A arte da crónica
Alberto Gonçalves in Diário de Notícias 08/03/2009
Terça-feira, 3 de Março
A CEGUEIRA DO HOMEM BRANCO
O dr. Gomes Cravinho, secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, pediu aos militares guineenses para não serem "mesquinhos" e à Guiné-Bissau o "pleno respeito pela normalidade institucional".
A pertinência dos apelos percebe-se melhor se levarmos em conta que foram proferidos horas depois do assassínio de Nino Vieira. Parece que após demolirem à bomba a residência do presidente, e de este ter emergido dos destroços, os soldados insurgentes aproveitaram para o espancar, o furar com rajadas de metralhadora, o cortar à catanada e o decapitar. A ordem dos correctivos varia de acordo com as fontes, mas é inegável o propósito mesquinho, quase maldoso, do exercício. Na mesma linha geopolítica, presumo que o dr. Gomes Cravinho classifique os massacres no Ruanda de "irritantes" e o genocídio no Darfur de "aborrecido".
Não será o único a fazê-lo. O Ocidente em geral tem por hábito cobrir de eufemismos uma região em que, como a ascensão do próprio Nino Vieira e de inúmeros déspotas regularmente mostram, a "normalidade institucional" se constrói a sangue. Por recorrente que seja, o facto é sempre novidade para os media daqui, que destroçados pela mesquinhez de alguns indígenas começaram anteontem a desconfiar (com mágoa) de que a Guiné é um "Estado falhado".
No mínimo, é uma intuição tardia. A ONG Fund for Peace desenvolveu um índice que justamente mede o grau de falhanço dos estados e a sua tendência para a desagregação. Assim, cada país é pontuado e integrado numa de quatro categorias de risco: alarme, alerta, moderado, estável. Em 2008, nenhuma das nações africanas pertence ao restrito grupo dos "estáveis", nenhuma, com a excepção das ilhas Maurícias, pertence ao grupo dos "moderados", todas se encontram nos grupos de "alerta" e de "alarme", onde aliás a Guiné-Bissau se situa atrás de outros dezoito países africanos ainda mais dados a transformar a chacina num modo de vida. Em suma, falhada é a África inteira.
A dificuldade dos ocidentais em reconhecer uma mera evidência prova que o paternalismo pós-colonial se alheou mais da realidade que o racismo colonialista. Se este nunca se maçou com uma tragédia para a qual contribuiu directamente, o paternalismo só vê a tragédia a custo, preferindo manter a risonha ficção de um continente normal, dividido em estados normais liderados por governos normais, afinal o inevitável resultado dos encantadores processos de independência.
O delírio teria graça se, à sua revelia, em África não vivessem, ou morressem, centenas de milhões de infelizes, no fundo irrelevantes para os criminosos que mandam por lá e inexistentes para os optimistas que pairam por cá.
Quarta-feira, 4 de Março
CORRER COM ELES
O eng. Sócrates fechou o congresso do PS com uma condenação: a das crianças de cinco anos aos "jardins-de-infância", eufemismo para os barracões onde se guardam os petizes da sociedade e da indisponibilidade familiar. Note-se que o primeiro-ministro não prometeu facultar o "pré-escolar" a quem pretender beneficiar do dito. Tudo o que seja facultativo não é com ele. A ideia é recolher os petizes à força, mesmo que os pais não queiram e não necessitem da recolha. O eng. Sócrates justifica: "É assim que se prepara o futuro. É assim que se reduz a desigualdade social." É assim, acrescento, que o Estado se intromete nas vidas alheias muito além do recomendável em democracia.
No caso, não se intromete na minha, que escolhi - enquanto o Governo me permitir - não procriar. Se, porém, escapei de um particular abuso (e sem consequências: a diferença entre não ter filhos e tê-los entregues a instituições compulsivas dos cinco aos dezoito anos roça o imperceptível), não escapo dos abusos restantes, os quais, nestes perigosos tempos, são inúmeros.
Ainda agora, um portento chamado Laurentino Dias, que tutela o desporto ou lá o que é, decidiu "fazer o que for preciso para que Portugal passe a ser um país que faça marcha e corrida de forma organizada". Note-se que o dr. Laurentino não limita ao corpo dele as piruetas que entende vitais. Decerto à imagem do respectivo chefe, cujo jogging deslumbra a Terra, o homem quer pôr os portugueses em peso, e juro que cito, "a andar na rua com vestes desportivas". Francamente, começo a não saber até que ponto esta gente fala a sério. Sei que em Portugal abundam sujeitos em fato de treino, embora geralmente estejam sentados em esplanadas a deglutir tremoços e imperiais. Aparentemente, levantá-los das cadeiras e levá-los a escorrer suor é um factor de progresso.
As cabeças dos senhores que nos pastoreiam são um mistério insondável. De qualquer modo, não nos compete sondá-las: de acordo com a lei, compete-nos obedecer-lhes. Claro que, por enquanto, o dr. Laurentino anuncia as marchas e as corridas (organizadas) como uma opção, para a qual o Governo criará as "condições". Mas o Governo, repleto de objectivos, também já provou que das "condições" à compulsão vai um pequeno passo, em marcha ou corrido. Modestamente, eu tenho um objectivo: daqui a uns meses, gostava de aplicar as palavras "Governo" e "corrido" noutra frase.
