O MacGuffin: outubro 2012

quarta-feira, outubro 31, 2012

Desde que nascemos

Miguel Esteves Cardoso, Público 31/10/2012

O medo de verdade 
"Há uma imagem que me dá pesadelos e que me assusta tanto que me custa olhar para ela: é o Perro Semihundido, de Goya. Evite vê-lo, se puder. 
O medo é uma coisa fácil de mostrar mas difícil de fixar. O cão semiafogado de Goya, à beira de morrer afogado, tem os olhos abertos a olhar para a massa de água que o vai matar. 
Os cães têm medo muitas vezes. Mas este sabe que vai morrer. É este o último momento de vida: a vida suficiente para saber ter medo do que lhe vai acontecer. 
Na noite das bruxas brinca-se com os sustos. Os sustos não dão tempo para ter medo. Para ter medo é preciso tempo. É preciso um momento parado, como aquele durante um acidente violento de automóvel, em que o tempo, por crueldade, se alenta, para que possamos contemplar o horror que aí vem, que já não pode ser evitado, que parece fazer render o já ser tarde de mais para fazer qualquer coisa. 
Quando se tem mesmo medo, não se consegue fechar os olhos. O cão de Goya tem os olhos bem abertos. É o único ser vivo. O resto são coisas brutas que não sabem o que fazem, que nem o prazer de matar têm. 
Há muitas interpretações do mural de Goya mas nem sequer interessa se o cão está à beira da morte, seja por afogamento, seja por outra razão. O que importa é a aflição de quem olha para a cabeça daquele cão e imediatamente a reconhece. É por isso que faz medo: não ameaça nem assusta. Declara uma condição que um dia será a nossa, mas de que já temos medo desde que nascemos."

terça-feira, outubro 30, 2012

Quero uma t-shirt da Lusa

A edição n.º 113.201.002 do Prós & Contras, trouxe à colação o jornalismo.

Presentes: jornalistas, dois professores universitários, jornalistas, o plesidente do Observatório da Imprensa, jornalistas, o plesidente do Sindicato dos Jornalistas e, salvo erro, jornalistas. Gestores ou administradores de órgãos de comunicação? Leitores de jornais, interessados em discutir o tema? Ninguém dessas bandas. A meia-hora de programa, percebeu-se a razão: para a generalidade dos presentes, estabeleceu-se e lavrou-se em acta o entendimento de que o jornalismo é uma actividade sacrossanta, etérea, acima de tudo e de todos, cujos ritos, formas e manifestações se devem exercitar num plano superior à lufa-lufa dos impios mercados e a salvo da ralé das redes sociais, dos blogues e derivados (a qual fará a si própria, se tiver juízo, o favor de rejeitar o regabofe em que anda metida).

Jornalismo, claro está, produzido por gente que sente, pressente e não rejeita, o desígnio grave e divino de estabelecer de um modo seguro e sublime o nosso domínio sobre a substância. Seres, portanto, a preservar, de preferência em atmosfera protegida, e a salvar em caso de ataque nuclear para além do que é humano e vegetativo.

Houve, é claro, excepções: Joaquim Vieira, Pedro Santos Guerreiro e, a espaços, António Costa, tentaram recentrar a discussão num plano, digamos, menos tonto. Um plano, pasme-se, virado para os destinatários do jornalismo: os leitores ou telespectadores.

Pelo caminho, São José Almeida aproveitou para cumprimentar e felicitar os senhores patrões que lhe dão guarida, numa atitude tremendamente tocante, à medida que alertava para os perigos da internet-alienante; José António Cerejo e Pedro Santos Guerreiro abordaram a problemática do «medo» que assola as redacções deste país (muito prosaicamente: o inédito medo de perder o emprego); um dos professores universitários conjecturou sobre a problemática da «mercantilização» do jornalismo (penso que terão distribuído na plateia o dicionário «Gramsci para iniciados»); o outro professor universitário quer as criancinhas a aprender a importância do jornalismo, desde tenra idade (alvíssaras a quem avançar com o método).

