O MacGuffin: dezembro 2012

sexta-feira, dezembro 28, 2012

Adenda ao caso do burlão

(corrigido)

Como não podia deixar de ser, eis que:

a) O episódio «Artur Baptista da Silva» pode muito bem ser uma jogada «da direita» para descredibilizar a «esquerda»;

b) Gaspar, Borges, Passos Coelho, Baptista da Silva: todos burlões, todos farinha do mesmo saco;

c) Há bem pior que o «pobre» Artur Baptista da Silva, como nos explicou Fernanda Câncio: os nossos governantes;

d) Nicolau Santos é um grande e/ou valioso e/ou irrepreensível e/ou responsável jornalista português, que muito tem feito para denunciar «o que para aí vai», sujeito inocentemente a uma partida que podia ter calhado a qualquer um, como nos explicou André Macedo.

E assim acontece, como diria Carlos Pinto Coelho. Uma vez mais, a trupe (com todo o respeito) dos senhores doutores da opinião, insiste em disparar em todas as direcções. E em apanhar papeis. E em enfiar a carapuça. Seja porque a «sua» classe saiu melindrada do episódio (os jornalistas); seja porque o impostor revisitou uma parte do seu próprio argumentário (o caso dos articulistas da especialidade); seja porque se trata de um óptimo pretexto para «bater» no Dr. Passos Coelho e no seu governo «neoliberal»; seja, ainda, porque há os que adoram uma boa teoria da conspiração; o caso «Artur Baptista da Silva» passou do simples e hilariante momento mediático (com um alerta ao jornalismo no que respeita ao fact-checking), que nos deveria simplesmente divertir nas vésperas de um novo e complicado ano, para o domínio do simbólico e do abstracto: a personagem é, agora, representante, ainda que cândido (coitado, é doente), da cáfila dos «verdadeiros» burlões: os que não cumprem o programa eleitoral, os que prometeram uma coisa e fizeram outra, os que engendraram nos escritórios de advogados da capital o roubo das PPPs, os que mentiram no parlamento, os que foram populistas no discurso, os que têm um péssimo corte de cabelo. E por aí fora.

Volta, Artur: queremos mais.

quinta-feira, dezembro 27, 2012

Sobre o Sr. Artur Baptista da Silva (a.k.a. “o burlão encartado”)

Agora que passámos à fase séria (e grave) em que dissecaremos o epifenómeno «ABS» até que a voz nos doa (o fado, sempre o fado), devo anunciar que, também eu, tenho opinião sobre o assunto. Relembro o grande Machado de Assis: “Alguns metafísicos biliosos têm chegado ao extremo de a darem [à opinião] como simples produto de gente chocha ou medíocre; mas é evidente que, ainda quando um conceito tão extremado não trouxesse em si mesmo a resposta, bastava considerar os efeitos salutares da opinião, para concluir que ela é a obra superfina da flor dos homens, a saber, do maior número.” Ora bem:
  • Artur Baptista da Silva é um burlão;
  • Artur Baptista da Silva recorreu a factos que são falsos;
  • Na substância, a tese de Artur Baptista da Silva não difere muito da tese de alguns articulistas da paróquia, incluindo a de alguns economistas (leia-se «especialistas»), a saber:
  1. Uma parte significativa da dívida portuguesa teve origem em «investimento» caucionado/incentivado pela «Europa» - tornando-a parte de uma espécie de território de inimputabilidade;
  2. Portugal está a ser alvo de um tratamento desigual no que respeita às condições do empréstimo (prazo e juros), sendo que países «ricos» beneficiaram de taxas de juro inferiores (nota: não deixa de ser uma inevitabilidade, para quem percebe a relação entre juro e risco);
  3. Os programas de assistência financeira aos «países do sul» deveriam ser reformulados para que levassem em linha de conta a (fraca) capacidade de resiliência e a rigidez destas economias;
  4. As decisões político-económicas estão subjugadas à vontade da Alemanha (que tem como objectivo acessório, «castigar» os países incumpridores);
  • Dizer isto não é dizer que os que defendem uma tese próxima da de Artur Baptista da Silva são, invariavelmente, burlões ou que estão, total ou absolutamente, errados: em parte, trata-se de matéria subjectiva;
  • Sendo, em parte, matéria subjectiva, convinha que, ainda assim, as opiniões recorressem a uma argumentação baseada, o mais possível, em factos verificáveis – coisa que Artur Baptista da Silva, como «burlão encartado», desprezou. Por exemplo, dizer que as taxas de juro do nosso empréstimo são elevadas (injustificadamente?), pode ser matéria de discussão; basear essa afirmação na história deturpada do bailout ao HypoVereinsbank, torna-a potencialmente falsa;
  • Até um maluco ou um vigarista pode dizer uma verdade, embora uma verdade dita por maluco ou um vigarista seja tendencialmente mais difícil de aceitar (no mínimo por suscitar dúvidas);
  • Quando um burlão defende uma tese que coincide com a nossa tese, é possível que a nossa tese saia (mesmo que ligeiramente) descredibilizada. Quando isso acontece, importa contra-argumentar com factos verificáveis, que reponham a putativa força da tese (isto, claro, se quisermos dizer alguma coisa sobre o assunto);
  • Mais interessante, e estimulante, é perceber o que motiva eminentes articulistas/especialistas/diplomatas a mitigar, de forma patética, a natureza trapaceira de Artur Baptista da Silva. Estaremos assim tão desesperados?
  • Convinha, finalmente, que a classe jornalistica retirasse do episódio algumas ilações.


segunda-feira, dezembro 17, 2012

Das brigadas bem-pensantes do politicamente correcto

Vasco Pulido Valente, Público 16/12/2012

Isabel Jonet
"Na Quadratura do Círculo, António Costa, António Lobo Xavier e Pacheco Pereira, sob a moderação muda de um funcionário da SIC, resolveram discutir algumas declarações da dra. Isabel Jonet e o "Banco Alimentar" a que ela preside. Pacheco Pereira, como sempre, serviu a peça do PS. Lobo Xavier tentou endireitar as coisas, com pouca convicção e quase sem informação. E António Costa deu, deliciado, uma no cravo e outra na ferradura. Claro que o nó do problema foi a diferença entre caridade e Estado social. Pacheco Pereira, por indignação ou ressentimento, voltou aos seus tempos de esquerdista, lá veio com a velha conversa de que na essência a caridade humilhava quem a recebia; e que o Estado, prestando um serviço, se limitava a responder a um direito legal do cidadão.

Ao que parece, Isabel Jonet tinha cometido o imperdoável pecado capital de dizer numa entrevista que preferia a caridade ao Estado social e, sobre isto, já de si claramente subversivo e provocatório, de invocar S. Paulo. Se as luminárias da Quadratura, por uma questão de curiosidade, se houvessem dado ao excessivo trabalho de ir ao site do Banco Alimentar, descobririam logo que ele não aspira a ser senão "uma resposta necessária mas provisória" a uma situação desesperada, porque o Estado deve garantir a qualquer pessoa "um nível de vida suficiente que lhe assegure e à sua família, a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica" e ainda a toda a variedade de contribuições que se tornem necessárias. E, para que não restem dúvidas o Banco Alimentar rejeita a "caridade condescendente" e define o seu trabalho como uma "opção de cidadania", que, em última análise, se destina a contribuir para o advento de mais "justiça" social.

