domingo, outubro 31, 2010
O Autódromo do Estoril recebeu, este fim-de-semana, o Grande Prémio de Portugal de Motociclismo. A corrida de 500 cc está, neste preciso momento, a decorrer. O duelo Rossi/Lorenzo está ao rubro (apesar de Lorenzo ser já campeão). Alguma televisão portuguesa, em canal aberto, está a transmitir? Não. Não é bola.
Obrigado, Fernanda
A tendência ou a propensão do ser humano para o alheamento e para a distracção em relação às questões fundamentais – tanto as ontológicas ou metafísicas, como as de ordem moral e ética – marcam indelevelmente o estado civilizacional em que actualmente nos encontramos estacionados. Felizmente que, neste torpor de ‘paddock’ e nesta languidez sovina, espíritos há que, pela inteligência e pela sensibilidade de que foram dotados os corpos que os acolhem, conseguem libertar-se de todas as alienações – cujas origens, dependendo dos continentes, podem ir da fome e da repressão, aos espartilhos que as estruturas sociais vigentes, de origem capitalista, impõem – e ver mais além.
Vem isto a propósito da problemática da cor dos pensos rápidos. Quero, desde já, agradecer, penhorado, à Fernanda Câncio o facto de me ter permitido desentorpecer as meninges. E porque o momento é solene, a exigir reflexão aturada, quero deixar, desde já, o meu mais sério contributo para a questão agora levantada, alertando a sociedade portuguesa e o mundo (deixemo-nos de falsas modéstias) para mais três casos de gritante discriminação e abuso:
- Betadine. Em 1858, o Sr. Ludwig Claus, fundador da Clauspharma, mais tarde renomeada Mundipharma AG, deu a conhecer ao mundo aquele que viria a ser, várias décadas depois, o mais difundido dos antissépticos. Sabe-se agora que a sua cor – castanho escuro ligeiramente avermelhado – terá tido origem numa particular circunstância: o affair clandestino (passe a redundância) que o Sr. Ludwig teve com uma criada mulata (que explorou até à exaustão). Para disfarçar as sevícias infligidas no corpo da pobre rapariga, o Sr. Ludwig terá chegado a uma fórmula cuja cor, quando aplicada na pele da vítima, se tornava imperceptível. O que o Sr. Ludwig não previu, foi o imenso êxito deste produto que, por força da sua eficácia, veio a ser adoptado por todo o mundo. Ora, como é agora mais do que óbvio, a sua aplicação na pele do homem branco ou amarelo constitui um desrespeito intolerável. Alerta-se, pois, a UE e a Mundipharma AG, com sede em Basileia, para esta discriminação que, como todas as discriminações, atenta contra a dignidade humana.
- Sutura. Diz-nos a Wikipedia que o material usado nos pontos cirúrgicos deve ser forte, não tóxico, hipoalergénico e flexível. O que falta dizer? Obviamente isto: a cor da sutura deve estar adequada à cor da pele. Sei do que falo. Há uns anos atrás, sujeite-me a intervenção cirúrgica por causa de uma unha encravada (coisa que fez as delícias do hipocondríaco que me habita, após anos e anos de queixumes). O hálux levou cerca de dez pontos cirúrgicos. A cor da linha: castanha escura. Hoje sei por que razão fui acometido, no pós-operatório, de depressão profunda: a diferença entre a cor da sutura e a cor da pele (entre o rosa pálido e o verde enfermo) deu origem à persistência de uma imagem impregnada de contraste, que ainda hoje me persegue. Estou, aliás, em crer, que boa parte dos problemas do foro psicológico que se abatem sobre doentes suturados, passa invariavelmente por esta forma de discriminação. Pede-se à Ordem dos Médicos e à OMS que se tomem medidas urgentes.
- Pensos higiénicos. Por razões de decoro, refiro apenas a questão clamorosa do contraste. A rever a.s.a.p..
Em todo caso, Fernanda: valeu!
Vem isto a propósito da problemática da cor dos pensos rápidos. Quero, desde já, agradecer, penhorado, à Fernanda Câncio o facto de me ter permitido desentorpecer as meninges. E porque o momento é solene, a exigir reflexão aturada, quero deixar, desde já, o meu mais sério contributo para a questão agora levantada, alertando a sociedade portuguesa e o mundo (deixemo-nos de falsas modéstias) para mais três casos de gritante discriminação e abuso:
- Betadine. Em 1858, o Sr. Ludwig Claus, fundador da Clauspharma, mais tarde renomeada Mundipharma AG, deu a conhecer ao mundo aquele que viria a ser, várias décadas depois, o mais difundido dos antissépticos. Sabe-se agora que a sua cor – castanho escuro ligeiramente avermelhado – terá tido origem numa particular circunstância: o affair clandestino (passe a redundância) que o Sr. Ludwig teve com uma criada mulata (que explorou até à exaustão). Para disfarçar as sevícias infligidas no corpo da pobre rapariga, o Sr. Ludwig terá chegado a uma fórmula cuja cor, quando aplicada na pele da vítima, se tornava imperceptível. O que o Sr. Ludwig não previu, foi o imenso êxito deste produto que, por força da sua eficácia, veio a ser adoptado por todo o mundo. Ora, como é agora mais do que óbvio, a sua aplicação na pele do homem branco ou amarelo constitui um desrespeito intolerável. Alerta-se, pois, a UE e a Mundipharma AG, com sede em Basileia, para esta discriminação que, como todas as discriminações, atenta contra a dignidade humana.
