, que em matéria de arquitectura sou um leigo (provavelmente alguns me acharão uma «besta quadrada»), tenho a liberdade de escrever sobre um tema que, não dominando, me diz respeito, na qualidade de cidadão, munícipe, utente, etc. Lá está: o carácter inescapável da arquitectura promove-me a parte interessada. E os arquitectos não devem recear que assim seja. Dou o exemplo do projecto «Acrópole XXI», para o coração do Centro Histórico de Évora. Não desvalorizando o mérito de algumas soluções propostas, a verdade é que a primeira versão do projecto, da autoria do (excelente) arquitecto Nuno Lopes, acabou «chumbada» por força, também ou sobretudo, das associações civis e da generalidade dos cidadãos que, chamados a pronunciar-se, torceram o nariz. Não estou com isto a defender que todo e qualquer projecto arquitectónico de cariz público (ou semi-público), deva ser objecto de plebiscito. Digo apenas isto: aos arquitectos cabe a tomada de consciência de que a sua produção artística nem sempre se pode reger por critérios egoístas, próprios de quem pensa ser o dono da verdade. Em nome da vaidade ou da presunção que a suposta intenção de «devolver, pela arquitectura, a felicidade a todos os indivíduos» acaba por desencadear no espírito e na mente do arquitecto (alguns acham-se personagens ‘larger than life’), foram cometidos autênticas barbaridades arquitectónicas que, ainda hoje, marcam a paisagem, pela negativa, e tornam «infelizes» os que habitam, utilizam, fruem ou meramente observam a obra.

O elogio ao João Trindade acabou por ser «particular» num post que tocou em questões mais abrangentes. Um (o elogio) e outro (o papel dos arquitectos) foram pretextos recíprocos.

“O sistema está em crise"

Aonde quer ou pode chegar um ‘opinion maker’ que profira esta frase? A lado nenhum.


“E pensei: despacho-o já ou será que deixei a espingarda lá em baixo?”

“Acordei com um pássaro a saudar a greve”. Foi assim que o candidato Manuel Alegre se dirigiu ao povo no twitter, para comentar a greve do passado dia 24. É provável que o candidato Manuel Alegre seja pulverizado pelos resultados eleitorais de 23 de Janeiro de 2011 e que, em resultado disso, desapareça por tempo indeterminado do nosso convívio. O que é uma pena. Vou ter saudades da forma sensível como Manuel Alegre observa a realidade; como ele faz questão de demonstrar que a política convoca no seu espírito a espiritualidade (passe o pleonasmo) e a poesia de um estadista. Ao contrário do outro, claro, que é economista (logo mesquinho e unidimensional no que respeita ao conhecimento), de direita (logo insensível e feito com o «sistema»), consta que nunca terá escrito um livro de poesia (logo um impotente do sentimento) e, last but not least, mastiga o bolo rei com a boca aberta (logo um incorrigível rústico). O que é que a política e o país têm que ver com isto? Não faço a mais pálida ideia.

sexta-feira, dezembro 10, 2010

What...

da fuck, Filipe?

Allegro Vivace



Mais valia estar calado

Ouvi, há minutos (no noticiário da TSF), Miguel Vale de Almeida justificar a sua renúncia ao cargo de deputado da nação. Bem descodificada, a razão do agora preterido cargo era uma: casar-se. Estamos entendidos.

O elogio de um arquitecto

O Auberon Waugh disse um dia “all architects should be executed, on principle”. Esta evidência empírica e indutiva, está intimamente ligada a um facto irredutível: a arquitectura é uma «arte» inescapável. Não há como não dar por ela, assim como não há forma de escapar ao que ela tem, ou não tem, para dar (os edifícios, ao contrário de um quadro ou de uma escultura, não são «luxos»: são necessidades – e como tal têm de, ou devem, funcionar). A obra de um arquitecto pode não ser a mais perene das produções do homem, mas uma vez erigida é certamente a que mais se insinua, de forma continuada, sobre as retinas dos vastos e heterogéneos rebanhos humanos.

Se colocarmos a afirmação do saudoso Auberon no seu devido contexto (época em que foi proferida; estilo e génio literários), depressa compreendemos a razão da ‘fatwa’: o International Style, os pronunciamentos dos CIAMs, o brutalismo, o «less is more» (que Robert Venturi tão bem parodiou com o seu «less is bore»), a associação de «princípios sociais» ao planeamento urbano e arquitectónico. E por aí fora. Yes, folks, o século XX foi bem catita na sedimentação do carácter mítico dos arquitectos e na aura de respeitabilidade do seu papel na existência humana. Para o bem e para o mal, o século passado funcionou como uma espécie de caleidoscópio de experiências e doutrinas arquitectónicas associadas, para delírio dos «artistas», a desígnios sociais de carácter progressista – conducentes, por sua vez, à aurora de um admirável mundo novo. Não é de admirar. Os arquitectos – todos os arquitectos – têm consciência de que, com o seu traço, marcam a paisagem; com as suas soluções arquitectónicas, condicionam a mobilidade e a forma como as pessoas fruem e tiram partido dos espaços; com os seus ‘diktats’ de pendor sociológico e/ou político (não raras vezes enviesados), podem marcar por muitas gerações a vida de um bairro ou de uma cidade. A produção intelectual de um arquitecto, quando materializada, é por definição e na prática maximalista. A vertigem para a jactância é inebriante.

