Henrique Monteiro, jornalista do Expresso e Director Editorial para as Novas Plataformas do grupo Impresa Publishing, veio a terreiro defender o Acordo Ortográfico, em artigo publicado na revista Actual, perdão, Atual, dedicando-o expressamente a «Vasco Graça Moura e a todos os opositores do Acordo Ortográfico». Simpático.
Lê-se, em parangonas: «Duas décadas depois de concluído, quatro anos depois de aprovado por ampla maioria no Parlamento, milhões de euros de investimentos depois, renasce a ofensiva contra o Acordo Ortográfico. Vamos falar de forma diferente? Claro que não! O que há é muita teimosia e alguma ignorância.»
Ponto de partida de Henrique Monteiro: os opositores do Acordo Ortográfico são teimosos e um pouco ignorantes. Supõe-se que os apoiantes do Acordo Ortográfico sejam flexíveis e menos ignorantes. Para início de conversa, nada melhor do que colocar as coisas e as pessoas no seu devido lugar. «Caladinhos, aí, e ouçam o que há a saber sobre esta matéria».
Para além da questão económica-não-deitem-o-dinheiro-para-o-lixo («milhões de euros depois») e da formal-o-respeitinho-é-muito-bonito («aprovado por ampla maioria no Parlamento»), Henrique Monteiro consome duas páginas da revista Actual, perdão, Atual, com um único argumento: se já não escrevemos farmácia com ‘ph’, praia com ‘y’ (como Camões) e pai com ‘e’ – ou seja: se a língua «evoluiu» -, porque carga d’água teimosamente resistimos (plural majestático, atenção) a aceitar mais uma «evolução»?
Ora, no que toca a argumentos, este é de um gigantismo anão. Em primeiro lugar, porque sabota, em definitivo, qualquer ideia de estabilidade da língua. Abre a porta a novas reformas e a mais «milhões» perdidos, à laia de futuros decretos. O que, na perspectiva de Henrique Monteiro, está muito bem: se «evoluirmos» de ‘humidade’ para ‘umidade’, só um teimoso lhe pode resistir. Algum dia podemos parar? Que horror: não! Do ‘para’ ao ‘pra’ vai uma mesquinha vogal que se opõe à «evolução».
Em segundo lugar, é um argumento dúplice: se não houve «evolução» em Portugal, e se se deve aceitar que a língua evolui de forma «natural», para quê forçá-la por conta do que é praticado noutro país de língua portuguesa? Para além de «natural», a evolução pode, afinal, ser «compulsiva»?
Em terceiro lugar, como o próprio Henrique Monteiro reconhece e parece aceitar de bom grado, se a forma de acentuar ou o efeito das consoantes mudas nada ou pouco tem que ver com o modo de escrever, para quê aproximar ou afastar uma coisa da outra, como o acordo parece discricionariamente fazer? Se ‘facto’ se mantém ‘facto’, por que razão ‘acto’ passa a ‘ato’? E como distinguir ‘para’ (preposição) de ‘para’ (do verbo parar) sem o acento agudo? Mistério.
Termino com a transcrição de um artigo do teimoso e um nadinha ignorante Nuno Pacheco (jornalista do Público), intitulado «Omens sem H»:
"Espantam-se? Não se espantem. Lá chegaremos. No Brasil, pelo menos, já se escreve "umidade". Para facilitar? Não parece. A Bahia, felizmente, mantém orgulhosa o seu H (sem o qual seria uma baía qualquer), Itamar Assumpção ainda não perdeu o P e até Adriana Calcanhotto duplicou o T do nome porque fica bonito e porque sim.
Isto de tirar e pôr letras não é bem como fazer lego, embora pareça. Há uma poética na grafia que pode estragar-se com demasiadas lavagens a seco. Por exemplo: no Brasil há dois diários que ostentam no título esta antiguidade: Jornal do Commercio. Com duplo M, como o genial Drummond. Datam ambos dos anos 1820 e não actualizaram o nome até hoje. Comércio vem do latim commercium e na primeira vaga simplificadora perdeu, como se sabe, um M. Nivelando por baixo, temendo talvez que o povo ignaro não conseguisse nunca escrever como a minoria culta, a língua portuguesa foi perdendo parte das suas raízes latinas. Outras línguas, obviamente atrasadas, viraram a cara à modernização. É por isso que, hoje em dia, idiomas tão medievais quanto o inglês ou o francês consagram pharmacy e pharmacie (do grego pharmakeia e do latim pharmacïa) em lugar de farmácia; ou commerce em vez de comércio. O português tem andado, assim, satisfeito, a "limpar" acentos e consoantes espúrias. Até à lavagem de 1990, a mais recente, que permite até ao mais analfabeto dos analfabetos escrever sem nenhum medo de errar. Até porque, felicidade suprema, pode errar que ninguém nota. "É positivo para as crianças", diz o iluminado Bechara, uma das inteligências que empunha, feliz, o facho do Acordo Ortográfico.
É verdade, as crianças, como ninguém se lembrou delas? O que passarão as pobres crianças inglesas, francesas, holandesas, alemãs, italianas, espanholas, em países onde há tantas consoantes duplas, tremas e hífens? A escrever summer, bibliographie, tappezzería, damnificar, mitteleuropäischen? Já viram o que é ter de escrever Abschnitt für sonnenschirme nas praias em vez de "zona de chapéus de sol"? Por isso é que nesses países com línguas tão complicadas (já para não falar na China, no Japão ou nas Arábias, valha-nos Deus) as crianças sofrem tanto para escrever nas línguas maternas. Portugal, lavador-mor de grafias antigas, dá agora primazia à fonética, pois, disse-o um dia outra das inteligências pró-Acordo, "a oralidade precede a escrita". Se é assim, tirem o H a homem ou a humanidade que não faz falta nenhuma. E escrevam Oliúde quando falarem de cinema. A etimologia foi uma invenção de loucos, tornemo-nos compulsivamente fonéticos.
Mas há mais: sabem que acabou o café-da-manhã? Agora é café da manhã. Pois é, as palavras compostas por justaposição (com hífens) são outro estorvo. Por isso os "acordistas" advogam cor de rosa (sem hífens) em vez de cor-de-rosa. Mas não pensaram, ó míseros, que há rosas de várias cores? Vermelhas? Amarelas? Brancas? Até cu-de-judas deixou, para eles, de ser lugar remoto para ser o cu do próprio Judas, com caixa alta, assim mesmo. Só omens sem H podem ter inventado isto, é garantido."