- Sutura. Diz-nos a Wikipedia que o material usado nos pontos cirúrgicos deve ser forte, não tóxico, hipoalergénico e flexível. O que falta dizer? Obviamente isto: a cor da sutura deve estar adequada à cor da pele. Sei do que falo. Há uns anos atrás, sujeite-me a intervenção cirúrgica por causa de uma unha encravada (coisa que fez as delícias do hipocondríaco que me habita, após anos e anos de queixumes). O hálux levou cerca de dez pontos cirúrgicos. A cor da linha: castanha escura. Hoje sei por que razão fui acometido, no pós-operatório, de depressão profunda: a diferença entre a cor da sutura e a cor da pele (entre o rosa pálido e o verde enfermo) deu origem à persistência de uma imagem impregnada de contraste, que ainda hoje me persegue. Estou, aliás, em crer, que boa parte dos problemas do foro psicológico que se abatem sobre doentes suturados, passa invariavelmente por esta forma de discriminação. Pede-se à Ordem dos Médicos e à OMS que se tomem medidas urgentes.
- Pensos higiénicos. Por razões de decoro, refiro apenas a questão clamorosa do contraste. A rever a.s.a.p..
Em todo caso, Fernanda: valeu!
sexta-feira, outubro 15, 2010
Emídio Rangel: o pândego-mor
Há qualquer coisa de profundamente errado, e por isso imensamente curioso, no comportamento deste fazedor de opinião, ex-vendedor de políticos enquanto sabonetes. O grau de caducidade mental resulta num espectáculo que a maioria julga deprimente e, os mais sensíveis, ofensivo. Com um pouquinho de esforço, consegue-se vislumbrar o lado burlesco do apego canídeo de Rangel ao Eng. José Sócrates – mais fiel a este do que o próprio. À impudicícia argumentativa aliam-se sucessivas fugas para a frente, próprias de quem já não se ouve a si próprio e tratou de criar uma realidade paralela por onde se passeia, gozando momentos de relativa auto-complacência. O exercício, mais do que penoso, é, a espaços, hilariante, sobretudo quando juntamos à coisa o olhar meio desesperado, meio conformado, de um estóico Carlos Abreu Amorim. Um momento televisivo semanal imperdível. Desde Mohammed Saeed al-Sahaf que não me ria tanto.
O que tem de ser feito
A pior coisa que o Dr. Passos Coelho poderia fazer, numa época em que os factos lhe dão razão mas a opinião pública tende a desculpabilizar a irresponsabilidade deste ridículo primeiro-ministro e a carregar o PSD com responsabilidades passadas (?!), presentes (?!) e, sobretudo, futuras (?!?!!?), era lançar no ar a ideia de que o orçamento é para chumbar, seja ele qual for.
Da mesma forma que é supremamente cretino pedir ao Dr. Passos Coelho que pré-aprove um orçamento do qual apenas se conhecem «linhas gerais», mais ainda quando estas evidenciam a obsessão deste governo por mais e mais impostos, e um despudorado menosprezo pelo imenso trabalho que poderia ser feito no lado da despesa, o PSD cometeria um erro caso optasse pelo pré-chumbo do mesmo.
Há que esperar pelo orçamento e pela correspondente dissecação. De seguida, o PSD deve negociar. Deve exigir. Deve provar que há outro caminho.
A negociação é, aqui, a pedra de toque: só com a negociação o PSD poderá melhorar um orçamento recessivo ou, em caso de autismo por parte do governo, expor a céu aberto a tendência autoritária e anti-democrática (já lendária) de um primeiro-ministro que insiste em não perceber que não tem a maioria absoluta e que ceder aqui ou acolá não é sinónimo de derrota e vergonha.
Nenhum português deveria recear a não aprovação do orçamento (caso o PS insista em não negociar) e a propalada demissão de Sócrates. Nenhum. Nenhum português deveria dar crédito à chantagem que está a ser feita pelo PS. Apesar de ser sensível ao argumento de que, com o eventual chumbo do orçamento, se assistirá à opera meio bufa, meio dramática, levada a cabo por um primeiro-ministro em overacting no papel de Calimero, sei que no dia em que Portugal se livrar desta personagem politicamente cega e surda, democraticamente insidiosa e factualmente fantasiosa, virar-se-á a página de um longo consolado responsável não apenas por uma grave crise económica e financeira, mas também por um estilo de fazer política quezilento, desleal e repleto de sombras. Só por causa disto, estaríamos no bom caminho.
Da mesma forma que é supremamente cretino pedir ao Dr. Passos Coelho que pré-aprove um orçamento do qual apenas se conhecem «linhas gerais», mais ainda quando estas evidenciam a obsessão deste governo por mais e mais impostos, e um despudorado menosprezo pelo imenso trabalho que poderia ser feito no lado da despesa, o PSD cometeria um erro caso optasse pelo pré-chumbo do mesmo.
Há que esperar pelo orçamento e pela correspondente dissecação. De seguida, o PSD deve negociar. Deve exigir. Deve provar que há outro caminho.
A negociação é, aqui, a pedra de toque: só com a negociação o PSD poderá melhorar um orçamento recessivo ou, em caso de autismo por parte do governo, expor a céu aberto a tendência autoritária e anti-democrática (já lendária) de um primeiro-ministro que insiste em não perceber que não tem a maioria absoluta e que ceder aqui ou acolá não é sinónimo de derrota e vergonha.
