O elogio de um arquitecto
O Auberon Waugh disse um dia “all architects should be executed, on principle”. Esta evidência empírica e indutiva, está intimamente ligada a um facto irredutível: a arquitectura é uma «arte» inescapável. Não há como não dar por ela, assim como não há forma de escapar ao que ela tem, ou não tem, para dar (os edifícios, ao contrário de um quadro ou de uma escultura, não são «luxos»: são necessidades – e como tal têm de, ou devem, funcionar). A obra de um arquitecto pode não ser a mais perene das produções do homem, mas uma vez erigida é certamente a que mais se insinua, de forma continuada, sobre as retinas dos vastos e heterogéneos rebanhos humanos.
Se colocarmos a afirmação do saudoso Auberon no seu devido contexto (época em que foi proferida; estilo e génio literários), depressa compreendemos a razão da ‘fatwa’: o International Style, os pronunciamentos dos CIAMs, o brutalismo, o «less is more» (que Robert Venturi tão bem parodiou com o seu «less is bore»), a associação de «princípios sociais» ao planeamento urbano e arquitectónico. E por aí fora. Yes, folks, o século XX foi bem catita na sedimentação do carácter mítico dos arquitectos e na aura de respeitabilidade do seu papel na existência humana. Para o bem e para o mal, o século passado funcionou como uma espécie de caleidoscópio de experiências e doutrinas arquitectónicas associadas, para delírio dos «artistas», a desígnios sociais de carácter progressista – conducentes, por sua vez, à aurora de um admirável mundo novo. Não é de admirar. Os arquitectos – todos os arquitectos – têm consciência de que, com o seu traço, marcam a paisagem; com as suas soluções arquitectónicas, condicionam a mobilidade e a forma como as pessoas fruem e tiram partido dos espaços; com os seus ‘diktats’ de pendor sociológico e/ou político (não raras vezes enviesados), podem marcar por muitas gerações a vida de um bairro ou de uma cidade. A produção intelectual de um arquitecto, quando materializada, é por definição e na prática maximalista. A vertigem para a jactância é inebriante.
Se tenho um problema com arquitectos? Em geral, não. Tenho, é verdade, problemas sérios com algumas correntes da arquitectura (incluindo correntes que, ainda hoje, por via da sua intocabilidade, põem a salivar qualquer recém-licenciado). Tenho problemas insanáveis com algumas soluções estéticas apresentadas, à época (algumas ainda hoje), como puro génio. Tenho um problema, ou, se quiserem, neste caso, um «preconceito» com a teimosia e a presunção que muitas vezes percorre, em abundância, as veias da generalidade dos arquitectos (generalizo, eu sei). De maneira que não me é difícil invocar a frase de Auberon Waugh, e brindar ao seu acutilante ‘wit’, quando passeio pela Malagueira, em Évora (que hoje em dia se desculpa, em certos meios mais eruditos, como o resultado de um «desvirtuamento» da ideia original); ou quando, na Av. Eng. Duarte Pacheco, observo as Amoreiras; ou quando percorro Telheiras (ou Massamá); ou quando observo, ao longe, a arquitectura de certos dormitórios das zonas metropolitanas de Lisboa e Porto, certamente inspirados na arquitectura do Leste Europeu (triste, deprimente, monocórdica, condenada a uma decadência indigente), por sua vez filha (bastarda?) do modernismo do Sr. Corbusier ou do Sr. Gropius; ou quando observo os blocos habitacionais em Brasília, inspirados pela «ideologia» do planeamento urbano, forjada na Carta de Atenas de 1933.
Vem isto a propósito do quê? Pois bem: queria fazer o elogio de um arquitecto (incrível, não é?). Chama-se João Maria de Paiva Ventura Trindade (ou simplesmente João Trindade). Está aqui o CV, para quem gosta de perscrutar percursos académicos. E está aqui o link para a página oficial do seu atelier. Nasceu em Évora, em 1972. Recentemente, ganhou o mais prestigiado prémio ibérico de arquitectura.
Desconheço a opinião do João sobre o Corbusier, o Gropius, o Lúcio Costa, o Niemeyer ou o van der Rohe. Desconheço o seu posicionamento sobre as mais diversas correntes de arquitectura. Provavelmente, gostará do que eu apontei como negativo. Não sei. Sei apenas uma coisa: as obras (de raiz) e as intervenções (de reabilitação) de sua autoria, enchem-me as medidas. O trabalho do João, embora «modernista» (cf. Estação Biológica do Garducho, em Mourão) e por vezes «radical» (cf. casa na Quinta do Evaristo, em Évora), encerra em si um cunho de bom senso e razoabilidade que tem impedido o desaparecimento de um sentimento de prazer estético que deveria estar sempre presente em qualquer obra arquitectónica, sendo certo que o João não é um escravo do «desenho» ou da «forma» (dito de outra forma, a estética e a forma não são para ele um fim, mas um meio «orgânico»). Há um ‘feel good effect’ quando visitamos os «seus» espaços, não raras vezes ausente em boa parte dos projectos de arquitectura que por aí pululam, que se intensifica com a vivência dos mesmos.
Apesar de complexas e elaboradas, as soluções de arquitectura do João apresentam-se, aos nossos olhos (olhos de leigo), simples, mas não pobres; de aspecto (recorrendo à palavra da moda) ‘clean’, mas não monótono ou triste; o contributo da luz/luminosidade (exterior e interior), é observado ao pormenor, jogando com os nossos sentidos; os materiais usados são por vezes os tradicionais, embora assumindo papéis improváveis ou até mesmo insólitos (o recurso às travessas de madeira das linhas ferroviárias é recorrente). E o bom gosto – essa expressão subjectiva que o mundo aparentemente decretou indiscutível, apesar de passar o tempo todo a debatê-la – tem uma presença de peso: não há uma ponta solta que possa levar o mais intrépido dos estetas a levantar o sobrolho num espasmo de dúvida. Para além disso, nunca conheci arquitecto mais simpático, ‘low profile’ e, digamos, humilde.
Por tudo isto, meu caro Auberon: poupemos este.
1 Comentários:
http://sub--real.blogspot.com/2010/12/opiniao-publica.html
obrigado pelo pretexto.
j
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