José Tolentino Mendonça, entrevistado por Anabela Mota Ribeiro (Público, 9/12/2012)
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Apresentou a Bento XVI um poema que tem por título O mistério está todo na infância (por ocasião dos 60 anos da ordenação sacerdotal do Papa).
Porquê?
Acredito muito na infância espiritual. Que é, no fundo, a
construção de uma inocência. A inocência não é o estádio antes. Antes da vida,
antes da cultura, antes das decisões fundamentais. A inocência é uma
descoberta, é um caminho, é uma decisão.
Tem a ver com a perplexidade, com a capacidade de espanto?
Tem a ver com a possibilidade de permanecer com o espanto a vida
inteira, e com uma simplicidade que nos desarma. Evidentemente, essa infância
espiritual liga-se à infância biográfica. A infância interessa-me não como um território
que deixei, e a que só em memória posso regressar, mas como projecto. Aquilo
que Jesus diz no Evangelho: "Se não fordes como crianças, não entrareis no
reino dos céus." Penso muitas vezes no que é ser uma criança.
Parece uma pergunta retórica, mas não é.
Não é, não é. Um mestre do judaísmo vem falar com Jesus à noite,
para não ser detectado e apontado pelos outros; uma das perguntas que faz é
esta: "Como é que eu, sendo velho, posso nascer de novo?" Em S. Paulo
é muito claro quando usa a imagem do parto, do nascimento perpétuo, dizendo
que: "Hoje estamos a experimentar as dores de parto." Penso o meu
presente como o lugar onde experimento as dores do parto, um nascimento que vai
acontecendo.
A infância pode ser uma espécie de casa? Quer a infância-território
biográfico, quer a infância enquanto projecto. Uma casa onde se está, onde se
volta para rememorar, para edificar. Nos seus primeiros livros, a noção de casa
era fundamental.
A casa é o lugar do estar, do ser. Embora, quando penso numa
casa, penso muitas vezes na casa de que falava o Alberto Caeiro. A casa no cimo
da colina onde vê o mundo e os poemas que partem. A casa é também uma espécie
de observatório. Um lugar onde comunicamos - não é um lugar onde nos isolamos.
Talvez porque tenha nascido numa família numerosa, e porque ao longo da minha
vida tenha vivido quase sempre em comunidades, em casas com dezenas ou centenas
de pessoas, a casa é sempre uma encruzilhada de encontros e de relações.
Voltemos à questão inicial para desenvolver o tópico do
mistério.
O prof. João dos Santos [psicanalista] dizia que o grande
segredo do homem é a sua infância.
Essa frase está na estátua de João dos Santos no Jardim das
Amoreiras. Parece que nos interpela.
O segredo, o mistério está na infância. Que é como quem diz:
está nessa dimensão silenciosa, submersa, escondida que nós trazemos.
É o território do que não sabemos de nós?
É a nuvem do não-saber, para usar um título de um clássico da
espiritualidade cristã. É esse não-saber que se torna no saber verdadeiro. Que
se torna a porta para todos os saberes. É um vazio que nos interpela. Há
dimensões da nossa vida que só são silenciosas porque não nos deixamos
interrogar por elas.
Não nos deixamos interrogar por acanhamento, com medo do que lá
está?
Já diziam os padres do deserto: "Só há um único pecado: é a
distracção." Não deixamos porque nos distraímos. O problema não é o medo.
A haste, quando sobe, também treme ao vento. É impossível não ter medo de
viver. É impossível não ter medo desta coisa espantosa e repentina que é a
vida. Viver é perigoso, dizia o João Guimarães Rosa.
Mas o desencontro nasce da distracção. Não ouvimos porque nos
dispersamos. Porque perdemos o sentido do essencial, do prioritário, e
construímos tanta coisa e não nos construímos a nós mesmos. Ficamos adiados.
Não percebemos que somos a nossa casa. Somos a nossa estrada.
Andamos constantemente fora de nós próprios?
A grande tentação é viver uma vida exilada. Os exílios acabam
por, à primeira vista, ser lugares de apaziguamento ou de distracção. A nossa
casa também nos coloca exigências, às quais nem sempre estamos disponíveis para
responder.
Enquanto padre, tem a noção de que aquilo que mais persegue as
pessoas é o medo? Falam-lhe mais do medo ou da distracção?
Não sei se é do medo. Há uma coisa muito inofensiva nas
confissões. Quando não se tem muito para dizer, diz-se: "Eu distraio-me na
oração." Parece uma coisa banal, para começar uma conversa. Mas se formos
olhar bem é a questão fundamental. "A atenção é a oração. A oração é a
atenção", dizia a Simone Weil. A atenção é que nos faz estar naquilo que
fazemos, em cada gesto, é que nos faz habitar o presente.
Essa atenção implica um comprometimento. Com um projecto, uma
ideia, uma pessoa, nós mesmos.