Nenhum português deveria recear a não aprovação do orçamento (caso o PS insista em não negociar) e a propalada demissão de Sócrates. Nenhum. Nenhum português deveria dar crédito à chantagem que está a ser feita pelo PS. Apesar de ser sensível ao argumento de que, com o eventual chumbo do orçamento, se assistirá à opera meio bufa, meio dramática, levada a cabo por um primeiro-ministro em overacting no papel de Calimero, sei que no dia em que Portugal se livrar desta personagem politicamente cega e surda, democraticamente insidiosa e factualmente fantasiosa, virar-se-á a página de um longo consolado responsável não apenas por uma grave crise económica e financeira, mas também por um estilo de fazer política quezilento, desleal e repleto de sombras. Só por causa disto, estaríamos no bom caminho.
segunda-feira, outubro 11, 2010
Eu, carestia
A 24 de Fevereiro de 2010, Manuela Ferreira Leite afirmava:
Manuela Ferreira Leite respondeu:
Há pouco mais de um ano atrás, Portugal assistiu a uma corrida eleitoral que colocou frente-a-frente duas concepções distintas da realidade. De um lado, um primeiro-ministro em funções que, desapertando os cordões à bolsa estatal em ano de eleições, no seguimento, aliás, do que já havia feito em 2008, declarava que Portugal era um país cuja economia vendia saúde (e só não vendia mais por causa de uma crise «exterior») e cujo sistema financeiro, apesar do BPN e BPP, era dos mais sólidos da UE. E acrescentava: tudo o que fosse dito em contrário, não passava de pessimismo, bota-abaixismo e conservadorismo bacoco. Tudo estava bem e tudo seria levada a cabo (o TGV, o aeroporto, etc.).
Do outro lado, a principal líder do partido da oposição, Manuela Ferreira Leite, alertava o país para a grave situação de Portugal no que tocava ao endividamento externo, aos sinais de arrefecimento da economia e às perspectivas de desequilíbrio orçamental. Defendia o emagrecimento do Estado (da sua despesa corrente primária), o adiamento ou o fim de alguns investimentos públicos (o TGV, o aeroporto, a terceira ponte, etc.) e defendia que o modelo de crescimento português não podia continuar a assentar no investimento público, pela simples razão do país não estar em condições de o sustentar.
De um lado, um primeiro-ministro que insistia em representar intermitentemente um de dois papeis (por vezes conseguindo fundir os dois): o de optimista basbaque e cego, ou o de demagogo e cínico. A 16 de Setembro de 2009, numa visita ao distrito de Setúbal, José Sócrates dizia:
Passados três meses, na mensagem de Natal, o primeiro-ministro prosseguia com o discurso da «esperança» e da «retoma»:
Há que retirar várias conclusões. A primeira, e mais evidente, é que José Sócrates mentiu sistematicamente ao país ou, em alternativa (qual delas a mais grave), tinha uma pálida noção da realidade que enfrentava desde o ano passado. Nesse sentido, caberá ao portugueses despedi-lo por incompetência e trafulhice (já que o homem não tem a dignidade de se retirar). A segunda, é que Manuela Ferreira Leite tinha razão. Nunca será demais dizê-lo. A terceira, que muitos tentam disfarçar com a «crise internacional», é que o socialismo é autofágico, não pelo jejum mas pela gula e obesidade mórbida. No Estado socialista – que foi sempre o nosso, embora em menor grau com o PSD no poder - a riqueza produzida passa a estar ao serviço de um Estado que, chamando a si a distinta e apreciável função de redistribuir os rendimentos, se torna toxicodependente daquele que é o instrumento por excelência que lhe permite sobreviver anos a fio, fingindo tratar-se de uma entidade abstracta, bondosa e competente: os impostos. A tendência do Estado socialista há-de ser sempre, por definição, a de cobrar mais para gastar mais, e a de gastar mais para justificar cobrar ainda mais. É um ciclo vicioso, imparável, sem direito a reversão ou correcção. Os impostos hão-de estar sempre disponíveis para salvar a face de um Estado gordo e guloso, repleto de necroses e disfunções diabéticas, tomado de assalto pela nomenklatura partidária e por interesses económicos obscuros (muitos bancos e empresas privadas ou semi-privadas sobrevivem a coberto do guarda-chuva estatal, para prejuízo dos utentes). Em trinta e cinco anos, nunca ninguém ousou baixar a carga fiscal, porque nunca o Estado e as mordomias que serve, pararam de crescer. Para quê? Para deixar o dinheiro nas mãos do malandro e néscio povo? E os apparatchikes que há para alimentar?
Agora? Agora dizem-nos que não há alternativa, que não se pode chumbar o orçamento, que há que disfarçar as coisas por causa do mercado, que um país sem um orçamento aprovado, mesmo que mau, é um país perdido. Os mais cínicos dizem-nos: é deixar derreter o Sr. Bad English em banho-maria, mais uns meses, para não perturbar as presidências e para o PSD ganhar fôlego nas sondagens. O país? Como diria a outra, isso agora não interessa para nada.
“A verdade é que não tendo nós os mesmos números que a Grécia estamos rigorosamente no mesmo caminho. A evolução do nosso endividamento e do nosso défice das contas públicas está exactamente no mesmo caminho que está a Grécia. Se não fizermos nada daqui a dois anos estamos com estatísticas tão más ou piores que a Grécia”Em resposta a estas declarações, um pesaroso e indignado Vieira da Silva, declarou-se chocado e acusou publicamente a então líder do PSD de “irresponsabilidade” (palavra gasta, esta). Da parte do PS, houve quem tivesse exigido que Manuela Ferreira Leite se «retractasse».
Manuela Ferreira Leite respondeu:
“Seria estranho num país em que toda a gente - responsáveis - mente, e que não se retracta, passasse a ser quem alerta para as verdades que tivesse que se retractar”Hoje é sabido e reconhecido que, tirando o efeito provocado pelo operação de bailout do Anglo Irish Bank (e também do Allied Irish Banks), levado a cabo pelo governo irlandês, Portugal é, logo a seguir à Grécia, o pior dos PIGS.
