Uma farsa
Constança Cunha e Sá in Público (20/11/2008)
Uma farsa
Na terça-feira, como seria de esperar, o país caiu em cima da dra. Ferreira Leite. Não é impunemente que a líder do maior partido da oposição decide vir a público defender as vantagens de uma ditadura provisória para "meter tudo na ordem", antes de se regressar à velha balbúrdia da democracia onde qualquer reforma exige inevitavelmente a colaboração dos que não estão na disposição de se deixar reformar. Houve quem, tentando desesperadamente desculpar o indesculpável, descortinasse, nestas declarações, uma ironia subtil que não terá sido devidamente detectada por parte da classe política e da comunicação social. Mas, como foi referido por uma mão-cheia de patriotas, há matérias, altas como esta, que não se prestam a exercícios de humor.
Daí que, ironias à parte, as desconcertantes palavras da dra. Ferreira Leite tenham obrigatoriamente que ser tomadas à letra. E tomadas à letra revelam, como compreendeu de imediato o dr. Alberto Martins, que a presidente do PSD defende a instauração de uma ditadura por um tempo mínimo de seis meses, durante os quais, supõe-se, seria restaurada a censura, suprimida a liberdade de expressão, encerrada a Assembleia da República, abolidos os partidos políticos e suspensa a participação na União Europeia. Tudo isto a bem do país (ou, melhor, da nação) e das reformas inadiáveis que a democracia, com os seus floreados, não deixa concretizar.
Não se sabe se o PSD, nesta sua cruzada contra o regime, conta com os "actos disparatados" que, segundo o general Loureiro dos Santos, poderão eclodir no seio de umas Forças Armadas à beira do desespero. Mas sabe-se que, no interior do partido, são muitas as vozes que consideram que não é possível "meter tudo na ordem" num prazo tão curto, defendendo que o período de seis meses deve ser prolongado por tempo indeterminado. Perante este clima de sublevação e a iminência de um golpe de Estado, o intrépido dr. Luís Filipe Menezes exigiu pela centésima quarta vez a demissão imediata da dra. Ferreira Leite, perguntando, com ar dorido, "quantas voltas estará a dar no túmulo Sá Carneiro ao ver o seu partido defender que a democracia deve ser suspensa?" Independentemente dos resultados desta indagação tumular, o dr. Menezes defende, com redobrado ardor, a realização de um congresso extraordinário, no primeiro trimestre de 2009, com o objectivo de remover da direcção do partido todos os adeptos da ditadura.
No mesmo dia, o PS e o Governo, interrompendo a sua cruzada contra os professores e sem condições para comentar a revisão em baixa do crescimento económico e o aumento do desemprego, nomeadamente o de longa duração, que o dr. Vítor Constâncio atribui "ao conforto do subsídio de desemprego" (quem sabe, se acabando com ele, o problema se resolve!) foram obrigados a sair em defesa do regime, criticando as palavras "antidemocratas" da dra. Ferreira Leite. Num primeiro momento, o dr. Alberto Martins criticou veementemente a instauração de uma ditadura provisória, proposta pelo PSD, explicando, a quem ainda não tinha percebido, que "não há ironia quando se apela a uma ideia de interrupção da democracia" que, como ele muito bem sabe, tanto "custou a construir". Tentando enquadrar a matéria, o líder parlamentar socialista chamou a atenção para uma assustadora "sequência" de atitudes, pautadas pela "xenofobia" e por vários silêncios cúmplices. O dr. Santos Silva, por sua vez, exigiu "explicações" à dra. Ferreira Leite, já que "existem fundadas dúvidas" sobre o que esta "pensa e sente acerca da democracia".
Neste ponto do debate, seria de esperar que já não houvesse dúvidas (fundadas ou não) sobre os pensamentos ou sentimentos da dra. Ferreira Leite. Depois do PS e do Governo terem garantido que a líder do PSD tinha apelado à interrupção da democracia e que não havia ironia que distorcesse esse intolerável escândalo, deixou de haver dúvidas, para haver apenas um caminho a seguir: acompanhar o dr. Menezes, exigir a demissão imediata da dra. Ferreira Leite e combater, sem desfalecimentos, a ditadura que ela gostaria de ver instaurada em Portugal. Como se sabe, não foi isso que aconteceu: enquanto o dr. Menezes ficou entregue a si próprio, tentando descortinar quantas voltas estará o dr. Sá Carneiro a dar no túmulo, o PS e o Governo deixaram a defesa da democracia para melhores dias e debruçaram-se, ontem, sobre a crise na Educação, acusando os sindicatos de contribuírem, com o seu "extremismo", para acentuar o "conflito" entre o Governo e os professores.
Esta actuação, para além de levantar algumas dúvidas (fundadas) sobre os objectivos da maioria governamental, revela também uma perigosa debilidade da nossa democracia. Porque das duas, uma: ou ninguém levou a sério as declarações da dra. Ferreira Leite e toda a gente decidiu aproveitar uma ironia, sem consequências, para montar um circo hipócrita e moralista; ou, mais grave ainda, a líder do PSD defendeu, de facto, a instauração de uma ditadura e isso serviu, apenas, para animar os telejornais do dia. E mesmo nesse dia, nem o dr. Alberto Martins, do alto do seu antifascismo, foi capaz de exigir a demissão de quem defendeu a suspensão da democracia e está à frente do maior partido da oposição. Talvez porque a democracia é, cada vez mais, uma farsa.
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