quarta-feira, julho 23, 2008
terça-feira, julho 22, 2008
Prémio
Foi dado à luz um dos posts mais pindéricos e demagogicamente piegas da blogosfera lusa. Daqueles a puxar ao sentimento, a «rasgar» a «veia poética» e a exigir declamação por Ary dos Santos (caso fosse vivo, claro). No limite do ridículo (mesmo, mesmo). Aqui.
segunda-feira, julho 21, 2008
Processo de Maddie arquivado
Everybody knows that the dice are loaded
Everybody rolls with their fingers crossed
Everybody knows that the war is over
Everybody knows the good guys lost
Everybody knows the fight was fixed
The poor stay poor, the rich get rich
Thats how it goes
Everybody knows
Everybody knows that the boat is leaking
Everybody knows that the captain lied
Everybody got this broken feeling
Like their father or their dog just died
Leonard Cohen Everybody Knows
sexta-feira, julho 18, 2008
Ó Isa: com uma crónica destas, como queres tu que eu não o cite?
Vasco Pulido Valente in Público (18/07/2008)
Desigualdade
Os 20 por cento de portugueses mais ricos (à volta de um milhão) ganham sete vezes mais do que os 20 por cento de portugueses mais pobres. Quando se fala em desigualdade, e agora toda a gente fala em desigualdade, a conclusão é sempre que se deve redistribuir o rendimento nacional para acabar com esta horrível injustiça, como se a coisa fosse clara e, até certo ponto, simples. Mas não é. Excepto por uma pequena minoria, os 20 por cento de portugueses ricos não são, de facto, ricos: são a classe média e, pior ainda, uma classe média pobre. Não se trata de tirar a quem tem muito para dar a quem tem pouco. Não estamos na Alemanha, em França ou em Inglaterra. Além de politicamente inconcebível, um aumento da carga fiscal sobre a classe média acabaria tarde ou cedo por levar a um colapso económico e à paralisia do Estado-Providência.
Grande parte dos 20 por cento de portugueses mais ricos vive, directa ou indirectamente, do dinheiro do contribuinte: ou porque trabalha na administração central ou local; no Serviço de Saúde ou no "sistema educativo"; ou porque trabalha em empresas públicas de uma espécie ou de outra; ou porque recebe subsídios. Não vale a pena dizer que a "riqueza" destes "ricos" depende quase só do Orçamento e que é, de certa maneira, "fictícia". O que o Governo podia espremer deles, sem pôr em causa a sua existência e a estabilidade do regime, já espremeu. Claro que também há "ricos" no "sector privado". Mas como esperar que a economia se "modernize" e cresça se o Estado se apropriar à partida dos resultados do risco (que tanto gaba) e da inovação (que tanto deseja)?
Numa sociedade miserável, o que se redistribui é sempre a miséria. Em 30 anos, Portugal chegou até onde a realidade e a "Europa" lhe permitiram chegar. Embora com erros, com desperdício, com ineficácia, a Segurança Social, o Serviço de Saúde e mesmo o "sistema educativo" redistribuem mais do que nunca se redistribuiu em toda a nossa a história. Se a desigualdade continua é porque os 20 por cento de pobres não ganham o que deviam ganhar e não porque os 20 por cento de portugueses mais ricos paguem ao Estado menos do que deviam pagar. A desigualdade continua porque o país não produz, não exporta, não investe e não poupa; porque se endivida; e porque o Estado o desorganiza, corrompe e abafa. Isto é a evidência. Infelizmente, de quando em quando, convém repetir a evidência.
quinta-feira, julho 17, 2008
A diferença
Notícia Público:
De um lado, um povo chora o regresso de dois soldados do seu exército dentro de dois caixões. Do outro lado, gente que celebra a entrega desses dois caixões e o regresso de alguns carniceiros vivos (um deles assassinou uma criança de quatro anos à coronhada).
De um lado, a noção da tragédia, o sentido do pesar, a solenidade de um momento triste, o simbolismo de um episódio sombrio, na longa e sofrida história de um povo e de uma região. Do outro, grita-se vitória, ergue-se a festa, elegem-se os heróis, nomeiam-se os santos e os reis.
Encontramos, nestes comportamentos antagónicos, toda a diferença. De um lado, o que nos resta, como seres humanos, em matéria de decência e de moral. Do outro, o fanatismo bárbaro, cego, amoral.