A sério: quero acreditar que «aquilo» a que assistimos, não representa a maioria dos jornalistas portugueses. Que as redacções vivem sobretudo do esforço e do trabalho de gente descomplexada, actualizada em relação ao mundo e livre de corporativismos bafientos. Gente ciente da importância do jornalismo nas democracias, mas humildemente conscientes de que o importante são os leitores, e não uma classe. E que o fundamental, at the end of the day, é saber que, no dia seguinte, se tentará fazer melhor - sem autocomiseração, soberba ou enfatuação. De calimeros e pavões estamos todos mais ou menos fartos.

segunda-feira, outubro 29, 2012

É gordura, é. Da entremeada.

É preciso ser-se um pouco tonto, distraído ou marimbista para desentender o que são as «gorduras» do Estado. Não são, como alguns pensam ou insinuam, uma classe arrumadinha de despesas, mais ou menos identificada e estanque, que um qualquer plano Fairy fará o favor de remover.

Como num bom naco de bochecha de porco preto (perdoem-me a suína imagem), a «gordura» encontra-se entremeada nas múltiplas esferas do funcionalismo público: em sectores ditos «incontornáveis», como a saúde, a justiça ou a educação, mas também na administração central e, acima de tudo, nas administrações municipais.

Combater as «gorduras» é, por isso, combater o desperdício, as redundâncias e o que não faz sentido existir ou patrocinar (seja a ordem de grandeza simbólica, grave ou assim-assim). É trabalho de minucia, paciente e moroso, que exige, preferencial e aprioristicamente, uma ideia de reforma – a qual, por sua vez, não tem «só» de rimar com «cortar».

Esta coisa dos impostos estaria muito bem, sim senhor, se pelo caminho se arregimentasse uma infanteria de reformas que viesse a criar condições para que duas coisas vissem a luz do dia nesta ponta europeia, se possível sob o patrocínio do Altíssimo (amém): a reversão dos impostos (por uma vez na vida) e a melhoria da prestação dos serviços básicos que, um dia (uns portugueses mais que outros, é verdade), entendemos entregar ao Estado.

Já quanto à discussão sobre o papel do Estado - velha como a Sé de Braga, mas igualmente fundamental quando se discutem reformas -, teremos de a remeter para momento oportuno, não venha a ser acusado de insensibilidade social ou de promover inconstitucionalidades.

Vercauteren, François? A ver vamos.


segunda-feira, outubro 22, 2012

Proponho-me fazer uma comparação de levantar o sobrolho aos senhoresdoutores (da academia, da cruz e do arado)

Num dos vastos territórios onde exerço a minha magistratura de influência – o Twitter – dei por mim a alternar gordíssimos argumentos com um jovem tuiteiro sobre… judeus. A certa altura da altercação, o jovem tuiteiro aliviou-se, de uma forma que me pareceu generosa, da seguinte constatação: sim, de facto, efectivamente e em concreto, os judeus não tiveram uma vidinha fácil ao longo dos séculos (paráfrase minha).

Estacionado o argumento – muito bem, aliás, arrumadinho, a poucos milímetros do lancil e aprumado com a restante fila argumentantiva – o meu amigo tuiteiro achou por bem acrescentar – numa daquelas típicas atitudes «estou a dar-te razão mas toma lá uma canelada para não te ficares a rir» - qualquer coisa do género «embora com aquela história da agiotagem se tivessem posto a jeito».

Da Tora, Êxodo 22:24: «Quando emprestares dinheiro ao Meu povo, com o pobre que está junto de ti não actues como credor, nem lhe exijas juros»; Levítico 25:36: «Não tenhas para com ele [o vosso irmão] juros ou lucros»; Deuteronómio 23:20: «Não farás com que o teu irmão pague juros, juros de dinheiro ou juros de comida ou juros de qualquer outra coisa que possa tomar com juros».

Os judeus carregaram fundo na usura? É verdade. Mas apenas circunstâncias muito especiais os conduziram a instituir como corrente uma prática cuja Lei Divina considerava negativa - mesmo levando em conta a distinção entre «irmãos» e «gentios».

Só por desconhecimento ou má-fé (no caso de se ter o conhecimento) se pode descontextualizar as razões que conduziriam a colar ao judeu a prática generalizada da usura. Em primeiro lugar, porque o juro era sinónimo de hostilidade – hostilidade para com aqueles que o oprimiam, quer pela perseguição e morte, quer pela proibição do exercício de determinadas actividades comerciais.

Em segundo lugar, porque a usura era, ela própria, fomentada pelos que oprimiam financeiramente os judeus. Quanto maior a usura, maior a colecta de reis e ministros, por via de tributos impostos de forma discricionária.