Implica também uma justiça, a exactidão. Se não estou atento,
não vejo. Vivo do meu preconceito. Vivo das ideias adquiridas, tantas vezes
falsas. E não acolho. Não pratico uma hospitalidade real. Penso que é isso que
falha. Às vezes passam dias e dias e parece que nada acontece, ou que não somos
visitados por nada, e isso tem a ver com o facto de não abrirmos o coração à
música da alegria que nos visita.
É preciso saber reconhecer essa música, e abrir-lhe a porta. No
ensaio sobre a amizade Nenhum Caminho Será Longo, fala do desapontamento de
um homem a quem Deus prometeu visitar. Ao crepúsculo, o homem chora a desilusão
da promessa não cumprida. Deus responde-lhe: "Por três vezes, hoje, tentei
visitar-te e todas as vezes me disseste que não."
Esperamos sempre Deus no máximo e esquecemo-nos de que ele nos
visita no mínimo. Quando os monges budistas dizem que Deus está no grão de
arroz, há nisso uma grande verdade. É no pequeno, até no insignificante, no
mais quotidiano, que Deus nos visita.
Fale-me da sua infância biográfica no que isso importa para a pessoa
em quem se tornou. E aqui estou a ir ao encontro da frase do prof. João dos
Santos.
A minha infância foi uma experiência que poderia descrever como
uma experiência de espaços. Nasci na Madeira. Com um ano de idade, fiz uma
viagem com a minha mãe, no navio Príncipe Perfeito. Fomos para
Angola, onde o meu pai já estava. Fui com os meus irmãos, era o mais pequeno.
Do Lobito, as recordações são da amplidão do espaço. As casas eram grandes. Os
espaços onde brincávamos livremente eram enormes. O meu pai, os meus tios: uma
família de pescadores.
Lembro-me de uma viagem que fiz com o meu pai. Na minha cabeça
ia também pescar. Dei comigo, para lá dos enjoos típicos de um iniciante pelo
mar fora, na borda do barco, a olhar as paisagens. Praias que ainda não tinham
sido exploradas, rochedos, o azul do mar, o fundo do mar. Eu teria sete, oito
anos. Essa contemplação despertava em mim uma emoção enorme, enorme. Ficava
boquiaberto. Como se aquela vida intacta, da paisagem do mundo, tivesse em mim
um impacto que não sabia expressar. Mas guardava aquelas imagens,
coleccionava-as dentro de mim.
O que o impressionou foi o mundo, a beleza, a natureza poderosa?
Não sei se era a beleza. Era o mundo em si. O mundo como lugar
encantatório, uma pureza original. Lembro-me daquele pequenino mundo, tão
vasto, onde, sem saber, nos estamos a construir. De uma forma quase eventual.
Depois foi a mudança para a Madeira, que teve um dramatismo mais
literário do que literal.
É uma atribuição do adulto que recupera aquele momento?
Senti que me estava a despedir daqueles lugares. Fui com o meu
cão, sozinho. Digo que foi literário porque quis chorar, abraçado ao cão,
sentindo que era a última vez que estava ali. Mas não tinha lágrimas
verdadeiras. Tinha uma dor. Uma dor que um miúdo de nove anos pode ter, mas não
eram lágrimas. Chorei lágrimas que não tinha [sorriso]. Essa despedida, talvez
encenada, marcou-me.
Como foi o regresso à Madeira?
Para os meus pais, para pessoas como eles, que perderam
determinado enquadramento do mundo e uma estabilidade económica, foi
traumático. Mas os pais conseguem sempre colocar-nos, como no filme A Vida é Bela, [noutra realidade].
Passamos pelo campo de concentração como se fosse por um jardim. As coisas, que
hoje relembro e que percebo que provocaram uma ansiedade enorme nos meus pais,
foram vividas como uma aventura. Uma aventura no porão de um barco, numa cidade
desconhecida.
A partida de Angola foi, num sentido simbólico, o seu primeiro
naufrágio? Na capa do livro de poesia Estação Central está a fotografia do naufrágio do barco Torquato, junto ao Funchal, no fim do século XIX.
A Madeira, como os lugares da infância, não são lugares de
desencantamento. Uma pequena ilha, a terra dos meus pais, dos meus avós, em
condições muito difíceis. Mas a infância não sofreu uma fractura, nem
sobressaltos. Essa capacidade de transformar as dificuldades em possibilidades
- no fundo, uma enorme capacidade de sobrevivência que a vida da infância tem -
protegeu-me. Quando penso na infância, nem por uma vez me lembro de medo, de
ansiedade. Recordo o embate do espaço da ilha. Tudo era diferente. Os cheiros.
A forma como as coisas estavam organizadas. As ruas. As pessoas. Um admirável
mundo novo para descobrir.
Falou da ausência de medo. Parece mágico na infância esse
impulso de liberdade, a ausência de limites.