Em Naqura, no Sul do Líbano, [o Hezbollah] encenou uma recepção triunfal aos presos, designadamente a Kuntar, erigido em herói da nação árabe. Milicianos do Hezbollah, montados em cavalos engalanados de amarelo (a cor do movimento), tapetes vermelhos no chão e bandeiras gigantes. Um cartaz dizia: "O Líbano derrama lágrimas de alegria, Israel lágrimas de dor". O líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, decretou feriado nacional. A sua televisão, Al-Manar, transmitia as palavras da mãe de um dos presos: "Nasrallah, tu devias ser proclamado rei dos árabes".
De um lado, um povo chora o regresso de dois soldados do seu exército dentro de dois caixões. Do outro lado, gente que celebra a entrega desses dois caixões e o regresso de alguns carniceiros vivos (um deles assassinou uma criança de quatro anos à coronhada).
De um lado, a noção da tragédia, o sentido do pesar, a solenidade de um momento triste, o simbolismo de um episódio sombrio, na longa e sofrida história de um povo e de uma região. Do outro, grita-se vitória, ergue-se a festa, elegem-se os heróis, nomeiam-se os santos e os reis.
Encontramos, nestes comportamentos antagónicos, toda a diferença. De um lado, o que nos resta, como seres humanos, em matéria de decência e de moral. Do outro, o fanatismo bárbaro, cego, amoral.
sábado, julho 12, 2008
O retrato de um país
Vasco Pulido Valente in Público (12/07/2008)
”O Estado da Nação”
O"Estado da Nação"? Basta olhar para a Assembleia, quieta e calada, para se perceber o "Estado da Nação". Em nenhum parlamento da "Europa" subsiste um partido como o Partido Comunista Português, que não deixou ainda a "guerra fria" e vê Portugal como o via em 1960. Com uma certa razão. O PCP não é, por assim dizer, o artifício de um fanatismo inexplicável e ridículo: é o produto arcaico de uma economia arcaica e de um Estado autoritário e monstruoso. Num país moderno não existiria; na eterna "modernização" de Portugal prospera. Exactamente como o Bloco, que vem do mundo dúbio da heterodoxia marxista e se alimenta da pobreza letrada e de uma velha história, que só neste ermo, esquecido e miserável, continua. O PC e o Bloco são, segundo as sondagens, 20 por cento do eleitorado.
Fora isto, que já chega, há o "debate" entre os presuntivos representantes da democracia "burguesa". De facto, não há debate - de qualquer espécie. A oposição fala do atraso e da insuficiência do país, que naturalmente quase não varia, e atribui ao Governo a culpa dessa interminável desgraça. O Governo devolve a culpa à oposição, que já foi governo, e gaba os méritos das duas ou três coisas, que no meio da balbúrdia conseguiu fazer. Nunca, em tempo algum, se sai daqui. Assistir a uma sessão é assistir a todas. Nem as personagens mudam; e a realidade, essa, não penetra em S. Bento. Para os participantes neste ritual, a substância de uma questão ou de um argumento não contam. "Ganhar" é a afirmação de uma simples superioridade teatral ou da "esperteza" bronca e bruta, que "apanha" o próximo e que o indígena tanto estima.
Em 1975, a Assembleia ainda sabia gramática e usava com alguma eficiência a língua portuguesa. Hoje papagueia sem vergonha os lugares-comuns da propaganda partidária ou perora num calão administrativo e "técnico", que se destina habilidosamente a esconder a verdade ou o vácuo. A tradição oratória, até a salazarista, desapareceu. Não há memória de um discurso organizado e claro, que tenha tido sobre a opinião pública um efeito profundo e duradouro. A Assembleia é um clube privado que, de quando em quando, a televisão mostra a um país mais do que indiferente.
O "debate" sobre o "Estado da Nação" da última quinta-feira exibiu involuntariamente o país como ele é: a indigência intelectual, a mesquinhez de propósito, a irresponsabilidade política. Daquela gente não se pode esperar nada.
sexta-feira, julho 11, 2008
A ignorância de um primeiro-ministro seguida de desculpa esfarrapada
Na quarta-feira passada, o Eng. José Sócrates tirou da cartola um coelho apressado mas vistoso, daqueles que crescem em poucos dias por via intravenosa de hormonas: os «carros eléctricos». Portugal está, supostamente, salvo: vêm aí os carros eléctricos, com o patrocínio e o beneplácito da Reanult-Nissan (há sempre umas marcas eleitas pelo regime, que o servem quando recrutadas para tal).