Quanto à dra. Isabel Jonet, que o anticlericalismo indígena escolheu para bode expiatório da sua impotência, é uma mulher estimável que, de repente, se viu metida no meio de um jornalismo espertalhão. Não sendo nem moralista, nem teóloga, nem política, falava com a maior inocência sobre si e o seu papel no Banco Alimentar, não lhe ocorrendo que se podia meter num sarilho ou suscitar uma polémica a cada palavra. Atravessou este pequeno tumulto com dignidade e boa fé. E suspeito que ganhou apoios para o Banco Alimentar. A Quadratura do Círculo irritou muito boa gente. Confesso que me irritou a mim e que decidi logo ajudar com regularidade essa extraordinária empresa. Mais do que isso, estou contente com a decisão. Primeiro, porque eles merecem. Segundo, porque Isabel Jonet mostrou que era uma senhora normal, honesta e franca - exactamente o contrário dos políticos que lhe ladram aos pés."

domingo, dezembro 16, 2012

José Tolentino Mendonça



José Tolentino Mendonça, entrevistado por Anabela Mota Ribeiro (Público, 9/12/2012)
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Apresentou a Bento XVI um poema que tem por título O mistério está todo na infância (por ocasião dos 60 anos da ordenação sacerdotal do Papa). Porquê?
Acredito muito na infância espiritual. Que é, no fundo, a construção de uma inocência. A inocência não é o estádio antes. Antes da vida, antes da cultura, antes das decisões fundamentais. A inocência é uma descoberta, é um caminho, é uma decisão.
Tem a ver com a perplexidade, com a capacidade de espanto?
Tem a ver com a possibilidade de permanecer com o espanto a vida inteira, e com uma simplicidade que nos desarma. Evidentemente, essa infância espiritual liga-se à infância biográfica. A infância interessa-me não como um território que deixei, e a que só em memória posso regressar, mas como projecto. Aquilo que Jesus diz no Evangelho: "Se não fordes como crianças, não entrareis no reino dos céus." Penso muitas vezes no que é ser uma criança.
Parece uma pergunta retórica, mas não é.
Não é, não é. Um mestre do judaísmo vem falar com Jesus à noite, para não ser detectado e apontado pelos outros; uma das perguntas que faz é esta: "Como é que eu, sendo velho, posso nascer de novo?" Em S. Paulo é muito claro quando usa a imagem do parto, do nascimento perpétuo, dizendo que: "Hoje estamos a experimentar as dores de parto." Penso o meu presente como o lugar onde experimento as dores do parto, um nascimento que vai acontecendo.
A infância pode ser uma espécie de casa? Quer a infância-território biográfico, quer a infância enquanto projecto. Uma casa onde se está, onde se volta para rememorar, para edificar. Nos seus primeiros livros, a noção de casa era fundamental.
A casa é o lugar do estar, do ser. Embora, quando penso numa casa, penso muitas vezes na casa de que falava o Alberto Caeiro. A casa no cimo da colina onde vê o mundo e os poemas que partem. A casa é também uma espécie de observatório. Um lugar onde comunicamos - não é um lugar onde nos isolamos. Talvez porque tenha nascido numa família numerosa, e porque ao longo da minha vida tenha vivido quase sempre em comunidades, em casas com dezenas ou centenas de pessoas, a casa é sempre uma encruzilhada de encontros e de relações.
Voltemos à questão inicial para desenvolver o tópico do mistério.
O prof. João dos Santos [psicanalista] dizia que o grande segredo do homem é a sua infância.
Essa frase está na estátua de João dos Santos no Jardim das Amoreiras. Parece que nos interpela.
O segredo, o mistério está na infância. Que é como quem diz: está nessa dimensão silenciosa, submersa, escondida que nós trazemos.
É o território do que não sabemos de nós?
É a nuvem do não-saber, para usar um título de um clássico da espiritualidade cristã. É esse não-saber que se torna no saber verdadeiro. Que se torna a porta para todos os saberes. É um vazio que nos interpela. Há dimensões da nossa vida que só são silenciosas porque não nos deixamos interrogar por elas.
Não nos deixamos interrogar por acanhamento, com medo do que lá está?
Já diziam os padres do deserto: "Só há um único pecado: é a distracção." Não deixamos porque nos distraímos. O problema não é o medo. A haste, quando sobe, também treme ao vento. É impossível não ter medo de viver. É impossível não ter medo desta coisa espantosa e repentina que é a vida. Viver é perigoso, dizia o João Guimarães Rosa.
Mas o desencontro nasce da distracção. Não ouvimos porque nos dispersamos. Porque perdemos o sentido do essencial, do prioritário, e construímos tanta coisa e não nos construímos a nós mesmos. Ficamos adiados. Não percebemos que somos a nossa casa. Somos a nossa estrada.
Andamos constantemente fora de nós próprios?
A grande tentação é viver uma vida exilada. Os exílios acabam por, à primeira vista, ser lugares de apaziguamento ou de distracção. A nossa casa também nos coloca exigências, às quais nem sempre estamos disponíveis para responder.
Enquanto padre, tem a noção de que aquilo que mais persegue as pessoas é o medo? Falam-lhe mais do medo ou da distracção?
Não sei se é do medo. Há uma coisa muito inofensiva nas confissões. Quando não se tem muito para dizer, diz-se: "Eu distraio-me na oração." Parece uma coisa banal, para começar uma conversa. Mas se formos olhar bem é a questão fundamental. "A atenção é a oração. A oração é a atenção", dizia a Simone Weil. A atenção é que nos faz estar naquilo que fazemos, em cada gesto, é que nos faz habitar o presente.
Essa atenção implica um comprometimento. Com um projecto, uma ideia, uma pessoa, nós mesmos.
Implica também uma justiça, a exactidão. Se não estou atento, não vejo. Vivo do meu preconceito. Vivo das ideias adquiridas, tantas vezes falsas. E não acolho. Não pratico uma hospitalidade real. Penso que é isso que falha. Às vezes passam dias e dias e parece que nada acontece, ou que não somos visitados por nada, e isso tem a ver com o facto de não abrirmos o coração à música da alegria que nos visita.
É preciso saber reconhecer essa música, e abrir-lhe a porta. No ensaio sobre a amizade Nenhum Caminho Será Longo, fala do desapontamento de um homem a quem Deus prometeu visitar. Ao crepúsculo, o homem chora a desilusão da promessa não cumprida. Deus responde-lhe: "Por três vezes, hoje, tentei visitar-te e todas as vezes me disseste que não."
Esperamos sempre Deus no máximo e esquecemo-nos de que ele nos visita no mínimo. Quando os monges budistas dizem que Deus está no grão de arroz, há nisso uma grande verdade. É no pequeno, até no insignificante, no mais quotidiano, que Deus nos visita.
Fale-me da sua infância biográfica no que isso importa para a pessoa em quem se tornou. E aqui estou a ir ao encontro da frase do prof. João dos Santos.
A minha infância foi uma experiência que poderia descrever como uma experiência de espaços. Nasci na Madeira. Com um ano de idade, fiz uma viagem com a minha mãe, no navio Príncipe Perfeito. Fomos para Angola, onde o meu pai já estava. Fui com os meus irmãos, era o mais pequeno. Do Lobito, as recordações são da amplidão do espaço. As casas eram grandes. Os espaços onde brincávamos livremente eram enormes. O meu pai, os meus tios: uma família de pescadores.
Lembro-me de uma viagem que fiz com o meu pai. Na minha cabeça ia também pescar. Dei comigo, para lá dos enjoos típicos de um iniciante pelo mar fora, na borda do barco, a olhar as paisagens. Praias que ainda não tinham sido exploradas, rochedos, o azul do mar, o fundo do mar. Eu teria sete, oito anos. Essa contemplação despertava em mim uma emoção enorme, enorme. Ficava boquiaberto. Como se aquela vida intacta, da paisagem do mundo, tivesse em mim um impacto que não sabia expressar. Mas guardava aquelas imagens, coleccionava-as dentro de mim.
O que o impressionou foi o mundo, a beleza, a natureza poderosa?
Não sei se era a beleza. Era o mundo em si. O mundo como lugar encantatório, uma pureza original. Lembro-me daquele pequenino mundo, tão vasto, onde, sem saber, nos estamos a construir. De uma forma quase eventual.
Depois foi a mudança para a Madeira, que teve um dramatismo mais literário do que literal.
É uma atribuição do adulto que recupera aquele momento?
Senti que me estava a despedir daqueles lugares. Fui com o meu cão, sozinho. Digo que foi literário porque quis chorar, abraçado ao cão, sentindo que era a última vez que estava ali. Mas não tinha lágrimas verdadeiras. Tinha uma dor. Uma dor que um miúdo de nove anos pode ter, mas não eram lágrimas. Chorei lágrimas que não tinha [sorriso]. Essa despedida, talvez encenada, marcou-me.
Como foi o regresso à Madeira?
Para os meus pais, para pessoas como eles, que perderam determinado enquadramento do mundo e uma estabilidade económica, foi traumático. Mas os pais conseguem sempre colocar-nos, como no filme A Vida é Bela, [noutra realidade]. Passamos pelo campo de concentração como se fosse por um jardim. As coisas, que hoje relembro e que percebo que provocaram uma ansiedade enorme nos meus pais, foram vividas como uma aventura. Uma aventura no porão de um barco, numa cidade desconhecida.
A partida de Angola foi, num sentido simbólico, o seu primeiro naufrágio? Na capa do livro de poesia Estação Central está a fotografia do naufrágio do barco Torquato, junto ao Funchal, no fim do século XIX.