Recebi isso dos meus pais. Mantinham uma atitude de confiança
que nos ajudou muito. Mesmo na escassez, na pobreza. Olhávamos para o dia de
amanhã, para o futuro, com uma enorme confiança. Hoje pergunto-me: confiança em
quê? Porquê? Confiança. Confiança na vida. Eram também pessoas religiosas.
Confiantes na protecção de Deus, que o tempo ia ser melhor, e ao mesmo tempo
muito gratos; apesar de tudo, estávamos todos juntos, ninguém se tinha perdido
pelo caminho, não tinham acontecido coisas irrecuperáveis. E isso deixava um
lastro de confiança que nos fazia olhar para a vida com serenidade.
O seu primeiro poema foi acerca de alguma destas coisas de que
estamos a falar?
O meu primeiro poema foi A infância de Herberto Helder.
Não me refiro aos poemas publicados.
Esse foi o primeiro poema. Foi no tempo em que li Photomaton & Vox, o livro que
me tocou mais fundo.
Herberto, outro madeirense. Uma filiação importante?
Claramente importante. Na infância dos outros, na efabulação
dessa vida que julgamos existir nos outros, tocamos a verdade da nossa vida.
Esse poema é sobre a minha infância. Uma infância que podia ter sido a de
Herberto Helder. Também no contexto insular. A dele, a vida numa pequena
cidade, o Funchal.
Qual é o primeiro verso do poema?
"No princípio era a ilha." Foi ali o meu princípio
biográfico e o meu princípio como poeta. Nasci ali e ali comecei a escrever.
São duas marcas, duas etapas que determinam um tempo arquetípico. O meu arché [palavra grega que significa "princípio"] foi aquele
lugar.
Que idade tinha quando descobriu Herberto?
Tinha 16 quando o comecei a ler. Foi uma grande descoberta. Foi
como se pudesse ouvir a música do mundo. Sentir que todas as coisas estavam
vivas. Um lado orgânico do real. E aqueles advérbios que nele dão mais do que
qualquer adjectivo.
A entrada no seminário, que aconteceu muito cedo (tinha 11
anos), foi a possibilidade de entrar dentro de uma biblioteca.
Vamos devagar. Espere lá.
Isso era o que o Wittgenstein dizia. Quando as pessoas se encontram,
devem dizer uma à outra: "Avança devagar." [riso] A vida dele é a
vida de um santo. Uma vida que me comove muito.
Porque é que a vida de Wittgenstein o comove?
Porque é a vida de um foragido. Há nele uma fome de humanidade,
de anonimato, de transformação e de silêncio que se encontra nos santos.
Antes de voltarmos ao seminário, e ao princípio que era a ilha,
falemos de um outro foragido de que fala nos seus poemas, Pasolini.
É outro foragido, é.
Pasolini parece encarnar uma figura maldita. É um epíteto que
vulgarmente se aplica à sua figura e obra. Mas fala dele como quem fala de um
santo.
Não serei o único. A blasfémia não está tão longe da santidade
como se pensa. Na tensão daquela vida há uma dádiva, uma capacidade de entrega,
um desejo de verdade que só um Absoluto é capaz de saciar.
"Bem-aventurados os sedentos, bem-aventurados os que têm fome e
sede."
Quando cheguei a Roma pela primeira vez, em 1989, no Palácio das
Exposições, passou uma integral do Pasolini. Gratuita. O que, para um
estudante, era irresistível. Eu tinha tempo e tinha vontade de conhecer aquele
universo.
O que é que aprendeu com Pasolini?
Acho que o Pasolini me ensinou e me ensina isto (continuo a ler,
tenho uma biblioteca que vou construindo com tudo o que sai em torno da obra dele):
quando fez o Evangelho Segundo Mateus, pensou muito em como relatar a
experiência do sagrado. Como? O primeiro caminho que tomou, a cena do baptismo
que filma em Viterbo [zona de Lácio], é um modo tradicional. Com um carácter
extático, solene, hierofânico. Filmou essa cena e entrou numa grande crise
criativa. Até que percebeu que o único modo de filmar o sagrado era [fazê-lo]
como se filmasse o profano. Como se descrevesse a realidade. Este passo foi
decisivo. O que vemos no cinema de Pasolini é que ele filma o sagrado com um
óculo do profano. E filma o profano com o óculo do sagrado.
E desse modo aproxima-os.
Diz que é uma coisa só. Por exemplo, Accattone é a história de um marginal que ele filma como se fosse o
sacrifício de um mártir.
Mas Accattone, nome do protagonista, é uma figura que facilmente
odiamos. Capaz de coisas abjectas, como roubar os próprios filhos. Ao mesmo
tempo há um amor e compaixão que nos inspira.
Os cristãos sabem que todos somos capazes de coisas abjectas.
