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João Pereira Coutinho anunciou a sua saída do Expresso a 16 de Fevereiro, invocando razões estritamente pessoais. Na despedida, como pessoa de bem, fez questão de agradecer à casa e reconhecer que estava errado quando apontava o Expresso como um «saco de papel institucional e cinzento, onde a liberdade criativa não abundava» (tal como eu o fiz no passado por também ser filho da geração O Independente, ascendência que não renego e da qual me orgulho).
Na crónica de despedida, criticou a já clássica e berrante hipocrisia, ou se quiserem, «dualidade» de critérios do Dr. Mário Soares na forma como observa o mundo e, em particular, a América, conforme o agente lhe é ou não ideologicamente simpático. Obama quer encerrar Guantanamo mas recusou-se a abolir,
tout court, a tortura nas técnicas de interrogatório. E, horror dos horrores, pretende continuar a estratégia de raptos selectivos e de transferência dos raptados para países aliados dos EUA.
No meio de tudo isto, o Dr. Soares ignora estes «pormenores» e exalta o querido Obama como o obreiro de um mundo fraterno, justo, diferente do que existia na vigência da
bête noir Bush. Para o Dr. Soares, parece bastar o facto de Obama – que o Dr. Soares provavelmente considera socialista - ter sido um adversário de Bush e de lhe suceder na presidência. O que era mau e condenável em Bush, é bom ou descartável em Obama.
João Pereira Coutinho não defendeu, não tomou partido nem ajuizou das posições de Obama relativamente à tortura e ao rapto selectivo de potenciais terroristas. Essa não era a questão. A questão era chamar a atenção para as posições dualistas, dúbias e gelatinosas do Dr. Soares, sempre tomadas à luz do maniqueísmo das capelinhas políticas que o Dr. Soares rearranja e convoca como quer e lhe apetece.
Como é óbvio, os comentários a este artigo de opinião trataram de deturpar o que tinha sido escrito e de ler o que não foi escrito ou, sequer, insinuado. E,
en passant, escancararam a céu aberto a propensão indígena para a sacralização e beatificação de certas eminências pardas, que se consideram intocáveis por via dos serviços prestados ao país. Ora, Mário Soares pode ter sido o «paizinho» da nossa democracia, o homem que nos colocou a salvo do comunismo e que nos pôs na Europa, o valente presidente que ousou incomodar o cavaquismo. E por aí fora. Aliás, pode ter sido tudo, menos isto: um observador imparcial dos EUA e um conhecedor abalizado da História.
Mas não. Para esta gente, João Pereira Coutinho é «contraditório» e «demagógico», «neo-liberal» e «conservador» (olha aí a contradição…), um «ser humano» (vá lá...) que «não busca desinteressadamente a verdade» (eu pensava que era mais «interessadamente»...), ao contrário do Dr. Soares. Pelo contrário: o homem faz «a apologia do desrespeito pelos Direitos do Homem, defendendo a tortura e o rapto». Acabaram, claro está, a dar o parabéns ao Expresso por se livrarem do tumor contra, acreditam eles piamente, a vontade do próprio.
Pela minha parte, só posso congratular-me pelo facto do João Pereira Coutinho continuar igual a si próprio: capaz de provocar a ira dos iluminados e despertar as ulcerações da praxe. Brindo a isso.