O MacGuffin

segunda-feira, julho 05, 2004

COMENTANDO COMENTÁRIOS
Carlos Fernandes, a propósito do ‘post’ sobre o Michael Moore vs. Christopher Hitchens:

”Caro Carlos,
na ausência de comentários no Contra-a-Corrente, apenas por este meio posso manifestar o meu repúdio pelo último parágrafo do "seu" texto Moore, Michael. Não vou discutir as virtudes de um filme que não vi, nem o seu carácter, o qual, no entanto, não creio que seja facilmente inserido na categoria "documentário", como muitos pretendem fazer crer. Nisso estamos de acordo. Mas não posso aceitar que Christopher Hitchens, depois de debitar tantas palavras que atacam Moore e a sua putativa desonestidade, recorra ele próprio a argumentos desonestos ou, no mínimo, reveladores de uma imensa ignorância histórica e geográfica. Não vou alongar-me sobre a situação sérvia, a tal nação esfomeada. Mas seria interessante falar um pouco sobre as negociações entre americanos e Milosevic, antes dos ataques de 1999. Também não quero, porque o tempo é curto, questionar a "limpeza" da Bósnia. Porque, se ela existiu, a responsabilidade não pode ser sacudida dos ombros daqueles que rejeitaram o plano Cutileiro. Mas usar a palavra anexar, quando se refere ao Kosovo, revela uma ignorância (ou má-fé) intolerável (em relação à Bósnia pode-se aceitar; mas, de qualquer forma, seria prudente debater questões como a autodeterminação dos povos e o Direito Internacional antes de falar em anexação). Nem sequer é, apenas, um argumento falacioso. As palavras de Hitchens revelam falta de rigor histórico, e um profundo desconhecimento da organização política da Jugoslávia (o Kosovo e, por exemplo, a Bósnia, não tinham a mesma natureza administrativa e política, dentro da federação). Ou então - hipótese mais grave - o autor aproveita-se da ignorância dos leitores para tentar difundir a sua mensagem. E nada melhor do que uma palavra forte como "anexação" para os convencer da eficácia de uma política em que acredita (claro que "starved" também não fica mal). Inaceitável.”


Como vê, Carlos, o Contra-a-Corrente não tem um sistema de comentários mas nunca deixou de publicar os que considerou válidos, honestos, «construtivos», «destrutivos» mas com pinta, etc. - em oposto a insultos gratuitos, «bocas» e derivados. Os critérios, esses continuarão a ser da minha lavra.

Em relação ao seu comentário, não percebo a sua indignação, nem, sequer, a ferocidade da sua crítica relativamente às palavras de Hitchens. Em primeiro lugar, Hitchens não pôs em causa (eu que o leio há bastante tempo) qualquer «rigor histórico», nem sequer menosprezou a importância histórica do Kosovo no imaginário sérvio. Utilizou uma expressão (“anexação”) que pode, eventualmente, suscitar interpretações de ordem diversa. Daí a concluir que ele cometeu crime de «lesa pátria» vai uma enorme distância.

É certo, e sabido, que os sérvios sempre observaram o Kosovo como a mística área central do seu grande estado medieval. Os mosteiros sérvios bizantinos e os seus frescos estão lá para quem os quiser ver. Mas as coisas são o que são, e se a história recente não deve substituir ou apagar a antiga, não pode, por outro lado, ser escamoteada. É bom não esquecer que, após a constituição jugoslava de 1974 (com Tito), o Kosovo tornou-se uma província autónoma (terá sido por mero capricho de Tito?), com uma administração largamente albanesa (é certo que com um estatuto diferente de outras províncias). Em 1981 foi, aliás, tentada uma revolta no sentido de se alcançar um estatuto de república plena, embora sem resultados. Ou seja, o Kosovo está longe de ser uma mera região de uma grande sérvia - sem «história», sem clivagens, sem conteúdo étnico evolutivo. Na vigência dessa autonomia, os sérvios foram, com o tempo, abandonando a região (por motivos diversos, incluindo a descriminação e a violência), ao ponto de passarem a representar uma pequeníssima minoria. Isso, obviamente, tem o seu peso.

Milosevic fez questão de incendiar a região quando, em 1987, visitando o Kosovo, acicatou o sentimento nacionalista sérvio – um gesto, aliás, apoiado por políticos de outras nacionalidades, como foi o caso do croata Tudjman. Foi Milosevic quem retirou, unilateralmente, autonomia ao Kosovo e o colocou sob administração sérvia directa, abrindo caminho à revolta albanesa, pontuada pela auto-proclamação da denominada República Kosova (como eles escrevem), de Ibrahim Rugova. O que a seguir se seguiu já toda a gente sabe. Não vale a pena referir aqui a natureza abjecta das engenharias sociais e étnicas levadas a cabo pelos operacionais de Milosevic. Até porque, diga-se, o que parece ter «irritado» Carlos Fernandes foi o uso do termo "anexar" aplicado a uma região que, segundo ele, nunca poderia ter sido alvo de "anexação", uma vez que, supostamente, ela nunca foi "desanexada".

POr tudo isto, a reacção de Carlos Fernandes ao uso do termo “anexação” é completamente exagerada. No fundo, estamos apenas na presença de uma questão semântica. Não? Então deixem-me colocar a seguinte questão: se “anexação” é um termo descabido e contrário ao «rigor» histórico, o que será a ideia de fazer crer que no Kosovo nada se passava de extraordinário, no que à autonomia administrativa (por muito diferente que esta fosse de outras províncias) e à composição demográfica dizia respeito?

0 Comentários:

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]

<< Página inicial

Powered by Blogger Licença Creative Commons
Esta obra está licenciado sob uma Licença Creative Commons.