Detesto o moralismo. Penso que o moralismo falseia o encontro connosco próprios
e com a humanidade. O que acontece aos outros acontece a cada um de nós. Dizia
o cristianíssimo Dostoievski: "Somos responsáveis por tudo perante
todos." Não sinto que qualquer um de nós seja diferente de Accattone
naquelas circunstâncias. Quero dizer: a experiência do mal atravessa todas as
vidas. Todos precisamos de ser salvos. Daí também o naufrágio. Existe em nós a
capacidade de construção, mas o remate final, aquilo que decide o que somos, só
numa relação [é dado].
É perturbador o que diz. Porque tendemos a olhar para nós a
partir de uma angular benevolente. Achamo-nos capazes dos melhores gestos,
resistimos à ideia de que podemos ser Judas.
E somos tantas vezes. Somos mesquinhos, banais, egóticos,
ressentidos. Se não tomamos consciência, disso não conseguimos a transformação.
A primeira condição da transformação é a nudez. Ser capaz de contar a sua
verdade. Gosto muito da Flannery O"Connor, que é para mim, ao lado do
Pasolini, uma mestre espiritual. Ela mostra um mundo que se diria monstruoso.
De assassinos em série. De gente capaz de tudo. "Esse mundo somos
nós." Até que acontece o encontro com a graça. É esse encontro que
transforma a nossa vida. Penso que não se pode dividir [a humanidade] entre
homens bons e homens maus. Não há rapazes maus - como dizia o Padre Américo
(essa figura tutelar de um certo século XX português). Há a experiência do mal,
que é comum a todos, que nos atravessa, corrói, domina em tantos momentos.
Falou da graça. E pergunto pelo momento anterior: o do encontro
com o mal. Estamos prevenidos para o encontro?
Não estamos. Mas esse encontro com o mal que nos habita é
absolutamente necessário para tomarmos consciência de nós. Senão somos uma
ilusão. Lidamos connosco próprios numa idealização tal que nunca aterramos
verdadeiramente na realidade. A Flannery O"Connor tem um livro de ensaios
sobre literatura chamado No Território do Diabo. Digamos que
a nossa vida é também no território do diabo. No território da tentação, da
luta, do combate interior. O grito existencialista de S. Paulo... "Quem me
livrará deste corpo de morte, que não faço o bem que quero e faço o mal que não
quero?" Todos sentimos esta forma paradoxal em que a nossa existência se
desenvolve. O moralismo faz-nos criar os bodes expiatórios. O filósofo René
Girard diz que a nossa sociedade tem um sistema vitimário. Colocamos num bode
expiatório tudo o que não queremos ver em nós próprios. Então, como os antigos
judeus faziam (colocavam num bode todos os pecados e mandavam-nos para o
deserto), colocamos numa pessoa só (o maldito, o criminoso) todos os males,
excluímos essa pessoa; e isso dá-nos um alívio muito grande. É o sistema do
beco sem saída.
Porque um dia o bode seremos nós?
Por um lado, isso. Por outro, é uma vida não salva, não
redimida. Só quando tocamos a fundo a nossa vulnerabilidade (e até quando a
amamos) é que somos capazes de dar passos noutro sentido.
Voltemos a Herberto Helder, onde estávamos no começo deste
excurso. É interessante que, estando já no seminário, o seu primeiro poema
tenha sido sobre um poeta. Não parecia assente na palavra divina.
Mas o verso No princípio era a ilha é embebido da palavra divina. Era
a meditação sobre a palavra, uma ruminação, uma apropriação. Era um corpo a
corpo com a palavra e com a poesia.
É uma bela maneira de pôr a questão. Corpo a corpo. Com a
palavra, que é uma coisa intangível. Ao mesmo tempo, sabemos que as palavras
têm poder, são actos.
Foi o meu primeiro encontro poético com a palavra. Mas já antes
escrevia. Foi muito importante a figura da minha avó materna, uma contadora de
histórias. Ela sabia alguns romances orais de cor. Uma das coisas que me
comovem muito: numa recolha recente que se fez do romanceiro oral da Madeira,
uma das pessoas que estão lá é a minha avó. A minha avó que não sabia ler nem
escrever.
Comove-o porque é uma maneira de ela perdurar?
Não. Comove-me porque a minha avó foi a minha primeira
biblioteca. Tive a sorte de receber a grande literatura - ela sabia um romance
medieval - através da voz humana, através do embalo da minha avó. Um
encantamento. Depois [esse encantamento] aconteceu na poesia do Herberto
Helder. E em poéticas como a de Ruy Belo, Eugénio de Andrade, Sophia de Mello
Breyner, o Pasolini traduzido pelo Manuel Simões. Fui encontrando um carácter -
como dizer? - polifónico dentro de um mundo encantado. Era como se estivesse
dentro de um instrumento musical cósmico que aquelas vozes me traziam.
Isso misturado com os cromos do futebol, com as brincadeiras,
uma vida completamente normal.
Os romances orais que a sua avó contava: pode dizer mais disso?
Ninguém sabe, já, aqueles romances de cor. Estão num romanceiro,
na minha estante. Mas nunca vou esquecer que tive a fortuna de os ter escutado.
