O frio como lembrança do futuro
Miguel Esteves Cardoso, no Público de 04/02/2012
O frio
"Está frio. Seria bom acordarmos ao meio-dia, chatearmo-nos com o tempo e deitarmo-nos às seis da tarde. A hibernação faz sentido. Foi pena a evolução ter-nos roubado essa capacidade, se é que alguma vez passámos por ursos, que é o mais provável.
Só com muito optimismo se pode dizer, como já ouvi, que, a partir do meio-dia, as tardes parecem as madrugadas frias do princípio do Verão. Está frio e a chatice do frio, para quem tem sorte, é estar sempre a mudar de temperatura. Só na cama, quando se acorda ou depois de amor carnal, é que se fica com a temperatura certa.
Durante o resto do dia e da noite ou se está frio de mais ou quente de mais, ou, pior ainda, a transitar de frio de mais para não suficientemente quente ou de quente de mais para um frio demoníaco.
Cada abertura de uma porta, cada vestir ou despir de uma camisola, cada entrada ou saída duma casa, dum carro ou duma sala é uma ameaça, um ataque, uma desilusão. O frio é uma lembrança de como dói não estarmos livres de sofrer (embora o resto do mundo nos ache com sorte).
Está frio. Mas não há ninguém que nos defenda. Até porque estamos, porventura irritantemente, melhores do que os outros todos. Que também não estão com calor.O frio é a nossa praga, rainha, oportunidade de nos passarmos para o outro lado. O frio que está é uma lembrança do futuro. É um sinal que temos de lutar para estarmos quentes. Cada dia é uma queda física, à espera de uma ascensão de qualquer espécie. Aqueça-se."
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