A Madeira, como os lugares da infância, não são lugares de desencantamento. Uma pequena ilha, a terra dos meus pais, dos meus avós, em condições muito difíceis. Mas a infância não sofreu uma fractura, nem sobressaltos. Essa capacidade de transformar as dificuldades em possibilidades - no fundo, uma enorme capacidade de sobrevivência que a vida da infância tem - protegeu-me. Quando penso na infância, nem por uma vez me lembro de medo, de ansiedade. Recordo o embate do espaço da ilha. Tudo era diferente. Os cheiros. A forma como as coisas estavam organizadas. As ruas. As pessoas. Um admirável mundo novo para descobrir.
Falou da ausência de medo. Parece mágico na infância esse impulso de liberdade, a ausência de limites.
Recebi isso dos meus pais. Mantinham uma atitude de confiança que nos ajudou muito. Mesmo na escassez, na pobreza. Olhávamos para o dia de amanhã, para o futuro, com uma enorme confiança. Hoje pergunto-me: confiança em quê? Porquê? Confiança. Confiança na vida. Eram também pessoas religiosas. Confiantes na protecção de Deus, que o tempo ia ser melhor, e ao mesmo tempo muito gratos; apesar de tudo, estávamos todos juntos, ninguém se tinha perdido pelo caminho, não tinham acontecido coisas irrecuperáveis. E isso deixava um lastro de confiança que nos fazia olhar para a vida com serenidade.
O seu primeiro poema foi acerca de alguma destas coisas de que estamos a falar?
O meu primeiro poema foi A infância de Herberto Helder.
Não me refiro aos poemas publicados.
Esse foi o primeiro poema. Foi no tempo em que li Photomaton & Vox, o livro que me tocou mais fundo.
Herberto, outro madeirense. Uma filiação importante?
Claramente importante. Na infância dos outros, na efabulação dessa vida que julgamos existir nos outros, tocamos a verdade da nossa vida. Esse poema é sobre a minha infância. Uma infância que podia ter sido a de Herberto Helder. Também no contexto insular. A dele, a vida numa pequena cidade, o Funchal.
Qual é o primeiro verso do poema?
"No princípio era a ilha." Foi ali o meu princípio biográfico e o meu princípio como poeta. Nasci ali e ali comecei a escrever. São duas marcas, duas etapas que determinam um tempo arquetípico. O meu arché [palavra grega que significa "princípio"] foi aquele lugar.
Que idade tinha quando descobriu Herberto?
Tinha 16 quando o comecei a ler. Foi uma grande descoberta. Foi como se pudesse ouvir a música do mundo. Sentir que todas as coisas estavam vivas. Um lado orgânico do real. E aqueles advérbios que nele dão mais do que qualquer adjectivo.
A entrada no seminário, que aconteceu muito cedo (tinha 11 anos), foi a possibilidade de entrar dentro de uma biblioteca.
Vamos devagar. Espere lá.
Isso era o que o Wittgenstein dizia. Quando as pessoas se encontram, devem dizer uma à outra: "Avança devagar." [riso] A vida dele é a vida de um santo. Uma vida que me comove muito.
Porque é que a vida de Wittgenstein o comove?
Porque é a vida de um foragido. Há nele uma fome de humanidade, de anonimato, de transformação e de silêncio que se encontra nos santos.
Antes de voltarmos ao seminário, e ao princípio que era a ilha, falemos de um outro foragido de que fala nos seus poemas, Pasolini.
É outro foragido, é.
Pasolini parece encarnar uma figura maldita. É um epíteto que vulgarmente se aplica à sua figura e obra. Mas fala dele como quem fala de um santo.
Não serei o único. A blasfémia não está tão longe da santidade como se pensa. Na tensão daquela vida há uma dádiva, uma capacidade de entrega, um desejo de verdade que só um Absoluto é capaz de saciar. "Bem-aventurados os sedentos, bem-aventurados os que têm fome e sede."
Quando cheguei a Roma pela primeira vez, em 1989, no Palácio das Exposições, passou uma integral do Pasolini. Gratuita. O que, para um estudante, era irresistível. Eu tinha tempo e tinha vontade de conhecer aquele universo.
O que é que aprendeu com Pasolini?
Acho que o Pasolini me ensinou e me ensina isto (continuo a ler, tenho uma biblioteca que vou construindo com tudo o que sai em torno da obra dele): quando fez o Evangelho Segundo Mateus, pensou muito em como relatar a experiência do sagrado. Como? O primeiro caminho que tomou, a cena do baptismo que filma em Viterbo [zona de Lácio], é um modo tradicional. Com um carácter extático, solene, hierofânico. Filmou essa cena e entrou numa grande crise criativa. Até que percebeu que o único modo de filmar o sagrado era [fazê-lo] como se filmasse o profano. Como se descrevesse a realidade. Este passo foi decisivo. O que vemos no cinema de Pasolini é que ele filma o sagrado com um óculo do profano. E filma o profano com o óculo do sagrado.
E desse modo aproxima-os.
Diz que é uma coisa só. Por exemplo, Accattone é a história de um marginal que ele filma como se fosse o sacrifício de um mártir.
Mas Accattone, nome do protagonista, é uma figura que facilmente odiamos. Capaz de coisas abjectas, como roubar os próprios filhos. Ao mesmo tempo há um amor e compaixão que nos inspira.
Os cristãos sabem que todos somos capazes de coisas abjectas. Detesto o moralismo. Penso que o moralismo falseia o encontro connosco próprios e com a humanidade. O que acontece aos outros acontece a cada um de nós. Dizia o cristianíssimo Dostoievski: "Somos responsáveis por tudo perante todos." Não sinto que qualquer um de nós seja diferente de Accattone naquelas circunstâncias. Quero dizer: a experiência do mal atravessa todas as vidas. Todos precisamos de ser salvos. Daí também o naufrágio. Existe em nós a capacidade de construção, mas o remate final, aquilo que decide o que somos, só numa relação [é dado].
É perturbador o que diz. Porque tendemos a olhar para nós a partir de uma angular benevolente. Achamo-nos capazes dos melhores gestos, resistimos à ideia de que podemos ser Judas.
E somos tantas vezes. Somos mesquinhos, banais, egóticos, ressentidos. Se não tomamos consciência, disso não conseguimos a transformação. A primeira condição da transformação é a nudez. Ser capaz de contar a sua verdade. Gosto muito da Flannery O"Connor, que é para mim, ao lado do Pasolini, uma mestre espiritual. Ela mostra um mundo que se diria monstruoso. De assassinos em série. De gente capaz de tudo. "Esse mundo somos nós." Até que acontece o encontro com a graça. É esse encontro que transforma a nossa vida. Penso que não se pode dividir [a humanidade] entre homens bons e homens maus. Não há rapazes maus - como dizia o Padre Américo (essa figura tutelar de um certo século XX português). Há a experiência do mal, que é comum a todos, que nos atravessa, corrói, domina em tantos momentos.
Falou da graça. E pergunto pelo momento anterior: o do encontro com o mal. Estamos prevenidos para o encontro?
Não estamos. Mas esse encontro com o mal que nos habita é absolutamente necessário para tomarmos consciência de nós. Senão somos uma ilusão. Lidamos connosco próprios numa idealização tal que nunca aterramos verdadeiramente na realidade. A Flannery O"Connor tem um livro de ensaios sobre literatura chamado No Território do Diabo. Digamos que a nossa vida é também no território do diabo. No território da tentação, da luta, do combate interior. O grito existencialista de S. Paulo... "Quem me livrará deste corpo de morte, que não faço o bem que quero e faço o mal que não quero?" Todos sentimos esta forma paradoxal em que a nossa existência se desenvolve. O moralismo faz-nos criar os bodes expiatórios. O filósofo René Girard diz que a nossa sociedade tem um sistema vitimário. Colocamos num bode expiatório tudo o que não queremos ver em nós próprios. Então, como os antigos judeus faziam (colocavam num bode todos os pecados e mandavam-nos para o deserto), colocamos numa pessoa só (o maldito, o criminoso) todos os males, excluímos essa pessoa; e isso dá-nos um alívio muito grande. É o sistema do beco sem saída.
Porque um dia o bode seremos nós?
Por um lado, isso. Por outro, é uma vida não salva, não redimida. Só quando tocamos a fundo a nossa vulnerabilidade (e até quando a amamos) é que somos capazes de dar passos noutro sentido.
Voltemos a Herberto Helder, onde estávamos no começo deste excurso. É interessante que, estando já no seminário, o seu primeiro poema tenha sido sobre um poeta. Não parecia assente na palavra divina.
Mas o verso No princípio era a ilha é embebido da palavra divina. Era a meditação sobre a palavra, uma ruminação, uma apropriação. Era um corpo a corpo com a palavra e com a poesia.
É uma bela maneira de pôr a questão. Corpo a corpo. Com a palavra, que é uma coisa intangível. Ao mesmo tempo, sabemos que as palavras têm poder, são actos.
Foi o meu primeiro encontro poético com a palavra. Mas já antes escrevia. Foi muito importante a figura da minha avó materna, uma contadora de histórias. Ela sabia alguns romances orais de cor. Uma das coisas que me comovem muito: numa recolha recente que se fez do romanceiro oral da Madeira, uma das pessoas que estão lá é a minha avó. A minha avó que não sabia ler nem escrever.
Comove-o porque é uma maneira de ela perdurar?