Como quem ouve uma música. A Sophia disse que o poema já estava feito, e que se
nos sentássemos quietos o podíamos ouvir. Isso era verdade na minha infância.
Os grandes poemas estavam feitos. Se me sentasse perto da minha avó, podia
ouvi-los.
Como é que se chamava a sua avó?
Maria. Como todas as mulheres da minha família.
Chama-se José como todos os homens da sua família?
É verdade. Isto quer dizer alguma coisa.
A sua avó era muito religiosa?
Era. De uma religiosidade muito arcaica.
Viu-o poeta e viu-o padre?
Viu, as duas coisas. Estava no curso de Teologia, na
universidade, quando morreu. As nossas mães, as nossas avós, vêem tudo o que
somos antes de sermos. Vêem o que somos mesmo que nunca o digamos. Achamos que
somos opacos, mas se alguém nos olhar com atenção somos transparentes.
Foi através dela que chegou até si o Cântico dos Cânticos?
Não. Ouvi o Cântico dos Cânticos recitado por uma mulher também
analfabeta, que era zeladora da igreja da paróquia onde vivia. Uma vez disse-me
aquele poema e fiquei aturdido, extasiado, aquelas palavras apoderaram-se de
mim. Nunca tinha ouvido nada assim fascinado. Há um antes e um depois daquele
momento. De vez em quando, pedia-lhe que repetisse. Ela não sabia o que era
aquilo. Tinha aprendido de cor. Anos mais tarde descobri que era um texto
bíblico. Estudei-o muito. Traduzi-o para português. O S. Tomás de Aquino dizia
que, quando morresse, queria que lhe lessem o Cântico dos Cânticos, e assim aconteceu. Uma morte santa. [risos]
Neste livro de poemas põe a Patti Smith a explicar o Cântico dos Cânticos.
E ela explica tão bem... É outra foragida. Explica pelo
desamparo, pela procura, por ser apenas uma criança.
Foi para o seminário com 11 anos, escreveu o primeiro poema aos
16. Quando é que percebeu que o caminho da Teologia e o da poesia eram os seus?
Penso que fui percebendo, estou a perceber. Aos 16 anos não
sabia nada. Só sabia que amava o Herberto Helder.
Conheceu-o?
Já me encontrei com ele. Mas não temos uma relação. Tenho a
veneração que a maioria de nós tem por ele. É quanto baste.
Esse primeiro poema fala de coisas que fazia na infância.
Deitar-me na terra para olhar as estrelas. Ordenar berlindes sobre a erva.
Andar pelos baldios. Essa dimensão dos espaços...
Panteísta?
Não era panteísta, que engraçado. Era o esplendor do mundo. A
infância expande os espaços. Se calhar há um sentido religioso em tudo isto,
mas não o vivia assim.
Também se dá a coincidência de o seu primeiro livro de poesia
ter sido editado no ano da sua ordenação. É mais uma coisa a firmar a
indissolubilidade destes dois laços.
É verdade, 1990. Não pensei nisso assim, mas aconteceram ambas
as coisas no mesmo ano. A poesia, como a vida religiosa, é uma vocação. O
Rainer Maria Rilke descreve-a como um sacerdócio, como uma forma de religação.
Não as sinto como duas vocações. Sinto ambas como uma única vocação. Como um
caminho exigente, desafiador, apaixonado.
Eu sou muitos, como Pessoa ensina. Da multiplicidade, todos
somos desafiados a construir uma unidade. Mas sem dúvida que a experiência
religiosa traz uma marca específica à minha experiência poética. Também a
experiência poética desafia, por dentro, a experiência religiosa.
Explique-me melhor isso.
A experiência religiosa é uma experiência de relação, de
procura. Às vezes é uma experiência fusional - sentimo-nos dentro do mistério.
Outras vezes, porventura a maior parte das vezes, é uma experiência de
interrogação, de deserto. Por vezes crucificante. Um permanecer apesar de. Ou
contra o silêncio. Essa é a experiência da fé. E essa é também a experiência
poética, de comunhão, tão profunda que parece que nos funde com a própria
realidade. O mundo torna-se experiência. Ao mesmo tempo, nada é fácil para o
poeta. Nada lhe é dado. Ele tem de fazer aquele caminho de pedras, de pergunta
em pergunta, afinando, na dificuldade, os instrumentos da sua audição. O poema
dá a ouvir o inaudível, e nisso ajuda-me na experiência religiosa. Diz, procura
dizer, dá a ficção do dizer o indizível.
Cita Rilke no seu livro de ensaios: "Quase tudo o que
acontece é inexprimível e passa-se numa região que a palavra jamais atingiu."
É de um livro da formação da minha alma, Cartas a Um Jovem Poeta. É logo na
primeira carta: "Vire-se para si mesmo e perceba que o mais importante é
esse corpo a corpo com o que ainda não está dito." Mais à frente diz:
"E coloque-se como se fosse o primeiro homem. A sentir, a dizer, a ver as
coisas." Há, digamos, um chamamento para a experiência. Senão, é um
ornamento. O que mata o estético é o esteticismo.
