Apesar de «rapaz magro, de olhos grandes e melancólicos», não
privo com a intelligentsia lusa e
nunca parti à «conquista» da capital, como Arturzinho Corvelo. Desconheço os
corredores do poder, as arrecadações das intrigas e os salões da esgrima
política. Não almoço na Rocha do Conde de Óbidos com os mais proeminentes
comentaristas ou os mais promissores políticos da nouvelle vague. Não tenho acesso a inside information, nem pratico insider
trading. Padeço de uma simplicidade montesina (ou, no meu caso, de uma
singeleza de planície), pelo que as circunvoluções do meu cérebro, por onde
corre informação fraquinha (em quantidade e qualidade), não me habilitam a
graves e monásticas elucubrações sobre a sempre frenética e fascinante movida
politico-partidária. Mas tenho, lá está, como todo o português que se preza,
uma opinião sobre todo e qualquer assunto.
Já foi lavrado em sede própria, facto evidente e irrefutável:
António José Seguro, excelentíssima pessoa (no
doubt about that), é um político pífio que aproveitou uma «janela de
oportunidade» (eu que tinha jurado nunca usar esta abjecta expressão) para
chegar à solene posição de secretário-geral do Partido Socialista.
Todos os partidos têm esta estirpe de políticos: cinzentinhos mas
muito «responsáveis»; treinados no campus
das jotas mas já ligeiramente grisalhos; hábeis no contacto com «as bases» e outrora
com capacidade de destaque nas «concelhias» (circunscrições que não implicam
grandes «inteligências», apenas o tempo e a dedicação próprias de quem não tem
uma profissão «cá fora»); proprietários de três ou quatro ideias vagas
(normalmente apreendidas nas universidades de Verão ou num transitório mas
louvável esforço autodidacta); com um séquito de gente «jovem» mas igualmente
medíocre (apesar de bem intencionada). Gente que, com jeitinho, lá vai ganhando
o seu espaço nos partidos e, em momento de fragilidade dos ditos (ou em período
de nojo pós-desaire eleitoral), atrevem-se, com algum sucesso, a conquistar o
poleiro. Regra geral, são líderes, como sói dizer-se, «a prazo».
António José Seguro é tudo isto. Mas teve a seu favor a
clarividência de ter percebido duas ou três coisas quando ocupou o secretariado
(ocupado, aliás, com o tipo de «pressa» que, hoje em dia, lhe causa
perplexidade). O PS precisava de divergir da linha comportamental (acintosa,
teimosia, soberba e insuportavelmente arrogante) e programática (pouco dada ao
esquerdismo de suposta boa cepa, de que Seguro assegura nunca ter renunciado) daquilo
a que se convencionou chamar, para facilitar a coisa, de «socratismo». Por
outro lado, tinha sido o PS a pedir a assistência externa e a negociar, com a
troika, o resgate - resultando desta negociação um memorando que o então líder
do partido e primeiro-ministro, havia considerado «equilibrado» -, pelo que
ninguém de boa-fé e honrado no partido poderia «rasgar» o que tinha acordado.
A incumbência de António José Seguro não era, por isso, fácil. Desde
logo pela circunstância de ter a seu lado, no parlamento, um plantel (de
deputados) cuja escolha lhe fora alheia. Depois, por ocupar o lugar de líder de
um partido que, mais coisa, menos coisa, era tido (em boa parte da opinião
pública, como se pôde ver no resultado das eleições) como co-responsável pela
situação a que o país chegou (embora a doutrina do partido oscilasse entre os
0% e os 5% para caracterizar a quota parte de responsabilidade da governação
socialista na situação do país). Finalmente, teria de controlar a tendência
interna, protagonizada por um grupo de deputados, de defender de forma inapelável
e, a espaços, heróica, a governação e o legado «socrático» (com o PEC IV
elevado à categoria de mítico, místico e único plano salvífico).
Com o tempo, os astros alinharam-se. As consequências da aplicação
«concreta» do memorando (aumento do desemprego, esbulho fiscal, etc.), o
festival de tiros no pé levado à cena por alguns membros do governo (incluindo
o primeiro-ministro), a dificuldade em cumprir as metas orçamentais e, last but not least, o adiamento de
reformas palpáveis (com a honrosa excepção da Saúde) tantas vezes anunciadas
como adiadas, foram criando as condições para que, sem necessidade de tocar ou
entrar no discurso apocalíptico e anti-troika da extrema-esquerda, António José
Seguro resgatasse uma ideia estratégica para o país, aproveitando para dissecar,
de forma inteligente (leia-se objectiva e clara e com propostas alternativas
igualmente objectivas e claras), os erros cometidos pelo governo.
A nada disto se assistiu. Na praxis
parlamentar e nas entrevistas que foi dando, António José Seguro revelou-se
pueril e inconsequente (a vaga e repetida aposta argumentativa no chavão do
«crescimento económico», não passou disso mesmo: «estar vivo é o contrário de
estar morto».) Killer instinct: zero.
