SEM MEDO
(actualizado e corrigido)
Recebo diversas missivas alertando-me para facto grave: a minha opinião (contrária à convocação de eleições antecipadas) colide com a do «meu»
João Pereira Coutinho. Houve, ainda, quem me tivesse alertado para mais: a minha posição, para além de não coincidente com a de duas pessoas «muito cá de casa» (João Pereira Coutinho e Vasco Pulido Valente), segue o diapasão da direita “ortodoxa” (num caso) e da direita “dos meninos imberbes e populistas que vivem agarrados ao poder” (noutro).
Começo a habituar-me a estar arrolado, por terceiros, em grupos, capelinhas e categorias que pouco ou nada me interessam. Filosoficamente, sei que sou de direita. Mas não o sou, nem nunca o fui, por seguidismo ou por via doutrinária. Nunca fui à bola com o Sr. Ortega y Gasset mas, neste caso, tenho de o parafrasear: eu sou o que sou mais as minhas circunstâncias. Nesta matéria, como noutras, estou-me positivamente nas tintas para a posição da direita ou da esquerda ortodoxas, heterodoxas, neo-conservadoras, pós-modernistas, neo-socialistas, etc. Não penso, também, pela cabeça do João Pereira Coutinho (JPC) ou do Vasco Pulido Valente (VPV). É certo – certíssimo! – que o grau de concordância que mantenho com estes dois cronistas ultrapassa, por vezes, o limite do tolerável, no que ao pudor diz respeito. Mas, cautela: não se trata, obviamente, de uma concertação ou bajulação apriorística. As coisas não funcionam assim. Nós não passamos a pensar à JPC ou à VPV. Só os ineptos aderem incondicional e cegamente ao que dois ou três articulistas professam. O que está em causa é, tão só, uma convergência de ideias e opiniões com origem na justaposição de experiências e vivências, independentes e não correlacionadas, que ao longo da vida nos vão formando. Exemplo: não me tornei conservador quando li “On Being Conservative” de Michael Oakeshott. Mas fiquei para sempre grudado a esse ensaio porque nele estava condensada grande parte da minha forma de pensar o mundo e a vida. É bom que se perceba – e julgo poder falar pela generalidade dos que nestas andanças andam – que o aparente seguidismo às ideias de fulano tal, a acidental bajulação à obra
x ou a adesão canídea ao pensamento
y, não é tanto uma consequência ou o sinal de um contrato de adesão tácito e de princípio, a cumprir incondicionalmente. É, acima de tudo, uma identificação
a posteriori com ideias e posições que nos são próximas e com as quais já convivíamos há muito. Ou seja, eu não ando à procura de concordar com o JPC ou com o VPV para me sentir contente ou para que as minhas opiniões recebam um carimbo de “em conformidade”.
Dito isto, ou seja, pondo de parte esta gritante manifestação do meu ego, queria dizer o seguinte: o facto de defender a não dissolução do Parlamento e a não convocação de eleições antecipadas, não significa que esteja a seguir as linhas de “um Comité”. Não entendo que a defesa da nomeação de um novo primeiro-ministro sem recurso a eleições seja legítima e satisfatória só porque é “legal” ou “satisfaz preceitos constitucionais e teóricos”. Os “preceitos constitucionais” e a “ legalidade” interessam-me no sentido de confirmar se a solução que preconizo está prevista e a coberto de uma malha legal. Se o está, agrada-me pensar que o legislador tenha previsto casos em que a não dissolução do parlamento, por parte do PR, não colide necessariamente com «legitimidades políticas», fazendo parte do jogo da democracia representativa. Nada mais. As razões são outras, bem mais práticas, terrenas e, se quiserem, comezinhas.
Em primeiro lugar, existe uma maioria estável no parlamento da qual, há dois anos, emergiu um governo. Essa maioria mantém-se e foi, há dias, confirmada pelos presidentes e deputados dos dois partidos que a constituem. O governo que ainda está em funções, desenvolveu, na primeira metade desta legislatura (de quatro anos), o seu trabalho e a sua estratégia com base num programa. Esse programa, e o rumo nele preconizado, não nasceu, certamente, desgarrado dos partidos da maioria. Por muito que publiquem, agora, cartazes da campanha eleitoral com o nome de “Durão Barroso” em parangonas, o governo actual e o seu programa não foram obra de um homem só. O actual governo nasceu de dois partidos, com elementos ideológicos e de princípio distintos do anterior governo. A inflexão foi notória e as diferenças estiveram longe de ser apenas «de estilo» ou de liderança. Não foram obra e graça exclusiva do Sr. José Barroso. Colocaram-se de pé políticas que, para além de exigirem sacrifícios aos portugueses, significaram reformas (umas mais tímidas que outras) impensáveis caso o governo fosse de esquerda.