Fez uma tese de doutoramento sobre versículos misteriosos de
Lucas. O que se procura é uma decifração do que lá está e onde, apesar disso,
as palavras não penetram. Estamos a falar de diferentes faces do mesmo
poliedro?
A importância da decifração... Sim, isso conta um bocado de mim.
Esse esforço de interpretar, essa paixão hermenêutica pelo mundo, pelo Homem,
por Deus. Ao mesmo tempo, o hermeneuta, o intérprete sabe que o mundo é
intraduzível. Há um lado da experiência humana que não é alcançável pelas
palavras. Como aquelas paisagens que vi pela primeira vez no barco do meu pai.
A vida, depois de dizermos tudo, há-de continuar a ser assim. Gosto de uma
expressão do [filósofo Tzvetan] Todorov que diz que a interpretação é um
naufrágio. Porque o intérprete é sempre vencido pelo texto. Acho que a nossa
vida é o testemunho dessa derrota.
É descoroçoante lidar com essa derrota e com a evidência de o
texto ser inexpugnável.
Acho que gera em nós a fome. Hoje entendo a vida como um lugar
para termos a maior fome que pudermos, a maior sede de que formos capazes. A
vida é uma máquina de construir desejo. Bem-aventurados os que têm um desejo
tão grande, tão grande, tão grande que nada pode responder. Isso faz-nos
procurar outras respostas. Pessoa também diz: "Triste de quem está
contente", não é? A insatisfação é uma dor. Mas essa ferida torna-se
fecunda, criativa.
Esta conversa, muito poética e enredada nas questões do
espírito, merece uma tradução prosaica. Uma coisa rente à vida de todos os
dias. Para que não pareça simplesmente um consolo. Ouvimos as suas palavras e
elas resgatam-nos. Talvez eu esteja a sentir um excessivo conforto com o que
diz...
Olhe que eu estou muito desconfortável! [riso] Porquê? É sempre
descer a regiões... Sou um bicho do silêncio.
Queria que se dirigisse para os não crentes, para os atordoados.
Dirijo-me quase sempre para esses. Não tenho um discurso para
crentes. Acredito muito naquilo que Simone Weil diz: "Estão dois homens,
um diz que é crente, o outro diz que é não crente. Este está mais próximo de
Deus do que o crente." O prof. Eduardo Lourenço, há uns anos, quando lhe
perguntaram o que pensava de Deus, disse: "O importante não é o que penso
de Deus. É o que Deus pensa de mim." Essa é a questão. Hoje, mais do que
uma crise do crer, há uma crise do pertencer. Onde é que as coisas em que
acredito encontram uma comunidade, um ancoradouro? Vivemos a crise do
pertencer.
Procuramos uma forma de pertença?
Há mais dificuldade na pertença do que na crença. Não é por
acaso que hoje se fala dos crentes culturais. Portugal, culturalmente, é um
país católico. O que não quer dizer que os católicos sejam a maioria da
população. São uma minoria os católicos praticantes. Sei que o que tem crescido
é uma crise em relação à pertença; e uma crença que fica por esclarecer,
aprofundar. Faltam interlocutores para essa crença. Esse é o grande desafio que
hoje se coloca à igreja: a capacidade de dialogar com os crentes que não se
reconhecem na pertença eclesial.
Parece ser, a esse nível, um interlocutor privilegiado. Os
poetas que cita, os foragidos que traz são frequentemente apelidados de ovelhas
negras de um rebanho tresmalhado. O que é que Adília Lopes tem a ver com Deus?
Ah... A Adília tem um verso: "Deus é a mulher a dias."
Como tem o verso doCristo osga. Usa a imagem dos bichos que estão
presentes na casa e pelos quais não damos. São como os sinais religiosos. Diz
que o crucifixo está na parede e que não o olhamos. Banalizamos a presença do
sagrado. Ela, de uma forma irónica, e crente, é capaz de devolver-nos essa
banalidade de Deus.
Banalidade?
Para os crentes, Deus não é um facto extraordinário. Quando
Adília mistura Deus com o quotidiano mais banal do bairro da Estefânia... Não
sei se há textos teológicos tão importantes como a poesia que a Adília Lopes
está a escrever no Portugal contemporâneo.
O que diz parece estar entre o sacrilégio e a boutade. E pergunto-me se a cúpula eclesiástica não lhe cai em
cima quando diz estas coisas. Ou aceitam a sua heterodoxia?
Isto não é uma heterodoxia. A Teologia tem consciência da sua
miséria. Isto é, do seu carácter provisório, insuficiente. A Teologia é uma tentativa
de uma palavra sobre Deus, construindo um património impressionante de
sabedoria, de humanidade. Mas, em última análise, sabemos que é no silêncio, no
símbolo, na metáfora, na parábola, no poema, que Deus se dá a ver melhor.