Desgraçadamente, esta pífia solução de e para basbaques não esteve isenta da gaffe da ordem. As pressas e o show-off deram nisto: o Sr. Primeiro
afirmou que "se um carro eléctrico já existisse actualmente, apenas pagaria 30 por cento do imposto automóvel, já que este imposto tem em 70 por cento uma componente ambiental” (sic), seguida da não menos extraordinária ”o Governo está disponível para criar um quadro fiscal ainda mais atraente" (sic).
Como bem lembrou a Quercus, hoje, a componente ambiental representa 60 por cento e não 70 por cento do cálculo do imposto e, actualmente, um veículo eléctrico está isento dos impostos. Um veículo eléctrico está isento tanto de Imposto sobre Veículos como de Imposto Único de Circulação. O primeiro-ministro enganou-se em toda a linha (até no percentual).
Perante isto, fonte oficial do gabinete do primeiro-ministro fez questão de revisitar o clássico «a emenda é pior que o soneto», desafiando o imperscrutável: afinal, o que o primeiro-ministro quis valorizar, e que só pessoas moralmente deformadas não souberam reparar, indo ao ponto de se fixar em minudências que só baralham o essencial, foi o facto de Portugal ter uma taxa de imposto automóvel "das mais favoráveis da Europa para promover veículos amigos do ambiente", ou seja, "quando se referiu aos 30 por cento de pagamento sobre a cilindrada do imposto automóvel [o primeiro-ministro] estava a referir-se ao caso de se aplicar o regime geral. Mesmo nesse caso, no regime geral, pagaria apenas 30 por cento".
Isto não roça o insulto. Isto é um opróbrio. Para além de Portugal ter uma taxa de imposto automóvel obscena – sobre a qual incide ilicitamente o IVA – a gaffe do Eng. Sócrates é insofismável. O que só confirma a minha tese: é mais verosímil ver o Carlos Abreu Amorim a abraçar o Paulo Portas do que esperar que este governo reconheça um erro e evite, en passant, insultar a inteligência alheia.
Desgraçadamente, esta pífia solução de e para basbaques não esteve isenta da gaffe da ordem. As pressas e o show-off deram nisto: o Sr. Primeiro
afirmou que "se um carro eléctrico já existisse actualmente, apenas pagaria 30 por cento do imposto automóvel, já que este imposto tem em 70 por cento uma componente ambiental” (sic), seguida da não menos extraordinária ”o Governo está disponível para criar um quadro fiscal ainda mais atraente" (sic).
Como bem lembrou a Quercus, hoje, a componente ambiental representa 60 por cento e não 70 por cento do cálculo do imposto e, actualmente, um veículo eléctrico está isento dos impostos. Um veículo eléctrico está isento tanto de Imposto sobre Veículos como de Imposto Único de Circulação. O primeiro-ministro enganou-se em toda a linha (até no percentual).
Perante isto, fonte oficial do gabinete do primeiro-ministro fez questão de revisitar o clássico «a emenda é pior que o soneto», desafiando o imperscrutável: afinal, o que o primeiro-ministro quis valorizar, e que só pessoas moralmente deformadas não souberam reparar, indo ao ponto de se fixar em minudências que só baralham o essencial, foi o facto de Portugal ter uma taxa de imposto automóvel "das mais favoráveis da Europa para promover veículos amigos do ambiente", ou seja, "quando se referiu aos 30 por cento de pagamento sobre a cilindrada do imposto automóvel [o primeiro-ministro] estava a referir-se ao caso de se aplicar o regime geral. Mesmo nesse caso, no regime geral, pagaria apenas 30 por cento".
Isto não roça o insulto. Isto é um opróbrio. Para além de Portugal ter uma taxa de imposto automóvel obscena – sobre a qual incide ilicitamente o IVA – a gaffe do Eng. Sócrates é insofismável. O que só confirma a minha tese: é mais verosímil ver o Carlos Abreu Amorim a abraçar o Paulo Portas do que esperar que este governo reconheça um erro e evite, en passant, insultar a inteligência alheia.
terça-feira, julho 08, 2008
Baralhando o Daniel
É no mínimo tocante a forma como o mundo se encontra devidamente arrumado na cabeça do Daniel Oliveira. Para o Daniel Oliveira, o problema das casas devolutas em Lisboa explica-se com a habitual canga da esquerda bé: os «ricos» não estão interessados na «comunidade»; os «ricos» não sabem viver em «sociedade»; os «ricos» preferem ver as suas casas vazias do que apinhadas de indigentes e respectivas proles; os «ricos» vivem da e para a «especulação». Factos que o Daniel considera insustentáveis de tão brutais. O «proprietário» – vocábulo apriorístico na caracterização de «rico» - da casa devoluta na Avenida da Liberdade ou numa outra avenida/zona chique ou in, é, na sensível cabeça do Daniel Oliveira, uma criatura ostensiva ou dissimuladamente rica que só por intenção malévola ou ociosidade especulativa aprecia abandonar aos elementos ou aos acidentais vagabundos os seus palacetes. Perante este prodigioso raciocínio, que soluções para o problema produziu o delicado e estimável encéfalo do Daniel Oliveira? Simples: «taxar fortemente» o ignaro proprietário, com o nobre objectivo de o acordar do torpor que a espaços o assalta ou da manhosice endémica que o habita.