Há pouco mais de um ano atrás, Portugal assistiu a uma corrida eleitoral que colocou frente-a-frente duas concepções distintas da realidade. De um lado, um primeiro-ministro em funções que, desapertando os cordões à bolsa estatal em ano de eleições, no seguimento, aliás, do que já havia feito em 2008, declarava que Portugal era um país cuja economia vendia saúde (e só não vendia mais por causa de uma crise «exterior») e cujo sistema financeiro, apesar do BPN e BPP, era dos mais sólidos da UE. E acrescentava: tudo o que fosse dito em contrário, não passava de pessimismo, bota-abaixismo e conservadorismo bacoco. Tudo estava bem e tudo seria levada a cabo (o TGV, o aeroporto, etc.).
Do outro lado, a principal líder do partido da oposição, Manuela Ferreira Leite, alertava o país para a grave situação de Portugal no que tocava ao endividamento externo, aos sinais de arrefecimento da economia e às perspectivas de desequilíbrio orçamental. Defendia o emagrecimento do Estado (da sua despesa corrente primária), o adiamento ou o fim de alguns investimentos públicos (o TGV, o aeroporto, a terceira ponte, etc.) e defendia que o modelo de crescimento português não podia continuar a assentar no investimento público, pela simples razão do país não estar em condições de o sustentar.
De um lado, um primeiro-ministro que insistia em representar intermitentemente um de dois papeis (por vezes conseguindo fundir os dois): o de optimista basbaque e cego, ou o de demagogo e cínico. A 16 de Setembro de 2009, numa visita ao distrito de Setúbal, José Sócrates dizia:
“Há aí quem diga que devemos adiar estes projectos. Pois eu quero fazer esta pergunta a todos os cidadãos do distrito de Setúbal: quantos mais anos vamos ter de esperar?”Dez dias antes, anunciava:
"No dia 27 de Setembro vai-se jogar o futuro do Estado social no nosso país, e nunca como hoje foi tão evidente o projecto de direita para enfraquecer e reduzir o nosso estado social".Num país pouco habituado a enfrentar a realidade, para quem um optimista de serviço a acenar com a bendita prosperidade é melhor opção do que a chata de uma «idosa» a apelar à poupança e a acenar com tempos difíceis (ainda para mais com um discurso pouco articulado), Sócrates lá ganhou as eleições.
Passados três meses, na mensagem de Natal, o primeiro-ministro prosseguia com o discurso da «esperança» e da «retoma»:
"A crise económica mundial persiste, é certo, mas há agora sinais claros de que estamos a retomar lentamente um caminho de recuperação. (…) Portugal precisa de investimento público que crie emprego. (…) O ano de 2009 ficou marcado em Portugal como, de resto, em todos os países do mundo, pelos efeitos da maior crise económica e financeira dos últimos 80 anos (…), mas com a intervenção do Estado, no momento certo, foi possível estabilizar o nosso sistema financeiro, apoiar as famílias, as empresas, estimular a economia.”Hoje, a três meses do final de 2010, a história é outra e é conhecida: Portugal enfrenta uma situação económica grave que obrigou o governo a suspender os investimentos públicos e a tomar medidas draconianas de corte na despesa e de subida de impostos, depois de um tímido PEC caucionado pelo PSD, cinco meses antes.
Há que retirar várias conclusões. A primeira, e mais evidente, é que José Sócrates mentiu sistematicamente ao país ou, em alternativa (qual delas a mais grave), tinha uma pálida noção da realidade que enfrentava desde o ano passado. Nesse sentido, caberá ao portugueses despedi-lo por incompetência e trafulhice (já que o homem não tem a dignidade de se retirar). A segunda, é que Manuela Ferreira Leite tinha razão. Nunca será demais dizê-lo. A terceira, que muitos tentam disfarçar com a «crise internacional», é que o socialismo é autofágico, não pelo jejum mas pela gula e obesidade mórbida. No Estado socialista – que foi sempre o nosso, embora em menor grau com o PSD no poder - a riqueza produzida passa a estar ao serviço de um Estado que, chamando a si a distinta e apreciável função de redistribuir os rendimentos, se torna toxicodependente daquele que é o instrumento por excelência que lhe permite sobreviver anos a fio, fingindo tratar-se de uma entidade abstracta, bondosa e competente: os impostos. A tendência do Estado socialista há-de ser sempre, por definição, a de cobrar mais para gastar mais, e a de gastar mais para justificar cobrar ainda mais. É um ciclo vicioso, imparável, sem direito a reversão ou correcção. Os impostos hão-de estar sempre disponíveis para salvar a face de um Estado gordo e guloso, repleto de necroses e disfunções diabéticas, tomado de assalto pela nomenklatura partidária e por interesses económicos obscuros (muitos bancos e empresas privadas ou semi-privadas sobrevivem a coberto do guarda-chuva estatal, para prejuízo dos utentes). Em trinta e cinco anos, nunca ninguém ousou baixar a carga fiscal, porque nunca o Estado e as mordomias que serve, pararam de crescer. Para quê? Para deixar o dinheiro nas mãos do malandro e néscio povo? E os apparatchikes que há para alimentar?
Agora? Agora dizem-nos que não há alternativa, que não se pode chumbar o orçamento, que há que disfarçar as coisas por causa do mercado, que um país sem um orçamento aprovado, mesmo que mau, é um país perdido. Os mais cínicos dizem-nos: é deixar derreter o Sr. Bad English em banho-maria, mais uns meses, para não perturbar as presidências e para o PSD ganhar fôlego nas sondagens. O país? Como diria a outra, isso agora não interessa para nada.