Os tratados de Teologia também estão cheios de parábolas. Basta
ler a Bíblia.
A Bíblia é um grande poema. Tem uma dimensão literária. Isso
também lhe dá uma grande carga revelatória. Torna-a num livro intemporal. A
Bíblia não é um catecismo.
Tem agora 47 anos. As suas leituras são substancialmente novas
em função do ponto do caminho em que está? Aquele que acabou o seminário,
aquele que esteve em Roma a doutorar-se, aquele que passou o último ano em Nova
Iorque a investigar o tema Religião e Espaço Público, não leu as mesmas parábolas
da mesma maneira.
Hoje tenho vontade de ler coisas inactuais. Interessa-me muito a
literatura cristã dos primeiros séculos. Autores como Tertuliano, Orígenes. Tem
sido um alimento muito grande. Interessam-me os espirituais, os místicos, o
Maître Eckhart, o João da Cruz, Teresa D"Ávila. Mas agora estou a ler tudo
da Maria Gabriela Llansol. Essa visão de conjunto é o que considero uma
possibilidade de leitura. Como se não me bastasse ler um fragmento. Como se
precisasse de grandes sequências para colher o sentido.
Também as leituras que faz da Bíblia são diferentes, porque vai
sendo outro. A paixão hermenêutica não se exerceu no mesmo sentido.
Completamente. A importância que hoje têm os salmos, o Livro de
Job, S. Paulo... Em Nova Iorque trabalhei um ano sobre a carta de S. Paulo aos
romanos (que estou também a traduzir para uma nova tradução da Bíblia que se
está a fazer). Esse texto, que é um dos grandes textos cristãos, um texto
identitário por excelência, só nesta idade, a meio da vida, poderia perceber a
sua centralidade.
O que é que lá está que não poderia perceber com 20 anos?
Não poderia perceber o drama humano. O drama do crente que Paulo
encena no seu corpo. Não poderia entender a divisão interior que Paulo vive
entre cristianismo e judaísmo. E não poderia perceber a centralidade que Paulo
dá à cruz como lugar da salvação, da construção. Para entender os mistérios
cristãos, é preciso uma vida adulta. Madalena era alguém que vivia um exílio
muito grande de si mesma. Esteve como morta e num encontro com Jesus renasceu.
Não é por acaso que Jesus apareceu primeiro a Madalena. Porque só quem esteve
como morto pode entender a ressurreição.
Cada vez preciso menos da analogia e da metáfora.
Significa que devemos entender literalmente a maior parte do que
aqui está a ser dito?
Não acho que se deva entender literalmente a Bíblia. A Bíblia
precisa de interpretação. Mas o que estamos a dizer, sim, é bastante literal.
Alguma vez teve um grande naufrágio após o qual ressuscitou? E
começou de novo. Não me refiro aos combates íntimos, diários.
A experiência do luto é sempre um naufrágio. A morte do meu pai
foi uma experiência de desamparo, de interrogação muito forte. Mas uma vez fui
ao cemitério, estive lá muito tempo. Estava sentado a olhar para o túmulo, numa
conversa silenciosa. E ao meu lado puseram-se dois gatos. Aquilo fez-me muito
bem.
O que é que isso quer dizer?
Não quer dizer nada. Quer dizer a doçura da vida. Mesmo no meio
do luto, os sinais do presente, a narrativa da existência, continuam. Em
pequeninas medidas, quando a gente sente que a vida se vem sentar ao nosso
lado, mansamente, estamos a renascer. Que o processo do luto se torna um lugar
de reaprendizagem, de reenvio para a própria vida.
Vou fazer uma pergunta íntima (espero não ser ofensiva). Depois
da morte do seu pai, alguma vez lhe ocorreu ter um filho? Sendo que isso seria
um desmantelamento de uma vida e a concepção de uma outra vida.
Sinto-me pai. Sinto que exerço a paternidade. É interessante,
nos primeiros anos da ordenação fazia-me impressão que as pessoas me chamassem
padre. Talvez tenha sido a minha geração que viveu assim a entrada no
ministério. Pedia às pessoas que me tratassem pelo nome, e continua a haver
muitas pessoas que me tratam pelo nome. Mas quando me chamam padre isso não é indiferente.
Quando me chamam padre associo imediatamente a pai. Sou padre há 23 anos. Essa
dimensão da minha vida também se cumpriu, mesmo não tendo nenhum filho
biológico.
Ideia recorrente no seu universo poético: qual de nós é a sombra
do outro?
É verdade, é. A Simone Weil propunha que se traduzisse "No
princípio era o verbo" por "No princípio era a relação". Acho
que se devia traduzir assim.
Etimologicamente, a palavra permite essa tradução?
Numa tradução semântica, sim. Num sentido puramente etimológico,
não. Há uns brasileiros que traduzem: "No princípio era o desejo de
falar." É uma tradução semântica. Acredito nisso. Não era só a palavra.