Não. Comove-me porque a minha avó foi a minha primeira biblioteca. Tive a sorte de receber a grande literatura - ela sabia um romance medieval - através da voz humana, através do embalo da minha avó. Um encantamento. Depois [esse encantamento] aconteceu na poesia do Herberto Helder. E em poéticas como a de Ruy Belo, Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner, o Pasolini traduzido pelo Manuel Simões. Fui encontrando um carácter - como dizer? - polifónico dentro de um mundo encantado. Era como se estivesse dentro de um instrumento musical cósmico que aquelas vozes me traziam.
Isso misturado com os cromos do futebol, com as brincadeiras, uma vida completamente normal.
Os romances orais que a sua avó contava: pode dizer mais disso?
Ninguém sabe, já, aqueles romances de cor. Estão num romanceiro, na minha estante. Mas nunca vou esquecer que tive a fortuna de os ter escutado. Como quem ouve uma música. A Sophia disse que o poema já estava feito, e que se nos sentássemos quietos o podíamos ouvir. Isso era verdade na minha infância. Os grandes poemas estavam feitos. Se me sentasse perto da minha avó, podia ouvi-los.
Como é que se chamava a sua avó?
Maria. Como todas as mulheres da minha família.
Chama-se José como todos os homens da sua família?
É verdade. Isto quer dizer alguma coisa.
A sua avó era muito religiosa?
Era. De uma religiosidade muito arcaica.
Viu-o poeta e viu-o padre?
Viu, as duas coisas. Estava no curso de Teologia, na universidade, quando morreu. As nossas mães, as nossas avós, vêem tudo o que somos antes de sermos. Vêem o que somos mesmo que nunca o digamos. Achamos que somos opacos, mas se alguém nos olhar com atenção somos transparentes.
Foi através dela que chegou até si o Cântico dos Cânticos?
Não. Ouvi o Cântico dos Cânticos recitado por uma mulher também analfabeta, que era zeladora da igreja da paróquia onde vivia. Uma vez disse-me aquele poema e fiquei aturdido, extasiado, aquelas palavras apoderaram-se de mim. Nunca tinha ouvido nada assim fascinado. Há um antes e um depois daquele momento. De vez em quando, pedia-lhe que repetisse. Ela não sabia o que era aquilo. Tinha aprendido de cor. Anos mais tarde descobri que era um texto bíblico. Estudei-o muito. Traduzi-o para português. O S. Tomás de Aquino dizia que, quando morresse, queria que lhe lessem o Cântico dos Cânticos, e assim aconteceu. Uma morte santa. [risos]
Neste livro de poemas põe a Patti Smith a explicar o Cântico dos Cânticos.
E ela explica tão bem... É outra foragida. Explica pelo desamparo, pela procura, por ser apenas uma criança.
Foi para o seminário com 11 anos, escreveu o primeiro poema aos 16. Quando é que percebeu que o caminho da Teologia e o da poesia eram os seus?
Penso que fui percebendo, estou a perceber. Aos 16 anos não sabia nada. Só sabia que amava o Herberto Helder.
Conheceu-o?
Já me encontrei com ele. Mas não temos uma relação. Tenho a veneração que a maioria de nós tem por ele. É quanto baste.
Esse primeiro poema fala de coisas que fazia na infância. Deitar-me na terra para olhar as estrelas. Ordenar berlindes sobre a erva. Andar pelos baldios. Essa dimensão dos espaços...
Panteísta?
Não era panteísta, que engraçado. Era o esplendor do mundo. A infância expande os espaços. Se calhar há um sentido religioso em tudo isto, mas não o vivia assim.
Também se dá a coincidência de o seu primeiro livro de poesia ter sido editado no ano da sua ordenação. É mais uma coisa a firmar a indissolubilidade destes dois laços.
É verdade, 1990. Não pensei nisso assim, mas aconteceram ambas as coisas no mesmo ano. A poesia, como a vida religiosa, é uma vocação. O Rainer Maria Rilke descreve-a como um sacerdócio, como uma forma de religação. Não as sinto como duas vocações. Sinto ambas como uma única vocação. Como um caminho exigente, desafiador, apaixonado.
Eu sou muitos, como Pessoa ensina. Da multiplicidade, todos somos desafiados a construir uma unidade. Mas sem dúvida que a experiência religiosa traz uma marca específica à minha experiência poética. Também a experiência poética desafia, por dentro, a experiência religiosa.
Explique-me melhor isso.
A experiência religiosa é uma experiência de relação, de procura. Às vezes é uma experiência fusional - sentimo-nos dentro do mistério. Outras vezes, porventura a maior parte das vezes, é uma experiência de interrogação, de deserto. Por vezes crucificante. Um permanecer apesar de. Ou contra o silêncio. Essa é a experiência da fé. E essa é também a experiência poética, de comunhão, tão profunda que parece que nos funde com a própria realidade. O mundo torna-se experiência. Ao mesmo tempo, nada é fácil para o poeta. Nada lhe é dado. Ele tem de fazer aquele caminho de pedras, de pergunta em pergunta, afinando, na dificuldade, os instrumentos da sua audição. O poema dá a ouvir o inaudível, e nisso ajuda-me na experiência religiosa. Diz, procura dizer, dá a ficção do dizer o indizível.
Cita Rilke no seu livro de ensaios: "Quase tudo o que acontece é inexprimível e passa-se numa região que a palavra jamais atingiu."
É de um livro da formação da minha alma, Cartas a Um Jovem Poeta. É logo na primeira carta: "Vire-se para si mesmo e perceba que o mais importante é esse corpo a corpo com o que ainda não está dito." Mais à frente diz: "E coloque-se como se fosse o primeiro homem. A sentir, a dizer, a ver as coisas." Há, digamos, um chamamento para a experiência. Senão, é um ornamento. O que mata o estético é o esteticismo.
Fez uma tese de doutoramento sobre versículos misteriosos de Lucas. O que se procura é uma decifração do que lá está e onde, apesar disso, as palavras não penetram. Estamos a falar de diferentes faces do mesmo poliedro?
A importância da decifração... Sim, isso conta um bocado de mim. Esse esforço de interpretar, essa paixão hermenêutica pelo mundo, pelo Homem, por Deus. Ao mesmo tempo, o hermeneuta, o intérprete sabe que o mundo é intraduzível. Há um lado da experiência humana que não é alcançável pelas palavras. Como aquelas paisagens que vi pela primeira vez no barco do meu pai. A vida, depois de dizermos tudo, há-de continuar a ser assim. Gosto de uma expressão do [filósofo Tzvetan] Todorov que diz que a interpretação é um naufrágio. Porque o intérprete é sempre vencido pelo texto. Acho que a nossa vida é o testemunho dessa derrota.
É descoroçoante lidar com essa derrota e com a evidência de o texto ser inexpugnável.
Acho que gera em nós a fome. Hoje entendo a vida como um lugar para termos a maior fome que pudermos, a maior sede de que formos capazes. A vida é uma máquina de construir desejo. Bem-aventurados os que têm um desejo tão grande, tão grande, tão grande que nada pode responder. Isso faz-nos procurar outras respostas. Pessoa também diz: "Triste de quem está contente", não é? A insatisfação é uma dor. Mas essa ferida torna-se fecunda, criativa.
Esta conversa, muito poética e enredada nas questões do espírito, merece uma tradução prosaica. Uma coisa rente à vida de todos os dias. Para que não pareça simplesmente um consolo. Ouvimos as suas palavras e elas resgatam-nos. Talvez eu esteja a sentir um excessivo conforto com o que diz...
Olhe que eu estou muito desconfortável! [riso] Porquê? É sempre descer a regiões... Sou um bicho do silêncio.
Queria que se dirigisse para os não crentes, para os atordoados.
Dirijo-me quase sempre para esses. Não tenho um discurso para crentes. Acredito muito naquilo que Simone Weil diz: "Estão dois homens, um diz que é crente, o outro diz que é não crente. Este está mais próximo de Deus do que o crente." O prof. Eduardo Lourenço, há uns anos, quando lhe perguntaram o que pensava de Deus, disse: "O importante não é o que penso de Deus. É o que Deus pensa de mim." Essa é a questão. Hoje, mais do que uma crise do crer, há uma crise do pertencer. Onde é que as coisas em que acredito encontram uma comunidade, um ancoradouro? Vivemos a crise do pertencer.
Procuramos uma forma de pertença?
Há mais dificuldade na pertença do que na crença. Não é por acaso que hoje se fala dos crentes culturais. Portugal, culturalmente, é um país católico. O que não quer dizer que os católicos sejam a maioria da população. São uma minoria os católicos praticantes. Sei que o que tem crescido é uma crise em relação à pertença; e uma crença que fica por esclarecer, aprofundar. Faltam interlocutores para essa crença. Esse é o grande desafio que hoje se coloca à igreja: a capacidade de dialogar com os crentes que não se reconhecem na pertença eclesial.
Parece ser, a esse nível, um interlocutor privilegiado. Os poetas que cita, os foragidos que traz são frequentemente apelidados de ovelhas negras de um rebanho tresmalhado. O que é que Adília Lopes tem a ver com Deus?
Ah... A Adília tem um verso: "Deus é a mulher a dias." Como tem o verso doCristo osga. Usa a imagem dos bichos que estão presentes na casa e pelos quais não damos. São como os sinais religiosos. Diz que o crucifixo está na parede e que não o olhamos. Banalizamos a presença do sagrado. Ela, de uma forma irónica, e crente, é capaz de devolver-nos essa banalidade de Deus.
Banalidade?
Para os crentes, Deus não é um facto extraordinário. Quando Adília mistura Deus com o quotidiano mais banal do bairro da Estefânia... Não sei se há textos teológicos tão importantes como a poesia que a Adília Lopes está a escrever no Portugal contemporâneo.
O que diz parece estar entre o sacrilégio e a boutade. E pergunto-me se a cúpula eclesiástica não lhe cai em cima quando diz estas coisas. Ou aceitam a sua heterodoxia?