(publicado originalmente aqui)
domingo, outubro 10, 2010
Assim é que está bem: escondidinho
A edição portuguesa deste livro, pela Quetzal (excelente trabalho, Francisco), já chegou às bancas. Encontrei-o, em Évora, bem disfaçardo:
Conseguiram vê-lo? É claro que se fosse um Chomsky ou um livro sobre a Palestina ou uma biografia do Che, estaria bem à frente. Não é. É sobre essa coisa chata e reaccionária que dá pelo nome de conservadorismo. Cuidado.
PS: O Francisco está em Frankfurt. Espero que jante no Brasserie An Der Alten Oper. Muito bom.
sábado, outubro 09, 2010
O fim do Estado Social (pelo menos, tal como o conhecíamos)
No livro “The Welfare State We’re In”, James Bartholomew assinalava o reinado de Henrique VIII como a época zero do “Estado Providência”, coincidente com o fim da “Igreja Providência”, provocado pela contenda entre o rei de Inglaterra e a Igreja Católica Romana. Até à ruptura com o papado, era sobretudo a Igreja que assegurava o apoio aos pobres, doentes, órfãos e idosos. Para o fazer, a Igreja financiava-se de duas formas: donativos dos que, mais ou menos ricos, pretendiam assegurar a sua quintinha no céu; arrendamento de terras a pequenos, médios e grandes lavradores (estima-se que a Igreja detinha um terço das terras em Inglaterra). A zanga de Henrique VIII com Roma, conduziu à expropriação sistemática de mosteiros, conventos e, acima de tudo, terras. Entre 1539 e 1547, o rei obteve uma colecta de três quartos de um milhão de libras, proveniente da venda dessas terras (uma quantia exorbitante para a época).
Com o fim da Igreja Providência, vieram as leis que investiram o Estado da responsabilidade de auxílio aos que não dispunham de meios subsistência (o próprio Henrique VIII decretou que, no lugar da Igreja, fossem os autarcas e governadores locais a chamar a si a responsabilidade de assistência aos “impotentes” e “aleijados”, e de ajuda aos “capazes” na procura de emprego). Em Inglaterra, este ‘continuum’ legislativo, bondoso e solidário, conducente ao apoio estatal dos mais desfavorecidos, teve como único contraponto uma simbólica lei, ainda no reinado de Henrique VIII, que pretendia acabar com os que supostamente parasitavam o recém-criado sistema: os “vagabundos”, “ociosos” e “preguiçosos” deviam ser marcados com um “V” no peito e presos durante dois anos; se fugissem durante o período de encarceramento, chegaria a vez de um ferro em forma de “S”, desta vez na testa ou na face, e voz de prisão perpétua.
A lei do “ferro em brasa”, mais tarde abolida, era já o sinal de que qualquer sistema de apoio social «público», enfrentaria problemas de financiamento. Em 1563, a rainha Isabel I, ciente dos problemas resultantes do custo de funcionamento de tal sistema, tratou de tornar compulsivo (leia-se coercivo) o altruísmo dos que deveriam dar dinheiro e pareciam estar a falhar na sua desinteressada e espontânea caridade. Em 1601, dois anos antes da sua morte, consolidaram-se um conjunto de leis, que vieram a ser conhecidas como as “Elizabethan Poor Laws”- leis que marcaram historicamente a base de um sistema de segurança social que durou trezentos anos.
O grande factor que ditou a longa vida das “Elizabethan Poor laws”, chamou-se “proximidade”. Todo o sistema assentava numa estrutura descentralizada, a uma escala equivalente ao que hoje conhecemos como “freguesias”, adaptável a cada realidade local ou regional. Entendia-se que os responsáveis de cada comunidade, conhecedores por excelência dos «seus», detinham a capacidade de melhor decidir a quem, como e quando ajudar. Ao desígnio de ajudar os mais desfavorecidos, com base no conhecimento minucioso de cada realidade (a escala assim o favorecia), aliava-se uma cultura de trabalho comunitário (não comunista, atenção), que, colectivamente, tratava de empregar os seus «filhos» desde muito cedo, com tolerância zero para os preguiçosos e “wanderers but still able-bodied”. O sucesso do sistema resultou desta política de proximidade e da capacidade de gerar emprego – não tanto por necessidade, mas por exigência moral da própria comunidade.
De então para cá, muito coisa mudou. Em Inglaterra, já no século XX, assistiu-se, no pós-guerra, e pela mão de Clement Attlee, ao crescimento exponencial do papel do Estado Providência, de forma tal que há quem identifique esses anos como os anos em que, verdadeiramente, o Estado Social, pelo menos na forma como o conhecemos hoje, nasceu.
De então para cá, o âmbito do Estado Providência cresceu ao ritmo de crescimento das concessões políticas ao clamor popular, que exigia mais e mais protecção social. O resultado está à vista: o Estado Providência tenta hoje socorrer e responder aos apelos de um número crescente de grupos e insuficiências «sociais», que há cem anos atrás não eram reconhecidas ou, pelo menos, valorizadas: o desemprego (subsídio por longos períodos), a gravidez (subsídio), os nascimentos (subsídio), a pobreza de longa duração (rendimentos sociais), a ascendência (abonos de família), a velhice (pensões e complementos), a invalidez (pensões e subsídios), etc. etc. O âmbito da ajuda alargou-se e os critérios afrouxaram. A escala é, agora, central ou macrocéfala.