Era o desejo de que a palavra fosse um elo.
A fala pressupõe um outro, um que escuta.
Claro. Mesmo quando falamos sozinhos é na expectativa de que
exista um outro, mesmo que imaginário, que nos escuta.
"Os verbos transitivos inscrevem-se no domínio do
"isso". Mas a verdade é que o "isso" não basta: precisamos
de um "tu". O "isso" é uma coisa que possuímos. Pelo contrário,
quem diz "tu" não possui coisa nenhuma, e, a bem dizer, não possui
nada: permanece simplesmente em relação. E a relação é o nosso princípio"
(Nenhum Caminho Será Longo).
Acredito muito nessas palavras. A relação exige um
desprendimento muito grande. Como a liberdade. Hoje estamos nos lugares, e
amanhã deixamo-los. Hoje estamos aqui, e amanhã partimos de viagem. Nessa arte
do desprendimento, o que fica é o que demos e o que recebemos dos outros. Fica
o momento, fica a ressoar. O resto é para a grande História. Acredito muito no
tráfico do dom.
Parecem duas palavras que não se podem justapor,
"tráfico" e "dom".
[riso] Gosto muito de ambas. Tráfico é ambivalente. É o fluir (o
trânsito) e é uma certa ilegalidade. O dom, por natureza, é qualquer coisa que
transcende a própria lei. O dom é da ordem do amor. Claro que me interessa um
mundo justo e onde, no mínimo, há justiça. O máximo é o amor, como diz S.
Paulo. E é isso que não passa, não acaba.
Tem no seu livro um capítulo que se chama Amar a Imperfeição. Contrasta
com a conversa que esperamos ouvir dos padres (digo assim, assumindo a carga
pejorativa que isto tem), cheia de bons sentimentos e de um desejo de
perfeição.
Isso também me deixa amarelo.
Por isso se lê com surpresa este texto no qual se faz a apologia
da imperfeição.
Ou faz a apologia da realidade. Deus ama-nos como somos. Sermos
nós próprios é percebermos o caminho da imperfeição. O que nos mata é essa
perseguição da perfeição. Não temos de ser perfeitos. Temos de ser inteiros.
Fustigamo-nos quando somos imperfeitos. A culpa é uma marca,
aliás, da cultura judaico-cristã.
É um entendimento errado do que é a perfeição. A verdadeira
perfeição é a de quem não tem pés e não desiste de andar. Este não desistir de
si é o essencial. É preciso combater esta culpa, esta moralização em torno de
modelos de perfeição que são inatingíveis, e que, muitas vezes, deixam submersa
a vida como ela é. Depois acabamos por viver longe de nós mesmos.
Onde é que aprendeu isto tudo?
[sorriso] Num grão de arroz.
Conhece aquele filme de Abbas Kiarostami Onde Fica a Casa do Meu Amigo?
Ah, é tão bonito.
Acontece depois de um terramoto, no Irão. Gostava de o cruzar
com o título do seu ensaio sobre a amizade, Nenhum Caminho Será Longo, para lhe perguntar quem é o seu amigo
e onde fica a casa do seu amigo.
Às vezes penso - é uma coisa tola, pode até parecer pretensiosa,
mas são aqueles pensamentos que nos ocorrem em horas ociosas: se tivesse de
escolher um epitáfio, o que é que escolhia? O epitáfio ajuda a perceber o que é
a vida, e não a morte. Gosto muito do epitáfio do Mallarmé: "O que é
verdade não morre." Eu escolheria um verso de Alberto Caeiro: "E é
porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre." É um poema sobre a
vinda do Menino Jesus até à vida do poeta.
Sei que estas palavras são um mapa. Um mapa que explica a minha
vida.
Que versos sublinharia desse longo poema?
Quando eu morrer, filhinho, pega-me tu ao colo, despe o meu ser
cansado e humano e leva-me até esse dia que tu sabes qual é.
Qual é?
É o dia da infância. Voltamos à conversa da infância.
Transformou-se numa presença importante, um farol para a
comunidade católica, em especial para uma geração. Quem é que desempenha este
papel junto de si? Quem é que lhe pega ao colo, como no poema? Usemos a imagem
da Pietà, tão poderosa e comovente.
A Adília diz que é uma obra dos outros. É uma frase
extraordinária. Sinto-me assim. Sinto-me uma obra dos outros no sentido em que
sou construído pela ternura, pela confiança, pela esperança dos outros.
Sinto-me muito amparado pela amizade dos outros.
Quando se distribuiu o território de Israel pelas 12 tribos,
todas tiveram um bocado de terra - menos uma. A tribo dos Levitas, que estavam
ligadas ao exercício do sacerdócio no templo. A herança deles não era uma terra
concreta, mas o que os irmãos lhes davam. Viviam da partilha dos outros. Eu
também vivo assim. É uma vida pobre? É. É uma vida riquíssima? É. [sorriso] Sou
assim.