Isto não é uma heterodoxia. A Teologia tem consciência da sua miséria. Isto é, do seu carácter provisório, insuficiente. A Teologia é uma tentativa de uma palavra sobre Deus, construindo um património impressionante de sabedoria, de humanidade. Mas, em última análise, sabemos que é no silêncio, no símbolo, na metáfora, na parábola, no poema, que Deus se dá a ver melhor.
Os tratados de Teologia também estão cheios de parábolas. Basta ler a Bíblia.
A Bíblia é um grande poema. Tem uma dimensão literária. Isso também lhe dá uma grande carga revelatória. Torna-a num livro intemporal. A Bíblia não é um catecismo.
Tem agora 47 anos. As suas leituras são substancialmente novas em função do ponto do caminho em que está? Aquele que acabou o seminário, aquele que esteve em Roma a doutorar-se, aquele que passou o último ano em Nova Iorque a investigar o tema Religião e Espaço Público, não leu as mesmas parábolas da mesma maneira.
Hoje tenho vontade de ler coisas inactuais. Interessa-me muito a literatura cristã dos primeiros séculos. Autores como Tertuliano, Orígenes. Tem sido um alimento muito grande. Interessam-me os espirituais, os místicos, o Maître Eckhart, o João da Cruz, Teresa D"Ávila. Mas agora estou a ler tudo da Maria Gabriela Llansol. Essa visão de conjunto é o que considero uma possibilidade de leitura. Como se não me bastasse ler um fragmento. Como se precisasse de grandes sequências para colher o sentido.
Também as leituras que faz da Bíblia são diferentes, porque vai sendo outro. A paixão hermenêutica não se exerceu no mesmo sentido.
Completamente. A importância que hoje têm os salmos, o Livro de Job, S. Paulo... Em Nova Iorque trabalhei um ano sobre a carta de S. Paulo aos romanos (que estou também a traduzir para uma nova tradução da Bíblia que se está a fazer). Esse texto, que é um dos grandes textos cristãos, um texto identitário por excelência, só nesta idade, a meio da vida, poderia perceber a sua centralidade.
O que é que lá está que não poderia perceber com 20 anos?
Não poderia perceber o drama humano. O drama do crente que Paulo encena no seu corpo. Não poderia entender a divisão interior que Paulo vive entre cristianismo e judaísmo. E não poderia perceber a centralidade que Paulo dá à cruz como lugar da salvação, da construção. Para entender os mistérios cristãos, é preciso uma vida adulta. Madalena era alguém que vivia um exílio muito grande de si mesma. Esteve como morta e num encontro com Jesus renasceu. Não é por acaso que Jesus apareceu primeiro a Madalena. Porque só quem esteve como morto pode entender a ressurreição.
Cada vez preciso menos da analogia e da metáfora.
Significa que devemos entender literalmente a maior parte do que aqui está a ser dito?
Não acho que se deva entender literalmente a Bíblia. A Bíblia precisa de interpretação. Mas o que estamos a dizer, sim, é bastante literal.
Alguma vez teve um grande naufrágio após o qual ressuscitou? E começou de novo. Não me refiro aos combates íntimos, diários.
A experiência do luto é sempre um naufrágio. A morte do meu pai foi uma experiência de desamparo, de interrogação muito forte. Mas uma vez fui ao cemitério, estive lá muito tempo. Estava sentado a olhar para o túmulo, numa conversa silenciosa. E ao meu lado puseram-se dois gatos. Aquilo fez-me muito bem.
O que é que isso quer dizer?
Não quer dizer nada. Quer dizer a doçura da vida. Mesmo no meio do luto, os sinais do presente, a narrativa da existência, continuam. Em pequeninas medidas, quando a gente sente que a vida se vem sentar ao nosso lado, mansamente, estamos a renascer. Que o processo do luto se torna um lugar de reaprendizagem, de reenvio para a própria vida.
Vou fazer uma pergunta íntima (espero não ser ofensiva). Depois da morte do seu pai, alguma vez lhe ocorreu ter um filho? Sendo que isso seria um desmantelamento de uma vida e a concepção de uma outra vida.
Sinto-me pai. Sinto que exerço a paternidade. É interessante, nos primeiros anos da ordenação fazia-me impressão que as pessoas me chamassem padre. Talvez tenha sido a minha geração que viveu assim a entrada no ministério. Pedia às pessoas que me tratassem pelo nome, e continua a haver muitas pessoas que me tratam pelo nome. Mas quando me chamam padre isso não é indiferente. Quando me chamam padre associo imediatamente a pai. Sou padre há 23 anos. Essa dimensão da minha vida também se cumpriu, mesmo não tendo nenhum filho biológico.
Ideia recorrente no seu universo poético: qual de nós é a sombra do outro?
É verdade, é. A Simone Weil propunha que se traduzisse "No princípio era o verbo" por "No princípio era a relação". Acho que se devia traduzir assim.
Etimologicamente, a palavra permite essa tradução?
Numa tradução semântica, sim. Num sentido puramente etimológico, não. Há uns brasileiros que traduzem: "No princípio era o desejo de falar." É uma tradução semântica. Acredito nisso. Não era só a palavra. Era o desejo de que a palavra fosse um elo.
A fala pressupõe um outro, um que escuta.
Claro. Mesmo quando falamos sozinhos é na expectativa de que exista um outro, mesmo que imaginário, que nos escuta.
"Os verbos transitivos inscrevem-se no domínio do "isso". Mas a verdade é que o "isso" não basta: precisamos de um "tu". O "isso" é uma coisa que possuímos. Pelo contrário, quem diz "tu" não possui coisa nenhuma, e, a bem dizer, não possui nada: permanece simplesmente em relação. E a relação é o nosso princípio" (Nenhum Caminho Será Longo).
Acredito muito nessas palavras. A relação exige um desprendimento muito grande. Como a liberdade. Hoje estamos nos lugares, e amanhã deixamo-los. Hoje estamos aqui, e amanhã partimos de viagem. Nessa arte do desprendimento, o que fica é o que demos e o que recebemos dos outros. Fica o momento, fica a ressoar. O resto é para a grande História. Acredito muito no tráfico do dom.
Parecem duas palavras que não se podem justapor, "tráfico" e "dom".
[riso] Gosto muito de ambas. Tráfico é ambivalente. É o fluir (o trânsito) e é uma certa ilegalidade. O dom, por natureza, é qualquer coisa que transcende a própria lei. O dom é da ordem do amor. Claro que me interessa um mundo justo e onde, no mínimo, há justiça. O máximo é o amor, como diz S. Paulo. E é isso que não passa, não acaba.
Tem no seu livro um capítulo que se chama Amar a Imperfeição. Contrasta com a conversa que esperamos ouvir dos padres (digo assim, assumindo a carga pejorativa que isto tem), cheia de bons sentimentos e de um desejo de perfeição.
Isso também me deixa amarelo.
Por isso se lê com surpresa este texto no qual se faz a apologia da imperfeição.
Ou faz a apologia da realidade. Deus ama-nos como somos. Sermos nós próprios é percebermos o caminho da imperfeição. O que nos mata é essa perseguição da perfeição. Não temos de ser perfeitos. Temos de ser inteiros.
Fustigamo-nos quando somos imperfeitos. A culpa é uma marca, aliás, da cultura judaico-cristã.
É um entendimento errado do que é a perfeição. A verdadeira perfeição é a de quem não tem pés e não desiste de andar. Este não desistir de si é o essencial. É preciso combater esta culpa, esta moralização em torno de modelos de perfeição que são inatingíveis, e que, muitas vezes, deixam submersa a vida como ela é. Depois acabamos por viver longe de nós mesmos.
Onde é que aprendeu isto tudo?
[sorriso] Num grão de arroz.
Conhece aquele filme de Abbas Kiarostami Onde Fica a Casa do Meu Amigo?
Ah, é tão bonito.
Acontece depois de um terramoto, no Irão. Gostava de o cruzar com o título do seu ensaio sobre a amizade, Nenhum Caminho Será Longo, para lhe perguntar quem é o seu amigo e onde fica a casa do seu amigo.
Às vezes penso - é uma coisa tola, pode até parecer pretensiosa, mas são aqueles pensamentos que nos ocorrem em horas ociosas: se tivesse de escolher um epitáfio, o que é que escolhia? O epitáfio ajuda a perceber o que é a vida, e não a morte. Gosto muito do epitáfio do Mallarmé: "O que é verdade não morre." Eu escolheria um verso de Alberto Caeiro: "E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre." É um poema sobre a vinda do Menino Jesus até à vida do poeta.
Sei que estas palavras são um mapa. Um mapa que explica a minha vida.
Que versos sublinharia desse longo poema?
Quando eu morrer, filhinho, pega-me tu ao colo, despe o meu ser cansado e humano e leva-me até esse dia que tu sabes qual é.
Qual é?
É o dia da infância. Voltamos à conversa da infância.
Transformou-se numa presença importante, um farol para a comunidade católica, em especial para uma geração. Quem é que desempenha este papel junto de si? Quem é que lhe pega ao colo, como no poema? Usemos a imagem da Pietà, tão poderosa e comovente.
A Adília diz que é uma obra dos outros. É uma frase extraordinária. Sinto-me assim. Sinto-me uma obra dos outros no sentido em que sou construído pela ternura, pela confiança, pela esperança dos outros. Sinto-me muito amparado pela amizade dos outros.
Quando se distribuiu o território de Israel pelas 12 tribos, todas tiveram um bocado de terra - menos uma. A tribo dos Levitas, que estavam ligadas ao exercício do sacerdócio no templo. A herança deles não era uma terra concreta, mas o que os irmãos lhes davam. Viviam da partilha dos outros. Eu também vivo assim. É uma vida pobre? É. É uma vida riquíssima? É. [sorriso] Sou assim.

