O fim do Estado Social (pelo menos, tal como o conhecíamos)
No livro “The Welfare State We’re In”, James Bartholomew assinalava o reinado de Henrique VIII como a época zero do “Estado Providência”, coincidente com o fim da “Igreja Providência”, provocado pela contenda entre o rei de Inglaterra e a Igreja Católica Romana. Até à ruptura com o papado, era sobretudo a Igreja que assegurava o apoio aos pobres, doentes, órfãos e idosos. Para o fazer, a Igreja financiava-se de duas formas: donativos dos que, mais ou menos ricos, pretendiam assegurar a sua quintinha no céu; arrendamento de terras a pequenos, médios e grandes lavradores (estima-se que a Igreja detinha um terço das terras em Inglaterra). A zanga de Henrique VIII com Roma, conduziu à expropriação sistemática de mosteiros, conventos e, acima de tudo, terras. Entre 1539 e 1547, o rei obteve uma colecta de três quartos de um milhão de libras, proveniente da venda dessas terras (uma quantia exorbitante para a época).
Com o fim da Igreja Providência, vieram as leis que investiram o Estado da responsabilidade de auxílio aos que não dispunham de meios subsistência (o próprio Henrique VIII decretou que, no lugar da Igreja, fossem os autarcas e governadores locais a chamar a si a responsabilidade de assistência aos “impotentes” e “aleijados”, e de ajuda aos “capazes” na procura de emprego). Em Inglaterra, este ‘continuum’ legislativo, bondoso e solidário, conducente ao apoio estatal dos mais desfavorecidos, teve como único contraponto uma simbólica lei, ainda no reinado de Henrique VIII, que pretendia acabar com os que supostamente parasitavam o recém-criado sistema: os “vagabundos”, “ociosos” e “preguiçosos” deviam ser marcados com um “V” no peito e presos durante dois anos; se fugissem durante o período de encarceramento, chegaria a vez de um ferro em forma de “S”, desta vez na testa ou na face, e voz de prisão perpétua.
A lei do “ferro em brasa”, mais tarde abolida, era já o sinal de que qualquer sistema de apoio social «público», enfrentaria problemas de financiamento. Em 1563, a rainha Isabel I, ciente dos problemas resultantes do custo de funcionamento de tal sistema, tratou de tornar compulsivo (leia-se coercivo) o altruísmo dos que deveriam dar dinheiro e pareciam estar a falhar na sua desinteressada e espontânea caridade. Em 1601, dois anos antes da sua morte, consolidaram-se um conjunto de leis, que vieram a ser conhecidas como as “Elizabethan Poor Laws”- leis que marcaram historicamente a base de um sistema de segurança social que durou trezentos anos.
O grande factor que ditou a longa vida das “Elizabethan Poor laws”, chamou-se “proximidade”. Todo o sistema assentava numa estrutura descentralizada, a uma escala equivalente ao que hoje conhecemos como “freguesias”, adaptável a cada realidade local ou regional. Entendia-se que os responsáveis de cada comunidade, conhecedores por excelência dos «seus», detinham a capacidade de melhor decidir a quem, como e quando ajudar. Ao desígnio de ajudar os mais desfavorecidos, com base no conhecimento minucioso de cada realidade (a escala assim o favorecia), aliava-se uma cultura de trabalho comunitário (não comunista, atenção), que, colectivamente, tratava de empregar os seus «filhos» desde muito cedo, com tolerância zero para os preguiçosos e “wanderers but still able-bodied”. O sucesso do sistema resultou desta política de proximidade e da capacidade de gerar emprego – não tanto por necessidade, mas por exigência moral da própria comunidade.
De então para cá, muito coisa mudou. Em Inglaterra, já no século XX, assistiu-se, no pós-guerra, e pela mão de Clement Attlee, ao crescimento exponencial do papel do Estado Providência, de forma tal que há quem identifique esses anos como os anos em que, verdadeiramente, o Estado Social, pelo menos na forma como o conhecemos hoje, nasceu.
De então para cá, o âmbito do Estado Providência cresceu ao ritmo de crescimento das concessões políticas ao clamor popular, que exigia mais e mais protecção social. O resultado está à vista: o Estado Providência tenta hoje socorrer e responder aos apelos de um número crescente de grupos e insuficiências «sociais», que há cem anos atrás não eram reconhecidas ou, pelo menos, valorizadas: o desemprego (subsídio por longos períodos), a gravidez (subsídio), os nascimentos (subsídio), a pobreza de longa duração (rendimentos sociais), a ascendência (abonos de família), a velhice (pensões e complementos), a invalidez (pensões e subsídios), etc. etc. O âmbito da ajuda alargou-se e os critérios afrouxaram. A escala é, agora, central ou macrocéfala.
Para um país pobre como Portugal, com desequilíbrios orçamentais crónicos e taxas de natalidade e mortalidade decrescentes, chegaria o dia em que o sistema entraria em colapso. Esse dia, chegou. Basta invocar esta pequena realidade estatística: 30% do rendimento disponível das famílias portuguesas, provém de prestações sociais (abonos de família, subsídios de desemprego, subsídios de maternidade e aleitamento, pensões de reforma e invalidez, complementos sociais diversos, etc. etc.) e não do trabalho.
É bom que se perceba, de uma vez por todas, que o Estado e os seus sistemas de protecção social não podem continuar a chegar a tanta gente e a acudir tantas situações. Em nome, aliás, da sua própria subsistência (coisa que o Sr. Arnaut não percebe nem quer perceber, tão contente que está na qualidade de pai do SNS). Acima de tudo - e este é, de longe, o único contributo válido que a inoportuna discussão em torno da revisão da Constituição, por parte do PSD, trouxe -, importa discutir uma evidência que os factos teimosamente tornaram uma realidade: não pode continuar a acalentar-se a ideia de uma Saúde e Educação «tendencialmente gratuitas» (para uns a terem gratuita, outros terão que passar a pagar), ou eternizar uma concepção tutorial e paternalista do Estado, em sede de segurança social, em relação a todos os problemas de ordem social - sobretudo quando a acção do Estado é factor preponderante na perpetuação da pobreza (para suprir aqui, falha-se acolá), da falta de responsabilidade, do comodismo e da ociosidade (o sistema é, hoje, também um sistema falhado porque há gente que não precisa, ou não precisa assim tanto, mas que não se coíbe de exigir, porque o Estado Social assim o permitiu, ajuda, conforto, afago, miminho e a bendita gratuitidade).
Paralelamente a esta discussão, que o governo e os partidos (pelo menos os partidos mais realistas e menos populistas) devem suscitar para que os cidadãos percebam como chegaram aqui, cabe aos próprios cidadãos questionar alguns paradigmas da sua curta existência terrestre: se precisam assim tanto de casa própria; de carrinho topo de gama na garagem e/ou segundo ou terceiro carro; de férias luxuosas em lugares exóticos; de paletes de roupa e frotas de telemóveis (para o pai, mãe, filhos, periquito, cão e gato). E por aí fora. Simultaneamente, devem exigir dos seus governos o fim das mordomias e «gorduras» de um Estado que suga grande parte da riqueza produzida em solo pátrio, por contrapartida do fim de uma sufocante carga fiscal.
Estaremos para aí virados? O Afonso Costa era um grande democrata?
(publicado originalmente aqui)
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