Em terceiro lugar, porque a usura era, muitas vezes, a única fonte de rendimento, aceite de forma mais ou menos tácita por todos os players não judeus – que, como referi, dela também beneficiavam.

Vamos lá ao salto argumentativo (supimpa): um povo que se sente financeiramente oprimido, encontrará sempre formas alternativas de «sobrevivência» que o libertem do jugo - ainda que, pelo caminho, se violem princípios de ordem moral. Falo de impostos. Falo do que aí vem.

É feio, imoral, horrível fugir aos impostos? É. Mas quando o imposto – pela sua dimensão e alcance – é sinónimo de saque por parte de quem tarda em revelar-se uma «pessoa de bem», não esperem do povo respeitinho nem, digamos, sentido deontológico.

Dito de outra forma: a evasão fiscal e a chamada «economia paralela» vão disparar. A partir de 31 de Janeiro de 2013. O dia do primeiro recibo de vencimento da era «napalm» (ou o que lhe quiserem chamar).


sábado, outubro 20, 2012

E, de repente, a crise política

Ou talvez não. A jovem democracia portuguesa parece acordar para um facto ainda desconhecido: governos de coligação, em épocas de crise, são caracterizados por uma «dialéctica» (usemos um termo querido à esquerda) particularmente viva. Mais: parece cada vez mais claro que a direita não é toda igual (havia um mito português em torno da suposta «homogeneidade» ideológica dos partidos de direita, guiados invariavelmente pelos esconjurados «interesses» económicos).

Tanto quanto sei – admito estar enganado -, uma coligação é formada por dois ou mais partidos cuja sintonia e harmonia são inversamente proporcionais à dimensão das crises económicas e à imaturidade das criaturas que a compõem.

Bem sei que, num mundo ideal, devia ser ao contrário: o agigantar das crises deveria suscitar maior coesão e um módico de sentido de responsabilidade – ou, pondo as coisas de forma mais comezinha, juizinho. Ora, o mundo tende a ser um pouco avesso a idealismos, sobretudo quando em presença de crises pouco menos que bíblicas.

É claro que a trupe comentadeira anda histérica com a perspectiva de golpadas palacianas, vichyssoises servidas a altas horas da madrugada, farpas avulsas e a lufa-lufa das «fontes» (do Caldas à Lapa). Observem-se Luis Delgado e Pedro Marques Lopes: estão de cabeça perdida. E até os mais ponderados abraçaram o toque tremendista da portuguese school of commentary.

A sério: tenham juízo. Todos.

sexta-feira, outubro 19, 2012

Good as the corn

Miguel Esteves Cardoso, no Público 19/10/2012:
Portuguese dictations

"Sou um leitor compulsivo do P3 - as chamadas são bem feitas mas o que interessa é que as idas são bem recompensadas.

Um texto sobre a página Portuguese Sayings de Luís Santos no facebook acaba assim: "Em resumo: "It's good wave". Os comentários de leitores do P3 estão à altura. Faça-se o elogio dos comentadores do PÚBLICO online, tantas vezes rotineiramente malditos, esquecendo a boa maioria. Paulo Vieira lembrou o clássico, inventado por Herman José: "You are here, you are eating". Há vinte e tal anos atrás, quando eu e o Alberto Castro Nunes também compilámos uma lista de Portuguese dictations, ainda era preciso, quando publicávamos as nossas rebuscações, citar o provérbio original, em língua portuguesa.

Hoje os portugueses sabem muito mais inglês e assim tem mais graça, a partir da tradução inglesa, adivinhar o ditado original. De Fernando José Rodrigues: "Bad Mary, bad Mary!". De Rita Oliveira: "Bread bread, cheese cheese". De Miguel Proença: "You're as flat as potassium hydroxide" ("és chato como a potassa"). De Carlos Azevedo: "I don't see a point of horn". Na página do facebook há a vantagem das ilustrações novecentistas. Diz uma dama prostrada diante um cadeirão: "He doesn't go with my face!". As verdadeiras pérolas vêm das expressões que são, já de si, estranhas, como "Tanto se me dá, como se me deu": "So much is given to me as I gave to myself". Parecem máximas da mais simplória filosofia Zen.

