O MacGuffin: Eu, carestia

segunda-feira, outubro 11, 2010

Eu, carestia

A 24 de Fevereiro de 2010, Manuela Ferreira Leite afirmava:
“A verdade é que não tendo nós os mesmos números que a Grécia estamos rigorosamente no mesmo caminho. A evolução do nosso endividamento e do nosso défice das contas públicas está exactamente no mesmo caminho que está a Grécia. Se não fizermos nada daqui a dois anos estamos com estatísticas tão más ou piores que a Grécia”
Em resposta a estas declarações, um pesaroso e indignado Vieira da Silva, declarou-se chocado e acusou publicamente a então líder do PSD de “irresponsabilidade” (palavra gasta, esta). Da parte do PS, houve quem tivesse exigido que Manuela Ferreira Leite se «retractasse».

Manuela Ferreira Leite respondeu:
“Seria estranho num país em que toda a gente - responsáveis - mente, e que não se retracta, passasse a ser quem alerta para as verdades que tivesse que se retractar”
Hoje é sabido e reconhecido que, tirando o efeito provocado pelo operação de bailout do Anglo Irish Bank (e também do Allied Irish Banks), levado a cabo pelo governo irlandês, Portugal é, logo a seguir à Grécia, o pior dos PIGS.

Há pouco mais de um ano atrás, Portugal assistiu a uma corrida eleitoral que colocou frente-a-frente duas concepções distintas da realidade. De um lado, um primeiro-ministro em funções que, desapertando os cordões à bolsa estatal em ano de eleições, no seguimento, aliás, do que já havia feito em 2008, declarava que Portugal era um país cuja economia vendia saúde (e só não vendia mais por causa de uma crise «exterior») e cujo sistema financeiro, apesar do BPN e BPP, era dos mais sólidos da UE. E acrescentava: tudo o que fosse dito em contrário, não passava de pessimismo, bota-abaixismo e conservadorismo bacoco. Tudo estava bem e tudo seria levada a cabo (o TGV, o aeroporto, etc.).

Do outro lado, a principal líder do partido da oposição, Manuela Ferreira Leite, alertava o país para a grave situação de Portugal no que tocava ao endividamento externo, aos sinais de arrefecimento da economia e às perspectivas de desequilíbrio orçamental. Defendia o emagrecimento do Estado (da sua despesa corrente primária), o adiamento ou o fim de alguns investimentos públicos (o TGV, o aeroporto, a terceira ponte, etc.) e defendia que o modelo de crescimento português não podia continuar a assentar no investimento público, pela simples razão do país não estar em condições de o sustentar.

De um lado, um primeiro-ministro que insistia em representar intermitentemente um de dois papeis (por vezes conseguindo fundir os dois): o de optimista basbaque e cego, ou o de demagogo e cínico. A 16 de Setembro de 2009, numa visita ao distrito de Setúbal, José Sócrates dizia:
“Há aí quem diga que devemos adiar estes projectos. Pois eu quero fazer esta pergunta a todos os cidadãos do distrito de Setúbal: quantos mais anos vamos ter de esperar?”
Dez dias antes, anunciava:
"No dia 27 de Setembro vai-se jogar o futuro do Estado social no nosso país, e nunca como hoje foi tão evidente o projecto de direita para enfraquecer e reduzir o nosso estado social".
Num país pouco habituado a enfrentar a realidade, para quem um optimista de serviço a acenar com a bendita prosperidade é melhor opção do que a chata de uma «idosa» a apelar à poupança e a acenar com tempos difíceis (ainda para mais com um discurso pouco articulado), Sócrates lá ganhou as eleições.

Passados três meses, na mensagem de Natal, o primeiro-ministro prosseguia com o discurso da «esperança» e da «retoma»:
"A crise económica mundial persiste, é certo, mas há agora sinais claros de que estamos a retomar lentamente um caminho de recuperação. (…) Portugal precisa de investimento público que crie emprego. (…) O ano de 2009 ficou marcado em Portugal como, de resto, em todos os países do mundo, pelos efeitos da maior crise económica e financeira dos últimos 80 anos (…), mas com a intervenção do Estado, no momento certo, foi possível estabilizar o nosso sistema financeiro, apoiar as famílias, as empresas, estimular a economia.”
Hoje, a três meses do final de 2010, a história é outra e é conhecida: Portugal enfrenta uma situação económica grave que obrigou o governo a suspender os investimentos públicos e a tomar medidas draconianas de corte na despesa e de subida de impostos, depois de um tímido PEC caucionado pelo PSD, cinco meses antes.

Há que retirar várias conclusões. A primeira, e mais evidente, é que José Sócrates mentiu sistematicamente ao país ou, em alternativa (qual delas a mais grave), tinha uma pálida noção da realidade que enfrentava desde o ano passado. Nesse sentido, caberá ao portugueses despedi-lo por incompetência e trafulhice (já que o homem não tem a dignidade de se retirar). A segunda, é que Manuela Ferreira Leite tinha razão. Nunca será demais dizê-lo. A terceira, que muitos tentam disfarçar com a «crise internacional», é que o socialismo é autofágico, não pelo jejum mas pela gula e obesidade mórbida. No Estado socialista – que foi sempre o nosso, embora em menor grau com o PSD no poder - a riqueza produzida passa a estar ao serviço de um Estado que, chamando a si a distinta e apreciável função de redistribuir os rendimentos, se torna toxicodependente daquele que é o instrumento por excelência que lhe permite sobreviver anos a fio, fingindo tratar-se de uma entidade abstracta, bondosa e competente: os impostos. A tendência do Estado socialista há-de ser sempre, por definição, a de cobrar mais para gastar mais, e a de gastar mais para justificar cobrar ainda mais. É um ciclo vicioso, imparável, sem direito a reversão ou correcção. Os impostos hão-de estar sempre disponíveis para salvar a face de um Estado gordo e guloso, repleto de necroses e disfunções diabéticas, tomado de assalto pela nomenklatura partidária e por interesses económicos obscuros (muitos bancos e empresas privadas ou semi-privadas sobrevivem a coberto do guarda-chuva estatal, para prejuízo dos utentes). Em trinta e cinco anos, nunca ninguém ousou baixar a carga fiscal, porque nunca o Estado e as mordomias que serve, pararam de crescer. Para quê? Para deixar o dinheiro nas mãos do malandro e néscio povo? E os apparatchikes que há para alimentar?

Agora? Agora dizem-nos que não há alternativa, que não se pode chumbar o orçamento, que há que disfarçar as coisas por causa do mercado, que um país sem um orçamento aprovado, mesmo que mau, é um país perdido. Os mais cínicos dizem-nos: é deixar derreter o Sr. Bad English em banho-maria, mais uns meses, para não perturbar as presidências e para o PSD ganhar fôlego nas sondagens. O país? Como diria a outra, isso agora não interessa para nada.

(publicado originalmente aqui)

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