Ratos e homens
Alberto Gonçalves, no Diário de Notícias de 18/11/2012
Os mártires da banda larga
A propósito dos distúrbios de quarta-feira em São Bento, um dilema: que partido tomar nos confrontos entre a polícia e populares com pedras ou populares que se juntam a populares com pedras? É fácil: numa ditadura, branda que seja, deve-se defender os segundos; numa democracia, fraquinha que esteja, convém preferir a primeira. Embora não tenha nenhum fascínio pelas forças da ordem, lido pior com as forças da desordem, ou no caso os bandos de delinquentes que tentam contrariar pelo caos a escolha de milhões nas urnas. Numa sociedade apesar de tudo livre, cada indivíduo devotado à destruição de propriedade pública ou privada é uma homenagem à prepotência e, para usar um conceito recorrente por cá, um autêntico fascista. Se os fascistas que empunham calhaus (e os patetas que se lhes associam) querem impor arbitrariamente a vontade deles sobre a nossa, é natural considerarmos que uma derrota deles, ou uma bastonada na cabecinha, é uma vitória nossa.
É verdade, admito, que há quem hesite em chamar democrático ao regime vigente e livre à sociedade actual. Mas também não é difícil dissipar as dúvidas. Se os manifestantes detidos desaparecem sem deixar rasto e provavelmente para sempre, a coisa tende para o despotismo. Se, passadas três horas, os manifestantes reaparecem nas respectivas páginas da ditas redes sociais a exibir mazelas ligeiras e a choramingar o zelo securitário, a coisa tende obviamente para o lado bom. E cómico.
Aliás o Público, sem se rir, publicou uma reportagem hilariante acerca do assunto, ou da falta dele, sob o não menos hilariante título "Manifestantes abrigaram-se no Facebook para mostrar as feridas". A reportagem é uma sucessão de anedotas explícitas e implícitas, de que custa destacar uma. Talvez a distância que separa a repressão de que os agredidos se queixam do conforto do lar (com banda larga) e da liberdade de expressão de que beneficiam. Talvez a velocidade com que sujeitos fascinados pela violência passam a esconjurá-la quando esta se volta contra si. Talvez os inúmeros desabafos líricos despejados na internet e que o mencionado diário leva aparentemente a sério (um exemplo: "Não fugimos da justiça, em nome do rapaz em sangue que perguntava insistentemente 'porquê, porquê?'"). Talvez a citação do escritor Mário de Carvalho, que comparou o sucedido nos degraus do Parlamento às "ditaduras da América Latina".
À semelhança do rapaz em sangue, pergunto: porquê, porquê ficarmo-nos apenas pela referência às tiranias sul-americanas (já agora, quais: a cubana? A venezuelana? A utopia socialista de Jonestown? A argentina que na guerra das Falkland os comunistas apoiaram por oposição ao Reino Unido? Desconfio que será exclusivamente a chilena)? Com jeitinho, acaba-se a comparar a carga policial ao Holocausto ou ao genocídio do Ruanda, cujas vítimas só careciam de uma ligação à "rede" para sofrer tanto quanto os mártires de São Bento, caídos em combate às mãos da PSP. E levantados de imediato junto ao teclado e ao rato mais próximos. Ratos e homens, de facto."
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