Or, in the return, no..."

quinta-feira, outubro 18, 2012

I was happy in the haze of a drunken hour

Têm razão os que dizem que há um problema de fundo chamado «euro». Têm razão os que dizem que não há margem de manobra (para a governação) e que há muito cinismo na oposição. Têm razão os que apelidam as medidas anunciadas de «esbulho» ou «terramoto» fiscal. Têm razão os que dizem que o governo não pode limitar-se a ser o guarda-livros da troika. Têm razão os que dizem que o problema português é, sobretudo, de organização e gestão internas. Têm razão os que dizem que a Europa chegou a um impasse. Têm razão os que criticam a forma despiciente como, durante anos, se observou o problema da divida externa. Têm razão os que dizem que a governação de José Sócrates contribuiu em boa parte para o actual estado de coisas. Têm razão os que dizem que não podemos assacar culpas apenas a José Sócrates. Têm razão os que apontam o dedo à eterna tendência de tapar buracos com impostos. Têm razão os que dizem que, em Portugal, o Estado gasta sempre mais do que tem, e quanto mais tem mais gasta. Têm razão os que criticam a fuga ao fisco e consideram o seu efeito muito negativo nas contas públicas. Têm razão os que fogem aos impostos porque entendem que o seu dinheiro é desbaratado de forma impune. Têm razão os que acham que, por muito simbólicas que sejam as medidas, o Estado, o governo e o parlamento deviam dar um exemplo de contenção e parcimónia, caso pretendam continuar a exigir mais sacrifícios. Têm razão os que dizem que a UE é uma manta de retalhos colados a cuspo, gerida por eurocratas sem legitimidade política. Têm razão os que consideram criminoso o corte nas reformas por velhice. Têm razão os que dizem que o Estado Social, tal como o conhecíamos, morreu. Têm razão os que acham que é atentatório da dignidade humana esperar anos por uma operação, meses por uma consulta ou oito horas numa sala de espera de um hospital para se ser atendido. Têm razão os que dizem que turmas de trinta ou mais alunos nunca poderão ser palco de um ensino de qualidade. Têm razão os que entendem que o ajustamento das nossas finanças públicas é necessário, e que não há austeridade levezinha ou inócua. Têm razão os que dizem que vivemos uma geração de políticos de carreira, (mal) educados nas jotas e, por tudo isso, ignorantes e fracos. Têm razão os que dizem que, actualmente, o PS não é alternativa a nada ou a ninguém. Têm razão os que dizem que, «assim» (seja lá o que isso for), não vamos lá. E depois?

Tenham medo, tenham muito medo

José Neves, historiador e homem de esquerda: “Sobre esta crise, e como este episódio com a provável futura líder do BE denota, abre-se uma janela de oportunidade que deixa à vista, pelo menos, dois caminhos. O primeiro guarda um sentido antidemocrático e aponta a uma transição de um regime baseado em lideranças políticas para um regime de lideranças pretensamente antipolíticas de pendor tecnocrático e ou populista. O segundo abre a porta a formas de acção, discussão e deliberação políticas estranhas aos mecanismos de liderança que nos têm governado, libertando a democracia do fardo da representação.” (jornal i 27/09/2012)

Este entusiasmo (baseado em factos exacerbados) é tão Clearasil

José Neves, historiador e homem de esquerda: “No último mês e meio, por obra e graça de milhares de factores, o protesto tomou conta das cidades. Multidão atrás de multidão, manifestação atrás de manifestação, as pessoas saíram à rua, protestaram contra a actual situação e a onda ameaça avolumar-se.” (jornal i, 11/10/2012)

Jovem: o cinismo tem limites

António José Seguro está incomodadíssimo com o que se está a passar no governo. «Eles não têm o direito de fazer isto», diz o secretário-geral do Partido Socialista. «Aquilo que desejo rapidamente é que se ponha fim a este espectáculo que o Governo está a dar entre ministros e partidos que se acusam mas que deviam estar concentrados em resolver os problemas dos portugueses», acrescenta. Para quando uma lágrima, António José?