Sexta-feira, 6 de Março
UM VENTO QUE NÃO PASSA
Poetas convencionais falam da morte, do sexo, do amor ou de Deus. Manuel Alegre prefere temas mais prosaicos. O homem que já nos brindou com 852 elegias à revolução de Abril (incluindo "Abril com 'r'": "r até de porra r vezes dois") e uma ao futebolista Figo ("e em cada rua é um menino/de camisola número sete") alinhavou agora uns versos sobre contentores. Leram bem: contentores. Pelos vistos, o fascinante assunto não se esgotara na cantiga alusiva de uma banda pop (os Xutos & Pontapés). Não, senhor. Portugal carecia de nova abordagem lírica a essas caixas metálicas que enfeitam, ou mancham, as zonas portuárias.
Alegre acha que mancham, e por isso o Fado dos Contentores, publicado no seu site pessoal (www.manuelalegre.com), bate com vigor nos ditos que se empilham junto ao Tejo e impedem ao bardo o usufruto da paisagem: "Por mais que busques defronte/Nem ilhas praias ou flores/Não há mar nem horizonte/ /Só contentores contentores." Ilhas? É evidente que se trata de uma liberdade criativa, já que depois de Alcântara está Cacilhas, cuja superioridade estética face aos contentores será talvez polémica.
Polémica também é a qualidade do texto, como aliás é típico de qualquer poema que rime "contentores" com "flores", "bojadores", "navegadores", "cores", "dores" e, no singular, "vapor". Sem me querer alongar no comentário, digamos que há alguma urgência em que o PS sossegue a dissidência eternamente adiada de Alegre. Caso contrário, corremos o risco de levar em breve com a Trova da Banca (palpite: "Só um cego é que não vê/a perfídia que se esconde/por detrás da CGD"), a Valsa das Taxas Moderadoras ("Tiraram-te pedra do rim/e cinco euros por dia/ /a pedra saiu assim/o conto de reis doía/fora os dois da cirurgia") e, Deus nos livre, a Balada do Augusto ("Dizias-te resistente/ao domínio da canalha/Hoje a canalha é diferente/E ao lado dessa gente/Ergues malho, dizes malha.")
Se é sabido que custa calar o poeta, é importante que o eng. Sócrates, sempre desejoso de silenciar meio mundo, ao menos tente. É que Alegre é de facto uma voz incómoda - para o eng. Sócrates e, mesmo quando tem certa razão, para todos nós.
Sábado, 7 de Março
CRONOLOGIA DE UM RESGATE
A 21 de Dezembro, o dr. Pinho anunciou o plano de salvamento da Qimonda, mediante um empréstimo de cem milhões (via CGD).
A 15 de Janeiro, o dr. Pinho jurou que o Estado não concederá empréstimos à Qimonda e que esta não recebeu nenhuns cem milhões.
A 21 de Janeiro, o dr. Pinho disse que a Qimonda "tem todas as condições" para manter a laboração.
A 23 de Janeiro, o eng. Sócrates prometeu que o Governo "tudo fará para ajudar a Qimonda".
A 27 de Janeiro, o dr. Pinho afirmou ainda acreditar na salvação da Qimonda.
A 28 de Janeiro, o eng. Sócrates concordou que a salvação da Qimonda não depende do Governo.
A 2 de Fevereiro, o dr. Pinho afiançou a existência de compradores para a Qimonda.
A 3 de Fevereiro, o dr. Pinho admitiu que a falência da Qimonda pode ser positiva.
A 17 de Fevereiro, o dr. Pinho acusou o Governo alemão de nada fazer para salvar a Qimonda.
A 19 de Fevereiro, o dr. Pinho notou no congénere alemão "abertura" para salvar a Qimonda.
A 2 de Março, o dr. Pinho garantiu desconhecer interessados na compra da Qimonda.
A 4 de Março, na Alemanha em comitiva presidencial, o dr. Pinho evitou falar da Qimonda.
Também a 4 de Março, após encontro com Angela Merkel, Cavaco Silva mostrou-se pessimista quanto ao futuro da Qimonda.
A 5 de Março, o ministro Luís Amado revelou que o encontro com Merkel trouxe "desenvolvimentos optimistas" para o problema da Qimonda.
Também a 5 de Março, o dr. Pinho disse que o Governo está disposto a financiar a Qimonda no que for necessário.
Ainda a 5 de Março, Cavaco Silva recebeu "sinais positivos" do ministro da Baviera sobre a Qimonda.
(continua)
Se não explica o empenho em preservar uma empresa inviável e dada a prejuízos monumentais, a novela da Qimonda demonstra o estilo do Governo, uma coisa a oscilar entre o voluntarismo, a intrujice e o desnorte. Convinha que o estilo não contaminasse o prof. Cavaco, apesar de tudo um resguardo de sensatez num tempo em que, ao contrário das memórias RAM produzidas na Qimonda, semelhante bem é escasso.
2 Comentários:
You're late. Been there, done that.
Stole the T-shirt...
Adenda: ou como uma legião de fãs é olimpicamente negligenciada...
Queremos blogue activo já!
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