Se tenho um problema com arquitectos? Em geral, não. Tenho, é verdade, problemas sérios com algumas correntes da arquitectura (incluindo correntes que, ainda hoje, por via da sua intocabilidade, põem a salivar qualquer recém-licenciado). Tenho problemas insanáveis com algumas soluções estéticas apresentadas, à época (algumas ainda hoje), como puro génio. Tenho um problema, ou, se quiserem, neste caso, um «preconceito» com a teimosia e a presunção que muitas vezes percorre, em abundância, as veias da generalidade dos arquitectos (generalizo, eu sei). De maneira que não me é difícil invocar a frase de Auberon Waugh, e brindar ao seu acutilante ‘wit’, quando passeio pela Malagueira, em Évora (que hoje em dia se desculpa, em certos meios mais eruditos, como o resultado de um «desvirtuamento» da ideia original); ou quando, na Av. Eng. Duarte Pacheco, observo as Amoreiras; ou quando percorro Telheiras (ou Massamá); ou quando observo, ao longe, a arquitectura de certos dormitórios das zonas metropolitanas de Lisboa e Porto, certamente inspirados na arquitectura do Leste Europeu (triste, deprimente, monocórdica, condenada a uma decadência indigente), por sua vez filha (bastarda?) do modernismo do Sr. Corbusier ou do Sr. Gropius; ou quando observo os blocos habitacionais em Brasília, inspirados pela «ideologia» do planeamento urbano, forjada na Carta de Atenas de 1933.

Vem isto a propósito do quê? Pois bem: queria fazer o elogio de um arquitecto (incrível, não é?). Chama-se João Maria de Paiva Ventura Trindade (ou simplesmente João Trindade). Está aqui o CV, para quem gosta de perscrutar percursos académicos. E está aqui o link para a página oficial do seu atelier. Nasceu em Évora, em 1972. Recentemente, ganhou o mais prestigiado prémio ibérico de arquitectura.

Desconheço a opinião do João sobre o Corbusier, o Gropius, o Lúcio Costa, o Niemeyer ou o van der Rohe. Desconheço o seu posicionamento sobre as mais diversas correntes de arquitectura. Provavelmente, gostará do que eu apontei como negativo. Não sei. Sei apenas uma coisa: as obras (de raiz) e as intervenções (de reabilitação) de sua autoria, enchem-me as medidas. O trabalho do João, embora «modernista» (cf. Estação Biológica do Garducho, em Mourão) e por vezes «radical» (cf. casa na Quinta do Evaristo, em Évora), encerra em si um cunho de bom senso e razoabilidade que tem impedido o desaparecimento de um sentimento de prazer estético que deveria estar sempre presente em qualquer obra arquitectónica, sendo certo que o João não é um escravo do «desenho» ou da «forma» (dito de outra forma, a estética e a forma não são para ele um fim, mas um meio «orgânico»). Há um ‘feel good effect’ quando visitamos os «seus» espaços, não raras vezes ausente em boa parte dos projectos de arquitectura que por aí pululam, que se intensifica com a vivência dos mesmos.

Apesar de complexas e elaboradas, as soluções de arquitectura do João apresentam-se, aos nossos olhos (olhos de leigo), simples, mas não pobres; de aspecto (recorrendo à palavra da moda) ‘clean’, mas não monótono ou triste; o contributo da luz/luminosidade (exterior e interior), é observado ao pormenor, jogando com os nossos sentidos; os materiais usados são por vezes os tradicionais, embora assumindo papéis improváveis ou até mesmo insólitos (o recurso às travessas de madeira das linhas ferroviárias é recorrente). E o bom gosto – essa expressão subjectiva que o mundo aparentemente decretou indiscutível, apesar de passar o tempo todo a debatê-la – tem uma presença de peso: não há uma ponta solta que possa levar o mais intrépido dos estetas a levantar o sobrolho num espasmo de dúvida. Para além disso, nunca conheci arquitecto mais simpático, ‘low profile’ e, digamos, humilde.

Por tudo isto, meu caro Auberon: poupemos este.

quarta-feira, dezembro 08, 2010

Vem aí o Natal








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