sábado, dezembro 15, 2012

Da saloiice e da presunção

Editorial da revista Sábado de 13/12/2012

Ninguém quer o acordo ortográfico 
"Notícia de última hora para todas as crianças que estão a aprender segundo o último acordo ortográfico, para todos os professores que estão a preparar aulas segundo o último acordo ortográfico, para todas as editoras que estão a lançar livros segundo o último acordo ortográfico, para todas as empresas que passaram a fazer a sua comunicação segundo o último acordo ortográfico e, de forma geral, para todos os portugueses que estão a tentar esforçadamente mudar a forma como sempre escreveram para obedecerem às regras do último acordo ortográfico: esqueçam o último acordo ortográfico.
Esta semana, a poucos dias do fim do prazo, o Brasil anunciou que pretende adiar a aplicação desse acordo de 2013 para 2016. Mas não anunciou apenas isso. O ministro da Educação brasileiro afirmou que esses três anos não vão servir para preparar a aplicação do acordo – vão servir para o contrário. Segundo ele, o acordo actual está “muito aquém do que se poderia” fazer. 
O senador Cyro Miranda, que pertence às comissões de Educação e de Relações Exteriores, foi ainda mais claro: “Além de o novo acordo ter sido muito mal feito, os professores ficaram de fora. Precisamos de rever tudo. O novo acordo tem tantas excepções que os professores não sabem o que vão ensinar.” E não foi tudo: o senador deu a entender que o Governo brasileiro quer convencer os outros países, incluindo Portugal, a fazerem uma mudança total do acordo. Alguns desses países serão fáceis de convencer. Angola, por exemplo, já mostrou várias vezes que está contra o acordo. 
Os governos portugueses acharam que a melhor estratégia para impor o acordo ortográfico aos críticos era avançar a 200 km/hora, contra todos os obstáculos, contra todas as dúvidas e contra todos os avisos. Agora, quando se olha para trás, percebe-se que ninguém o seguiu."