Medidas concretas: zero (à excepção de uma espécie de imposto sobre as rendas
das PPP e da promessa do regresso ao passado da RTP). Ao ar de «bom rapaz» nunca
se associou a sensação de gravitas
política. A sagacidade, a força e o génio raramente, para não dizer nunca, o
habitaram.
A prova desta incapacidade apareceu vertida nas sondagens e nos «barómetros»
da praxe: o PS liderava, é verdade, mas nunca descolando de forma clara e
sustentada da soma PSD/CDS. As sondagens reflectiam o clássico e expectável
descontentamento da população face a políticas de austeridade, mas dificilmente
reflectiam uma agitação de nítido entusiamo em torno do maior partido da
oposição e do seu homem do leme.
No PS, agigantou-se o incómodo desta situação – incómodo que, no
caso de alguns deputados e militantes, se aliou a um incómodo mais antigo: o desplante de
António José Seguro ter, de forma mais ou menos
insinuada, renunciado ao legado da governação de Sócrates.
O pico do desconforto deu-se há dias quando, uma vitoriosa ida
aos mercados (independentemente da paternidade dos méritos), fez despertar nas
finas consciências socialistas um sobressalto: e se, com o tempo, de forma mais
ou menos atabalhoada ou inconsciente, o governo marca suficientes pontos para
inculcar no povo a ideia de que «a austeridade, afinal, pode dar frutos»,
auxiliado ou não pelo amolecimento do coração troikiano e pelas manobras de Draghi?
António Costa e os seus apoiantes, perceberam isso. Perceberam que, com
Seguro, o PS não está seguro. À impaciência aliou-se a imprudência: alguém,
observando o calendário e a perspectiva de Seguro alcançar uma vitória
eleitoral nas autárquicas, aliviou-se de um desesperado wishful thinkink: «não se arranja aí uma hipótesinha de antecipar a troca do pífio pelo valente»? O caldo entornou-se.
Entornou-se o caldo porque Seguro sabe que Seguro sabe que
Seguro é um líder fraco. Que está a prazo. Que serviu para queimar tempo. As «viúvas
socráticas» (perdoem-me a expressão) anseiam por um homem que reconcilie o partido com o passado recente.
Quem ouviu Fernanda Câncio no Expresso da Meia-Noite percebeu, limpidamente,
que boa parte da bancada socialista e outra boa parte dos militantes socialistas
pensam aquilo: Sócrates foi o melhor primeiro-ministro do pós-25 de Abril. A
solução continua lá. Pouco há a enjeitar. Como insinuou Fernanda Câncio, as eventuais
«boas» reformas deste governo foram iniciadas ou são um prolongamento das de um
governo quasi-sacrossanto, traído pelos mercados e por uma coligação mefistofélica
de partidos, da direita à esquerda. E, por falar em Fernanda Câncio, veja-se o
caso «relatório FMI»: as críticas da articulista ao relatório, encerram no
estilo e na forma (já que no conteúdo há críticas fundamentadas), o tipo de rancor
de quem não esquece a traição e não entende a interrupção de um percurso
governativo ímpar, sem paralelo na democracia portuguesa, cuja irrefutabilidade
da eficácia e eficiência conduziu ao expediente rasteiro e desesperado de um relatório-embuste.
Há quase que uma exigência latente: prossiga-se com o caminho perfidamente
interrompido!
Há mais de um ano que, no interior do PS, se travava esta luta
entre o passado, o presente e o futuro. Há muita gente a desejar – e António
Costa é uma dessas pessoas – a reconciliação com o passado e a reabilitação
do socratismo, na altiva e arrogante, mas implacável, cerrada e combativa forma de
fazer política. Mesmo que, do ponto de vista programático, poucas diferenças
haja (e está por provar que o PS consiga apresentar, mesmo com Costa ao leme, um
rumo alternativo, convincente e concreto tomando como válidas as restrições
impostas pela troika). Tudo será bem-vindo quando a consciência da putativa superioridade
moral e intelectual vai alta, e a estatura dos adversários, baixa. António Costa
é o homem desejado porque não enjeitou, nem enjeitará, esse passado. E, claro,
porque tem peso político (Assis ainda não chega lá).
Entretanto, no meio dos distúrbios da «noite das facas moles»
(feliz expressão de Ana Sá Lopes), António Costa parece ter feito a sua opção
(a meu ver correcta): foi ponderado e prudente. Evitou a peixeirada, que estava
iminente. Ensaiou o número “mostra lá do que és capaz”, dando ares de homem
conciliador. Foi magnânimo. Sossegou a miudagem, por uns tempos (é verdade que,
por outro lado, enfureceu e inquietou os que querem «sangue» - na guelra e na
arena).
Mas está escrito nas estrelas – e a decisão de Costa em nada põe
em causa isso – que ele será o próximo secretário-geral dos socialistas na corrida
para o lugar de primeiro-ministro, numas próximas eleições. Vai uma aposta?