Face a tudo isto, coloco várias questões: qual é a solução que menos incertezas poderá produzir nos próximos dois anos, face à actual conjuntura? Qual a solução que pode, por muito diferente que seja o estilo, o
modus operandi ou o cunho de um novo primeiro-ministro, pegar no rumo anteriormente traçado (de contenção da despesa, de reforma do sector público, de rigor orçamental, de liberalização dos mercados, etc.)? Qual a solução que, em principio, poderá provocar menor instabilidade (não digo “nenhuma”)? Qual a solução que poderá evitar o corte abrupto?
Não julgo que a dissolução do parlamento seja, nesta altura do campeonato, a solução mais apropriada. Com isto não quero dizer que tenha a razão do meu lado ou que outra solução seja impensável ou «perigosa». Não tenho medo de eleições (até porque, se não fosse um democrata, há muito que comprei um cão). Do ponto de vista democrático, o problema da convocação de eleições nem sequer se coloca: as eleições são o elemento chave do que significa viver em democracia. Mas é bom perceber que existem consequências. Perceber isso não é ter medo: é ser realista. Nesse sentido, eu digo (dentro dos limites das minha certezas): o cenário de eleições é, na actual conjuntura e
timing, e perante as políticas entretanto preconizadas, o que acarreta maiores incertezas. Com eleições antecipadas poderá interromper-se, definitivamente, um trabalho que ficou a meio. Das eleições poderá sair um governo minoritário à esquerda ou à direita incapaz de, no parlamento, formar uma maioria parlamentar consistente e estável. O PS poderá ser forçado a coligar-se com o BE ou com o PC, cenário que, não me assustando, não vejo com bons olhos. Ao PSD poderá não ser suficiente a coligação com o CDS-PP. Ou seja, podemos passar de um impasse transitório e de eventuais reajustamentos pontuais, para um cenário de forte instabilidade política. Coligações estáveis e consistentes como a actual (ainda que com atritos pelo meio), são coisa rara.
É claro que estes argumentos nada valem à esquerda. Compreendo. A esquerda parte de um pressuposto: as políticas do actual governo não prestam. Quaisquer políticas «de direita» são piores que quaisquer políticas «de esquerda». Mais: para a esquerda, a mudança será sempre uma coisa apelativa, sobretudo se estiver no horizonte a possibilidade do exercício do poder. Mudar, romper, rasgar é, para a esquerda, sinónimo de «progresso». Compreendo, portanto, que me digam: “queremos novas eleições porque existe a probabilidade [que uns pensam ingenuamente «forte»] de daí sair um governo maioritário de esquerda”. Compreendo que me digam: “queremos eleições porque muita gente está insatisfeita e a «rua» dá sinais disso mesmo”.
Compreendo mas, se me permitem, isso não interessa. A esse argumento pode sempre responder-se com o contrário. Eu, por exemplo, penso que, em teoria, as políticas de um governo «de direita» ou de «centro direita» serão sempre melhores que as de um governo «de esquerda». Sobretudo em cenários de crise e de instabilidade.
Compreendo mas, com a devida vénia, não concordo. A dissolução de um parlamento não pode sustentar-se nos eventuais «ecos» de insatisfação popular emanados de umas eleições intercalares, de natureza e âmbito diferentes (coisa que se insiste em não perceber). Numa democracia representativa, a um governo deve ser dada a possibilidade de conduzir, dentro de um quadro de legalidade constitucional e dentro do prazo estipulado, as suas políticas para que, no fim, cada cidadão possa aferir dos seus resultados. Interromper uma legislatura a meio desresponsabiliza quem exercia o poder executivo. “Não nos deixaram acabar o trabalho”. “Interromperam o nosso programa”. “Não tivemos a possibilidade de provar que estávamos no caminho certo”.
Compreendo mas, lamento, não concordo. Um PR não tem que gerir a sua actuação em função de sondagens ou de acordo com os ecos da «rua». Os que na «rua» se manifestam não têm nenhuma procuração ou mandato para representar todos os portugueses. A «rua» das manifestações «espontâneas» não é a voz do povo. A «rua» dos comícios dos sindicatos não representa os portugueses. Mais: a verdadeira «rua» já foi auscultada há dois anos atrás. Ou seja, há muito pouco tempo.
Vivemos numa democracia representativa. Passados apenas dois anos, e à falta de uma «gravíssima crise de legitimidade democrática» (que só as indecisões e a tibieza do Dr. Sampaio parecem pressagiar), é ao parlamento que deve ser dada a faculdade de resolver a substituição de um primeiro-ministro e a indicação de um novo executivo, sem que, para isso, se tenha de interromper uma legislatura a meio. Essa é, para mim, a melhor solução. Sem medo.
PS: a postura do Dr. Jorge Sampaio começa a meter dó. Do que é que está à espera: de mais «sábios» a botar opinião? Para quê ouvir tanta gente: para ficar ainda mais baralhado? Para quê tanto tempo: para perpetuar uma situação que se agrava com o passar dos dias?