Para um país pobre como Portugal, com desequilíbrios orçamentais crónicos e taxas de natalidade e mortalidade decrescentes, chegaria o dia em que o sistema entraria em colapso. Esse dia, chegou. Basta invocar esta pequena realidade estatística: 30% do rendimento disponível das famílias portuguesas, provém de prestações sociais (abonos de família, subsídios de desemprego, subsídios de maternidade e aleitamento, pensões de reforma e invalidez, complementos sociais diversos, etc. etc.) e não do trabalho.
É bom que se perceba, de uma vez por todas, que o Estado e os seus sistemas de protecção social não podem continuar a chegar a tanta gente e a acudir tantas situações. Em nome, aliás, da sua própria subsistência (coisa que o Sr. Arnaut não percebe nem quer perceber, tão contente que está na qualidade de pai do SNS). Acima de tudo - e este é, de longe, o único contributo válido que a inoportuna discussão em torno da revisão da Constituição, por parte do PSD, trouxe -, importa discutir uma evidência que os factos teimosamente tornaram uma realidade: não pode continuar a acalentar-se a ideia de uma Saúde e Educação «tendencialmente gratuitas» (para uns a terem gratuita, outros terão que passar a pagar), ou eternizar uma concepção tutorial e paternalista do Estado, em sede de segurança social, em relação a todos os problemas de ordem social - sobretudo quando a acção do Estado é factor preponderante na perpetuação da pobreza (para suprir aqui, falha-se acolá), da falta de responsabilidade, do comodismo e da ociosidade (o sistema é, hoje, também um sistema falhado porque há gente que não precisa, ou não precisa assim tanto, mas que não se coíbe de exigir, porque o Estado Social assim o permitiu, ajuda, conforto, afago, miminho e a bendita gratuitidade).
Paralelamente a esta discussão, que o governo e os partidos (pelo menos os partidos mais realistas e menos populistas) devem suscitar para que os cidadãos percebam como chegaram aqui, cabe aos próprios cidadãos questionar alguns paradigmas da sua curta existência terrestre: se precisam assim tanto de casa própria; de carrinho topo de gama na garagem e/ou segundo ou terceiro carro; de férias luxuosas em lugares exóticos; de paletes de roupa e frotas de telemóveis (para o pai, mãe, filhos, periquito, cão e gato). E por aí fora. Simultaneamente, devem exigir dos seus governos o fim das mordomias e «gorduras» de um Estado que suga grande parte da riqueza produzida em solo pátrio, por contrapartida do fim de uma sufocante carga fiscal.
Estaremos para aí virados? O Afonso Costa era um grande democrata?
(publicado originalmente aqui)
quinta-feira, outubro 07, 2010
It’s, like, my opinion, man
O Ouriquense deu-me a honra de responder a esta espécie de post. Sobre a resposta, agrada-me, em particular, a forma como o Ouriquense contrapõe as minhas «probabilidades tabeladas» com, er…, as «probabilidades tabeladas» do Ouriquense. Estou piamente convencido que a pessoa de bem e o amigo (dois atributos num só corpo) que gere o Ouriquense, consubstancia a sua opinião com base em «evidências empíricas substanciais». Só assim se compreende a autoridade com que esmaga, e a espaços chacoteia (benignamente, é certo), a minha opinião, segundo a qual uma leitura, ou uma tentativa de leitura, precoce de um livro, digamos, «desapropriado» para a idade, proporcionará uma maior probabilidade de releitura ou leitura séria, a posteriori, do que a simples ausência de leitura precoce. Contra isto o Ouriquense assevera que «a melhor forma de jamais se ler um livro com a competência que vem com a idade e a experiência de leitor é ler esse livro quando se é demasiado jovem». Eu acho que não (embora admita que haja casos em que sim, daí ter-me referido a probabilidades). E dei como exemplo a minha experiência. Admito que esta seja tão insuficiente quanto a minha subjectiva convicção, baseada na observação pontual e não metódica de alguns petizes (incluindo a minha filha, de catorze anos). Ou seja, dou de barato que navegamos no imenso e pérfido mar da opinião, a bordo dos nossos Pequods particulares. E se assim é, fechemos com chave de ouro esta superlativa polémica: let’s all shut the fuck up.
quarta-feira, outubro 06, 2010
Moby cock
Esta gente (uma, duas, três e quatro), que não tem mais nada para fazer enquanto o país se despedaça ao largo, envolveu-se numa troca de argumentos que não lembra ao diabo. Mais uma vez, o maradona está carregado de razão. O ponto resume-se a este excerto: “o método para se inculcar o Moby Dick em alguém não está na idade (…) mas na vontade fundamental, que apenas nascerá de uma educação cuidadosamente despreocupada, nutrida por um estratégico desleixo pelas rotas que levarão ao único desfecho que todos deveríamos ter como prioritária para aqueles que, por estarem indefesos, mais queremos respeitar: a autonomia, que qualquer dia morremos afogados em papagaios.”. A posição do João Gonçalves, secundada pela do Ouriquense, não é apenas chata: é redutora.