Do neoliberalismo

Vasco Pulido Valente, Público 15/12/2012

Neoliberalismo? 
"A esquerda usa hoje a palavra "neoliberalismo" como antigamente, quando se proclamava marxista, usava as palavras "mais-valia", "exploração" ou "luta de classes": ou seja, sem fazer a menor ideia do está a falar. Isto não admira numa facção que nunca se distinguiu pelo estudo, pela honestidade ou pela inteligência. Mas, para nosso mal, a populaça adoptou esta "língua de pau", primitiva e estúpida, e começa a detestar o "neoliberalismo" e os "neoliberais", sobretudo os do Governo e arredores. A situação lembra muito a teoria do PREC, segundo a qual o nosso pobre e martirizado país não tinha tido uma "revolução burguesa" e devia aproveitar a trapalhada estabelecida para subir rapidamente ao "nível superior" (era assim que eles diziam) da inefável "revolução do proletariado". 
Mas, fora de brincadeiras, se não houve em Portugal uma "revolução burguesa" em 1834, houve com certeza uma reforma drástica, que mudou para sempre a sociedade indígena. Acabaram para sempre os bens "extra-comércio" da Coroa, da Igreja regular e da Universidade, que se venderam aos maiorais da diplomacia e do exército por papéis sem valor. Acabaram as restrições ao comércio (os municípios, por exemplo, que extorquiam impostos de trabalho foram drasticamente reduzidos: de mais de 3000 para um pouco menos de 400). Acabaram os privilégios de pessoas, de vilas, de instituições. E também se extinguiu o dízimo (que se pagava à Igreja secular) e as milícias (de onde se recrutara o "miguelismo"). Não chegou? Claro que não chegou, um século depois Salazar reconstituía os monopólios de Estado e, com a lei do condicionamento industrial, os monopólios de facto; e, além disso, dominava a economia através do Orçamento e do Banco de Portugal e tentou instituir sem notável sucesso um sistema corporativo. 
Mas basta ler o que neste jornal se escreveu sobre a Grécia, para perceber que a falta de um programa como o do nosso "liberalismo" e a sujeição à Turquia deixaram à Grécia uma cultura política e um regime constitucional com que nenhuma economia moderna poderia sobreviver. Na Grécia existem ainda privilégios fiscais para os grandes magnates; 135 profissões "reservadas" (como existiam em França até 1789, em Portugal até 1834 e mesmo na Europa "bárbara" e germanizada do Centro até 1848); e 700 mil funcionários públicos. Perante uma tão espantosa aberração, a troika impôs, como lhe competia, uma dose drástica de liberalismo (que, de resto, os gregos se recusam a engolir). E em Portugal repetiu a terapêutica, para nos permitir viver num mundo em que já éramos, desgraçadamente, um anacronismo. Os fanáticos que por aí andam só pensam, como de costume, em voltar para trás."

sexta-feira, dezembro 14, 2012

Não vale a pena vir às seis da manhã

Miguel Esteves Cardoso, Público 14/12/2012

Ser desabafador
"Anteontem foi um dia de documentação. Fomos às Finanças (uma declaração, para dizer que não se trabalha e não se ganha ou recebe nada, custa 6 euros e tal), à Segurança Social e a uma loja de peças para comprar uma peça que é necessária para (talvez) passar a inspecção do carro, que é hoje. 
A Maria João costuma fazer estas coisas sozinha, mas, desta vez, aceitou que eu a acompanhasse, como amigo, chofer e desabafador. Ser chofer é fácil, porque estou sempre ao lado dela. E, quando não estou, não chego a esperar por ela porque aproveito para ler. 
Só livrá-la de estacionar foi uma dádiva. Ficar no carro é a última grande desculpa para estacionar perto de onde se quer ir. Falei com um senhor da segurança da Segurança Social que me explicou o segredo de manter a boa disposição num tempo em que tanta gente está desempregada e não recebe o subsídio do desemprego a tempo de pagar a luz: é ceder à empatia e pormo-nos no lugar delas. As pessoas aproximavam-se dele já desesperadas e ele dava-lhes esperanças concretas: "Venha amanhã entre as nove e as nove e meia da manhã para buscar a senha; não vale a pena vir às seis da manhã". 
Servi, sobretudo, de desabafador. A Maria João, com justiça, queixava-se e eu ouvia. É bom ter alguém que esteja lá, de quem se goste, que ouça o nosso queixume. Mesmo que se queixe disso: não importa; já ouviu. 
Começou por ser um dia chato, mas tornou-se num dia feliz. Ser o desabafador também desabafava quem é."

quarta-feira, dezembro 12, 2012

O meu status quo é melhor que o teu

Num artigo de opinião publicado hoje no jornal Público, André Freire refere-se a Maria Filomena Mónica e Pedro Lomba como «intelectuais mediáticos, alinhados com o status quo».

Não deixa de ser engraçada a forma como gente igualmente «mediática» tem a lata, entremeada com um módico de orgulho, de se auto-excluir do «circo mediático». André Freire é habitualmente convidado para programas televisivos, fóruns radiofónicos, jornadas e outros eventos, como o são Maria Filomena Mónica e Pedro Lomba. Mas, pelos vistos, segundo o próprio, a sua presença é de outro planeta.

Igualmente espirituosa é a utilização da expressão «alinhados com o status quo». Da mesma se infere a mui nobre e sempre heróica categoria dos «desalinhados». Convém explicar o óbvio: não estar alinhado com o «status quo» não deixa de ser, também, um alinhamento.

E de que «status quo» ou «pensamento dominante» (André Freire alterna entre estas as duas qualificações), nos fala criticamente o articulista? Da democracia? Do capitalismo? Do neoliberalismo? Do pensamento hayekiano (em contraponto ao keynesiano)? Do maioritário benfiquismo? Teremos regressado à «claustrofobia democrática»?

Não vejo, no horrendo «espaço mediático» deste horrendo «status quo», grandes discriminações entre os que pensam assim, assado ou cozido. Na rua, nos jornais, na televisão e na rádio, não vislumbro falhas clamorosas de representação das várias tendências (ideológicas) da sociedade portuguesa. Entre sindicalistas, frades, senadores, ex-ministros, politólogos e políticos no activo, não tem faltado espaço a quem pretende criticar ou arrasar o «status quo». Seria bom que André Freire reconhecesse que o terrível «status quo» de que fala, tem sido marcado por um confronto livre e vivo entre liberais e neoliberais, socialistas e neo-socialistas, comunistas e neocomunistas, e por aí fora.

No que respeita ao «poder» (e à impia alternação PS/PSD), talvez André Freire não perceba, mas ainda vai a tempo de perceber, que tem sido o povo português, livremente, a rejeitar as balelas programáticas dos partidos da esquerda radical, apesar de difundidas em doses iguais no «circo mediático». É certo que pode sempre dizer-se que o povo é burro.

Por tudo isto, subjaz à «narrativa» de André Freire um modo levemente vitimizador e um tom marcadamente presunçoso, próprios de quem está ali em representação da nobre casta dos pensadores «não vendidos» (como ele). Se André Freire tem ideias (e vamos acreditar que sim), que as exponha e defenda, criticando mas respeitando, en passant, o espaço das que contrariam a cartilha putativamente «científica» e «desalinhada» que o inspira. Se não, não deixe de nos divertir, claro.

sexta-feira, dezembro 07, 2012

Il Professore Dottor Buona Fortuna

Maria Filomena Mónica, Público 07/12/2012

O evangelizador de Coimbra

"Para evitar polémicas inúteis, começo por uma declaração. Os meus adversários naturais, os poderosos, não suscitam em mim a fúria que dedico a certas franjas da esquerda. Tendo sido educada numa faculdade dominada pela ideologia salazarista e conhecido, no estrangeiro, uma instituição onde a discussão era livre, não suporto a ideia de poder vir a ser obrigada a aturar novas ortodoxias. Nas Humanidades, o risco de se confundir política e ciência é elevado.

Relembro o que anda esquecido. O fim da Universidade não consiste em formar meninos não racistas, não sexistas e não imperialistas, mas em transmitir o saber da forma mais objectiva possível. Jamais poderemos libertar-nos de todos os preconceitos, mas devemos tentar. Há uns anos, visitei a catedral de Christ"s Church em Oxford, onde se encontra um memorial em honra de J. Locke. Eis o que lá está escrito: "Sei que a verdade, por oposição à falsidade, existe e que, se as pessoas quiserem e se pensarem que a busca vale o esforço, pode ser encontrada." É por partilhar esta visão que julgo que, nas salas de aula, os docentes não podem difundir ideais políticos. A instituição académica não é um cantinho de Hyde Park onde cada um monta a sua banca. Claro que, cá fora, podemos falar de política: mas não devemos fazê-lo diante de alunos. Estes não são hereges a converter, mas jovens a quem devemos inculcar a paixão pelo saber.