O melhor bolo de chocolate do mundo

O «esbulho fiscal» vai, brevemente, tomar a forma de lei. A lipoaspiração das gorduritas (afinal poucas, como nos garantem os especialistas) adia-se. As «reformas» (lendárias), diferem-se. Nas autarquias, ninguém parece querer tocar. No parlamento, mugem-se epítetos próprios de arena, por entre a chacota geral (gente muito espirituosa). O grupo parlamentar do PS anuncia um brutal downgrade da sua frota automóvel: de BMWs série 5, para Audis A5. Um senador proclama a ilegitimidade do governo, baseada no facto do povo chamar «ladrão» ao primeiro-ministro (como se esse senador não tivesse sido alvo de idêntica qualificação quando foi primeiro-ministro). Na imprensa, há já quem ponha em causa, com toda a naturalidade, a propriedade privada e exorte a violência (libertadora, presume-se). Na rua – ou melhor, nalgumas artérias da capital -, ladram-se injúrias, galanteiam-se agentes da autoridade, agitam-se djambés e exibem-se seios (ou, prosaicamente, «mamas»). Heroísmos de punho, queixos esmigalhados, cabeças partidas? O melhor povo do mundo.

quarta-feira, outubro 17, 2012

Eunucos e garanhões

A frase é de Tom Stoppard e reza mais ou menos assim: responsabilidade sem poder, a prerrogativa do eunuco.

Não é preciso um grande esforço para a aplicar às saliências e sublimidades que por aí pululam, quer em cargos de jure, quer em papeis de facto. Basta pensar em duas: o Dr. Pinto Monteiro e o Dr. Mário Soares. O primeiro, no lugar do eunuco. O segundo, no lugar do garanhão (tonto, é certo, mas muito vigoroso para a respectiva idade, sem que se vislumbre a sonolência de um qualquer enfartamento senil).

As notícias sobre a morte deste blogue foram manifestamente exageradas

De volta para o meu aconchego. Como têm passado?

Homilias da vacuidade

Vasco Pulido Valente, no Público de 14/10/2012

 História de uma pequena igreja

"O livro (de José Pedro Castanheira) tem 1007 páginas em letra pequena, sem contar com a lista das fontes, nem com a bibliografia, nem com o (longuíssimo) índice onomástico. Pesa 1 kilo e 600: basta dizer que fiquei com o braço dorido dos três dias que o levei a ler. O assunto ostensivo é a biografia de Jorge Sampaio até ao momento, presumivelmente crítico, em que se resolve candidatar à Câmara de Lisboa (suponho que para o resto haverá um 2.º volume). Mas, no fundo, José Pedro Castanheira acaba por fazer a história da geração de 62, mais precisamente da dúzia e meia de pessoas que se distinguiram na primeira grande guerra estudantil contra a Ditadura. E só por isso o esforço se recomenda, embora essa história seja desoladora e triste, sobretudo para mim, que assisti a parte dela e conheci quase toda a gente que nela entrou.

O grupo, muito "revolucionário", que depressa se juntou à volta de Jorge Sampaio acreditou piamente em cada baboseira ideológica, que lhe vinha de França e também de Itália. Isto assentava, como se calculará, numa ignorância abissal - de história, de filosofia, de economia e do próprio Marx - que nunca se deram ao trabalho de atenuar. Iam saltando de um erro para o próximo, com a mesma convicção e o mesmo deleite. Hoje, Sampaio sacode essa persistente peregrinação pela asneira e pela pura idiotia (que durou quase vinte anos) como um efeito inócuo da imaturidade. Mas não fala da pressão do PC e da extrema-esquerda, que ele queria reunir num "autêntico" partido socialista. De resto, os sampaístas foram sucessivamente conhecidos pelos caminhos que abandonaram e pelas derrotas que sofreram: ex-CDE, ex-MES, ex-GIS, ex-Secretariado ou qualquer outra coisa que lhes permitisse continuar à tona.

Amigo de alguns deles, detestando do coração a maioria, nunca me senti parte da família. Como no PC, viviam juntos, quase na promiscuidade. Nas férias, no trabalho, na política, ao almoço e ao jantar (tornaram célebre, por exemplo, o restaurante do Hotel Flórida). E José Pedro Castanheira, com uma paciência sobre-humana, descreve os milhares de vezes que se reuniram, em casa deste ou daquele, para discutir a intriga do dia ou futilidades sem nome e sem propósito. Eram uma igreja. Ambiciosa, ainda por cima. Mas como Sampaio, num excepcional momento de franqueza explicou, 30 amigos certos valem bem três mil militantes na rua. E, nesse ponto, acertou: não mais do que 30 amigos conseguiram que ele finalmente chegasse a Belém, onde a vacuidade final do grupo se manifestou em todo o seu esplendor."
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