Por volta dos doze anos de idade, dei de caras com um livro que o meu pai guardava numa estante do seu escritório. Chamava-se “O Dinossauro Excelentíssimo”. Peguei no livro porque acreditava tratar-se de um livro sobre dinossauros. O meu pai nada fez para impedir que o lesse. Lembro-me vagamente de me ter dito qualquer coisa do género “lê e depois diz-me o que achaste”. Deve-o ter dito, certamente, com um sorriso. É claro que abandonei o livro passado pouco tempo. Tudo era difícil: as expressões, as palavras e, acima de tudo, o sentido do que estava escrito. Mais tarde, por volta de 90, voltei a pegar no "Dinossauro". Não posso afirmar, para benefício do argumento, que reli o livro. Em bom rigor, não o tinha lido. Assim como não posso afirmar que marquei na minha agenda, aos doze anos, que no dia x do mês y de 1990 voltaria a pegar no livro. Mas posso afirmar que o contacto com aquele livro despertou em mim a curiosidade de, mais tarde, o ler. Aquele livro, como tantos outros, passou a representar um mundo que me era complexo mas, ao mesmo tempo, apelativamente misterioso. Conto este episódio porque sei que a forma despreocupada e livre como sempre me deixaram folhear qualquer livro que fosse em qualquer idade - produto, por sua vez, de uma orientação literária absolutamente desorientada/caótica por parte dos meus pais - despertou em mim a curiosidade de ler, mesmo quando estranhava o que lia. O estranhar levou-me sempre a pensar que havia um difuso mas certamente admirável lado da vida e do conhecimento ao qual eu não tinha acesso - mas, acreditava, um dia haveria de ter. É natural que uma parte do gosto, e também do esforço, em querer saber e conhecer mais, passou pela ideia, ainda que mais ou menos inconsciente, de que abriria um dia portas até então vedadas.
O exemplo do “Dinossauro Excelentíssimo” é, aliás, extremo. Pedir a uma criança de doze anos que «apanhe» as entrelinhas do que está escrito no livro de Cardoso Pires, é o mesmo que pedir a José Sócrates que perceba o peso ou o ónus de um “mutatis mutandis” na aplicação de uma política keynesiana aos dias de hoje. Moby Dick é, por isso, bem mais pacífico: à superfície não deixa de ser um livro de aventuras perfeitamente cognoscível para uma criança de dez ou doze anos, ou para um adolescente de catorze ou dezasseis. Pensar-se que uma leitura de Moby Dick aos treze anos arruma em definitivo o livro (ou seja, que se queima ali a única oportunidade de leitura da obra), não tem o mais leve fundamento. Assim como é ridículo pensar-se que a leitura naquela idade «formata» para sempre a percepção ou o entendimento da «mensagem» da obra. Os “Maias” que li aos dezasseis eram bem diferentes dos "Maias" que li aos trinta (e não houve conflito de espécie alguma entre uma e outra experiência). A probabilidade de uma leitura aos doze, catorze ou dezasseis contribuir para a releitura aos trinta ou quarenta, é bem maior que a probabilidade da ausência de leitura aos doze, catorze ou dezasseis contribuir para a primeira das leituras numa idade maior. Por razões óbvias, retiro da equação a existência de intelectos que jamais perceberão esta ou aquela obra, seja aos dez, trinta ou oitenta.
Por volta dos doze anos de idade, dei de caras com um livro que o meu pai guardava numa estante do seu escritório. Chamava-se “O Dinossauro Excelentíssimo”. Peguei no livro porque acreditava tratar-se de um livro sobre dinossauros. O meu pai nada fez para impedir que o lesse. Lembro-me vagamente de me ter dito qualquer coisa do género “lê e depois diz-me o que achaste”. Deve-o ter dito, certamente, com um sorriso. É claro que abandonei o livro passado pouco tempo. Tudo era difícil: as expressões, as palavras e, acima de tudo, o sentido do que estava escrito. Mais tarde, por volta de 90, voltei a pegar no "Dinossauro". Não posso afirmar, para benefício do argumento, que reli o livro. Em bom rigor, não o tinha lido. Assim como não posso afirmar que marquei na minha agenda, aos doze anos, que no dia x do mês y de 1990 voltaria a pegar no livro. Mas posso afirmar que o contacto com aquele livro despertou em mim a curiosidade de, mais tarde, o ler. Aquele livro, como tantos outros, passou a representar um mundo que me era complexo mas, ao mesmo tempo, apelativamente misterioso. Conto este episódio porque sei que a forma despreocupada e livre como sempre me deixaram folhear qualquer livro que fosse em qualquer idade - produto, por sua vez, de uma orientação literária absolutamente desorientada/caótica por parte dos meus pais - despertou em mim a curiosidade de ler, mesmo quando estranhava o que lia. O estranhar levou-me sempre a pensar que havia um difuso mas certamente admirável lado da vida e do conhecimento ao qual eu não tinha acesso - mas, acreditava, um dia haveria de ter. É natural que uma parte do gosto, e também do esforço, em querer saber e conhecer mais, passou pela ideia, ainda que mais ou menos inconsciente, de que abriria um dia portas até então vedadas.
O exemplo do “Dinossauro Excelentíssimo” é, aliás, extremo. Pedir a uma criança de doze anos que «apanhe» as entrelinhas do que está escrito no livro de Cardoso Pires, é o mesmo que pedir a José Sócrates que perceba o peso ou o ónus de um “mutatis mutandis” na aplicação de uma política keynesiana aos dias de hoje. Moby Dick é, por isso, bem mais pacífico: à superfície não deixa de ser um livro de aventuras perfeitamente cognoscível para uma criança de dez ou doze anos, ou para um adolescente de catorze ou dezasseis. Pensar-se que uma leitura de Moby Dick aos treze anos arruma em definitivo o livro (ou seja, que se queima ali a única oportunidade de leitura da obra), não tem o mais leve fundamento. Assim como é ridículo pensar-se que a leitura naquela idade «formata» para sempre a percepção ou o entendimento da «mensagem» da obra. Os “Maias” que li aos dezasseis eram bem diferentes dos "Maias" que li aos trinta (e não houve conflito de espécie alguma entre uma e outra experiência). A probabilidade de uma leitura aos doze, catorze ou dezasseis contribuir para a releitura aos trinta ou quarenta, é bem maior que a probabilidade da ausência de leitura aos doze, catorze ou dezasseis contribuir para a primeira das leituras numa idade maior. Por razões óbvias, retiro da equação a existência de intelectos que jamais perceberão esta ou aquela obra, seja aos dez, trinta ou oitenta.