Tudo isto vem a propósito de uma entrevista que Boaventura Sousa Santos, o evangelizador de Coimbra, deu à Análise Social, nº204. Dirigida por João Pina-Cabral, esta publicação pertence ao meu instituto, o ICS. Fundada por Adérito Sedas Nunes em 1963, tem um passado notável. Mesmo depois do 25 de Abril, quando as suas páginas correram o risco de ser inundadas por escrita panfletária, manteve-se fora da política.

O facto de que hoje me ocupo - a conversa conduzida por Helena Mateus Jerónimo e José Neves, directores adjuntos da revista - é revelador de mudanças profundas na instituição. Tudo começa com a primeira a recordar, em tom reverencial, a autodefinição de Sousa Santos como "um optimista trágico que procura ser um rebelde competente". Depois desta reminiscência nietzscheana, seguem-se uma análise primária sobre os malefícios das "sociedades capitalistas" e a resposta aos que o têm acusado de confundir o papel de sociólogo e o de político. Segundo ele, quem tal escreveu alimentaria no espírito "uma crença serôdia no positivismo", opção que serviria para esconderem a sua "viragem nas convicções políticas, da esquerda para a direita". Tais pessoas, argumenta, revelariam ainda "uma grande ignorância dos debates epistemológicos contemporâneos, sobretudo das epistemologias feministas e pós coloniais". Ser-me-á isto dirigido? Serei eu anti-femininista e pró-imperialista? Ou, pior ainda, de direita? Deixemos este desvio narcísico, para nos concentrarmos no que ele defende, as "epistemologias do sul". De início, imaginei que se estava a referir ao Sul geográfico, que acompanha o sal e o sol, mas não: o seu "sul" é uma entidade etérea localizada algures no firmamento da contracultura. Passo por cima do seu desprezo pela tradição ocidental e da sua proposta para a criação - imagino que com sede no Equador - de uma Universidade Popular dos Movimentos Sociais, onde a discussão intelectual estaria canalizada para "a eficácia política das lutas sociais". O mais chocante surge quando menciona os actuais governantes portugueses, aos quais nada me liga. Para Sousa Santos, dentro do conceito de povo não cabem pessoas como Vítor Gaspar ou António Borges: "À luz deste conceito, não são parte do "povo" pessoas que têm passaporte português mas nada os vincula a Portugal senão aquilo que lhes é ditado pelos seus patrões internacionais." Será que, nas minhas costas, o Estado criou um SEF ideológico em Coimbra?

À medida que me aproximava do fim, o meu espanto crescia: "O mMinistro das Finanças, Vítor Gaspar, tem passaporte português, mas não tem mais do que isso." A razão é clara: "Realmente, ele está ao serviço do capital financeiro alemão em cujos bancos se educou." E vai por aí fora: "E o mesmo se pode dizer de António Borges, que se tiver oportunidade e poder causará graves danos ao país. Entre ele, Mário Draghi, Mário Monti ou Lucas Papademos não há grandes diferenças. Têm passaportes diferentes, mas a sua lealdade última, o seu verdadeiro país, é a companhia majestático-colonial Goldman Sachs a que todos pertenceram ou pertencem." O objectivo do Governo de Passos Coelho consistiria, por conseguinte, em aproveitar a crise para conseguir que Portugal volte ao 24 de Abril. Os dislates não ficam por aqui: na sua opinião, a rua é a nova esfera pública, os cientistas sociais devem escrever "com" e não "sobre" os oprimidos e é urgente elaborar-se "uma teoria geral sobre a impossibilidade de uma teoria geral". Alguém entende esta última frase? Desde há alguns anos que uma parte significativa do poder académico tem vindo a ser ocupada por antigos revolucionários. Os novos mandarins não são melhores do que os antigos. A sua obsessão é igualmente com o recrutamento de colaboradores obedientes, com a arregimentação ideológica dos pupilos e, novidade decorrente da globalização, com o uso de redes internacionais de financiamento. É por saber isto que li, sem espanto, as benesses que Sousa Santos foi acumulando, a última das quais um subsídio de 2,42 milhões de euros atribuído pelo European Research Council, para um projecto intitulado "ALICE - Espelhos estranhos, lições imprevistas: definindo para a Europa um novo modo de partilhar as experiências do mundo", a ser executado no seu Centro de Estudos Sociais, onde trabalham 223 investigadores, subsidiados pelo Estado. O novo estudo centrar-se-á em quatro áreas, entre as quais "a democratização da democracia".

Sousa Santos não entende que a liberdade académica não é compatível com a transformação das aulas em comícios. Imagino que tenha lido Max Weber, mas o seu cérebro não integrou o que o nosso famoso antepassado disse sobre a diferença entre a vocação do político e do cientista. Vale ainda a pena reparar como estes advogados da sociedade sem classes estão atentos a questões ligadas ao seu status social. Quem não acredite veja a pose de Sousa Santos na fotografia publicada na revista. Finalmente, a sua defesa de que se deve pensar "com" e não "sobre" as massas populares é meramente retórica, uma vez que não faz a mínima tenção de viver entre os pobres - o seu trabalho de campo sobre as favelas do Rio de Janeiro apenas durou três meses -, aproveitando-se antes da "causa" para a obtenção de confortos materiais. Termino com uma citação de Voltaire, alguém que sabia do que falava: "Aqueles que conseguem fazer com que acrediteis em teses absurdas conseguirão mais tarde que façais atrocidades." Convém estar atento ao que se passa nos meios académicos."

domingo, dezembro 02, 2012

Patético, adj.: Que suscita piedade, dó ou tristeza; que causa desdém por ser ridículo ou exagerado.

Vasco Pulido Valente, Público 02/12/2012

Patético 
"O dr. Mário Sores resolveu entregar ao primeiro-ministro um manifesto, sob forma de carta, com cópia para o Presidente da República. O 74 signatários desse absurdo documento acusam Pedro Passos Coelho de levar Portugal para um "abismo", de fanatismo, de fraude, de "embuste" e de mentir ao eleitorado. E só deixam ao pobre homem duas soluções: ou mudar imediatamente de política ou a demissão. Como explicou um dos promotores deste desabafo, se Passos Coelho não obedecer, Cavaco pode sempre correr com ele, a favor de outro membro da coligação ou de um Monti indígena, que, num acesso de loucura, a coligação aprove. Não preocupa nada o dr. Mário Soares que tudo isto seja inconstitucional ou que, se por acaso se fizesse, com ou sem o beneplácito de Belém, estabeleceria o caos político geral e agravaria instantaneamente a miséria do país. 
As 78 notabilidades que se prestaram a este irresponsável exercício vão de militares (Manuel Monge e Pires Veloso, por exemplo) e de Maria Teresa Horta a um frade piedoso, desde menino amante e admirador da esquerda. Há também gente do Bloco, feministas, claro está, e uma ilustre parte da maçonaria. É por isso que o papel, tanto na sua prosa como nas suas fantasiosas pretensões, lembra irresistivelmente a velha oposição à ditadura. Os 78 não deram com certeza por que existe hoje em Portugal uma democracia, com um Parlamento e liberdade de expressão e manifestação e julgam ainda que a sua vontade vale mais do que a vontade de milhões de eleitores; ou que a sua autorizada palavra e o seu putativo prestígio se conseguem sobrepor ao insistente falazar da televisão, da rádio e dos jornais. 
O manifesto é uma interessante reminiscência do passado, que logicamente Soares se apressou a mostrar a dois representantes da sua época: Adriano Moreira e Torgal Ferreira, presumo que para angariar a bênção da Igreja. Mas, para desgraça dele, os partidos não se comoveram; nem sequer o PS. Seguro disse, com louvável cautela, que também gostava que o Governo mudasse de política; e o inimitável Zorrinho lembrou que havia "regras" para substituir o primeiro-ministro. Passos Coelho e Paulo Portas não abriram a boca; nem, oficialmente, o PSD e o CDS. E a maioria dos portugueses leu o manifesto com perplexidade. Estava provavelmente à espera de uma nova e redentora proposta política e o que lhe saiu foram ameaças sem senso e a usual inutilidade do queixume. Os génios da nossa praça começam a roçar o patético."
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