Um post à Alfaiate Lisboeta*
(* sem esquecer o original)
Há uma peça de vestuário que marca presença no meu guarda-fato desde que me lembro de ser gente: uma canadiana. Em inglês: duffle coat (consta que a origem deste sobretudo de ¾ se encontra na cidade de Duffel, Bélgica).
A canadiana, que começou a ser mais difundida no início do século XX, quando a British Royal Navy a adoptou como casaco oficial, caracteriza-se pela ausência de forro ou enchimento (as suas qualidades térmicas dependem unicamente de um tecido grosso de pura lã), por um capuz sobredimensionado (na verdade, permite sobrepor-se a um chapéu ou a um capacete), por bolsos laterais grandes (com ou sem pala) e, finalmente, por um sistema de abotoamento muito ‘sui generis’: o botão é um pedaço oblongo de madeira ou, originalmente, de marfim de morsa ou corno, que se prende num laço de cabedal ou corda. Estas características tornam a canadiana uma peça de vestuário a meio caminho entre o classicismo excêntrico de uma época e de um ambiente já perdidos (com as suas idiossincrasias inexplicáveis nos dias de hoje), e o tipo de modernidade que se alimenta da reinvenção do passado (no caso da canadiana, desenganem-se: prevalece uma assinalável linha de continuidade).
Seja como for, a canadiana foi, é e continuará a ser o meu casaco preferido. Tomem a devida nota, que estas coisas são importantes. E não têm que agradecer.
Há uma peça de vestuário que marca presença no meu guarda-fato desde que me lembro de ser gente: uma canadiana. Em inglês: duffle coat (consta que a origem deste sobretudo de ¾ se encontra na cidade de Duffel, Bélgica).
A canadiana, que começou a ser mais difundida no início do século XX, quando a British Royal Navy a adoptou como casaco oficial, caracteriza-se pela ausência de forro ou enchimento (as suas qualidades térmicas dependem unicamente de um tecido grosso de pura lã), por um capuz sobredimensionado (na verdade, permite sobrepor-se a um chapéu ou a um capacete), por bolsos laterais grandes (com ou sem pala) e, finalmente, por um sistema de abotoamento muito ‘sui generis’: o botão é um pedaço oblongo de madeira ou, originalmente, de marfim de morsa ou corno, que se prende num laço de cabedal ou corda. Estas características tornam a canadiana uma peça de vestuário a meio caminho entre o classicismo excêntrico de uma época e de um ambiente já perdidos (com as suas idiossincrasias inexplicáveis nos dias de hoje), e o tipo de modernidade que se alimenta da reinvenção do passado (no caso da canadiana, desenganem-se: prevalece uma assinalável linha de continuidade).
Seja como for, a canadiana foi, é e continuará a ser o meu casaco preferido. Tomem a devida nota, que estas coisas são importantes. E não têm que agradecer.
A República
Vasco Pulido Valente in Público 02/10/2010:
República foi feita pela chamada "geração de 90" (1890), a chamada "geração doUltimatum", educada pelo "caso Dreyfus" e, depois, pela radicalização da República Francesa de Waldeck-Rousseau, de Combes e do "Bloc des Gauches" (que, de resto, só acabou em 1909). Estes beneméritos (Afonso Costa, António José d"Almeida, França Borges e outros companheiros de caminho) escolheram deliberadamente a violência para liquidar a Monarquia. O Mundo, órgão oficioso do jacobinismo indígena, explicava: "Partidos como o republicano precisam de violência", porque sem violência e "uma perseguição acintosa e clamorosa" não se cria "o ambiente indispensável à conquista do poder". Na fase final (1903-1910), o republicanismo, no seu princípio e na sua natureza, não passou da violência, que a vitória do "5 de Outubro" generalizou a todo o país.
Não admira que a República nunca se tenha conseguido consolidar. De facto, nunca chegou a ser um regime. Era um "estado de coisas", regularmente interrompido por golpes militares, insurreições de massa e uma verdadeira guerra civil. Em pouco mais de 15 anos morreu muita gente: em combate, executada na praça pública pelo "povo" em fúria ou assassinada por quadrilhas partidárias, como em 1921 o primeiro-ministro António Granjo, pela quadrilha do "Dente de Ouro". O número de presos políticos, que raramente ficou por menos de um milhar, subiu em alguns momentos a mais de 3000. Como dizia Salazar, "simultânea ou sucessivamente" meio Portugal acabou por ir parar às democráticas cadeias da República, a maior parte das vezes sem saber porquê.
E , em 2010, a questão é esta: como é possível pedir aos partidos de uma democracia liberal que festejem uma ditadura terrorista em que reinavam "carbonários", vigilantes de vário género e pêlo e a "formiga branca" do jacobinismo? Como é possível pedir a uma cultura política assente nos "direitos do homem e do cidadão" que preste homenagem oficial a uma cultura política que perseguia sem escrúpulos uma vasta e indeterminada multidão de "suspeitos" (anarquistas, anarco-sindicalistas, monárquicos, moderados e por aí fora)? Como é possível ao Estado da tolerância e da aceitação do "outro" mostrar agora o seu respeito por uma ideologia cuja essência era a erradicação do catolicismo? E, principalmente, como é possível ignorar que a Monarquia, apesar da sua decadência e da sua inoperância, fora um regime bem mais livre e legalista do que a grosseira cópia do pior radicalismo francês, que o "5 de Outubro" trouxe a Portugal?