Não querendo, de forma alguma, beliscar o brilhantismo desta ideológica «solução total» (que o Daniel descobriu em Nova Iorque), convinha perceber ou clarificar alguns pontos. Em primeiro lugar, será a totalidade ou a grande maioria dos proprietários destas casas gente suficientemente abastada para encetar obras de recuperação ou beneficiação? Não. Segundo: as rendas foram, como diz o Daniel Oliveira, total e transversalmente «descongeladas»? Não. Terceiro: a CML pode lavar as suas mãos deste problema, esquecendo os empecilhos burocráticos que os proprietários mais voluntaristas enfrentam quando pretendem fazer obras ou, por outro lado, menosprezando o facto de não ter uma verdadeira e pragmática política para a requalificação de imóveis no centro da cidade que ajude os proprietários mais desfavorecidos? Por último, pensará o Daniel que o proprietário de um prédio que recebia cinco rendas de 30 euros e que passou, após o salvífico «descongelamento», a receber cinco rendas de 300, está automaticamente habilitado a encetar obras de milhares ou milhões de euros?
Ao contrário do Daniel Oliveira, não aspiro, por incapacidade, a solucionar o problema dos prédios devolutos em Lisboa (ou na generalidade das cidades portuguesas). Sei apenas isto: a solução dos prédios devolutos não passa por uma perseguição cega e preconceituosa do proprietário.
Não querendo, de forma alguma, beliscar o brilhantismo desta ideológica «solução total» (que o Daniel descobriu em Nova Iorque), convinha perceber ou clarificar alguns pontos. Em primeiro lugar, será a totalidade ou a grande maioria dos proprietários destas casas gente suficientemente abastada para encetar obras de recuperação ou beneficiação? Não. Segundo: as rendas foram, como diz o Daniel Oliveira, total e transversalmente «descongeladas»? Não. Terceiro: a CML pode lavar as suas mãos deste problema, esquecendo os empecilhos burocráticos que os proprietários mais voluntaristas enfrentam quando pretendem fazer obras ou, por outro lado, menosprezando o facto de não ter uma verdadeira e pragmática política para a requalificação de imóveis no centro da cidade que ajude os proprietários mais desfavorecidos? Por último, pensará o Daniel que o proprietário de um prédio que recebia cinco rendas de 30 euros e que passou, após o salvífico «descongelamento», a receber cinco rendas de 300, está automaticamente habilitado a encetar obras de milhares ou milhões de euros?
Ao contrário do Daniel Oliveira, não aspiro, por incapacidade, a solucionar o problema dos prédios devolutos em Lisboa (ou na generalidade das cidades portuguesas). Sei apenas isto: a solução dos prédios devolutos não passa por uma perseguição cega e preconceituosa do proprietário.
sexta-feira, julho 04, 2008
É de herói e de mártir: espremer, mas com «coragem» e «confiança»
Vasco Pulido Valente in Público (04/07/2008)
As duas crises
Não há economista que não se lembre, e não nos fale, do colapso de 1929 (que, de facto, durou até à guerra). Segunda-feira, António Vitorino, na RTP, disse muito seriamente que a democracia podia estar em perigo. Anteontem, Medina Carreira anunciou que vinha aí "barulho", ou seja, uma forma qualquer de reviravolta à força. E o dr. Amado preveniu o parlamento de que, desde a II Guerra Mundial, a situação da Europa nunca fora tão grave. Este espírito apocalíptico não fica pela gente culta e conhecida. Chegou a toda a parte: à imprensa, à televisão, à rádio, ao agricultor anónimo que prevê o futuro para um repórter meio analfabeto. Parece que, de acordo com uma sondagem recente, os portugueses são o povo mais triste e desesperado da "Europa". O que não admira.
No meio disto, o primeiro-ministro resolveu sossegar o país. E como? Com a "teoria das duas crises". Para Sócrates, não existe uma "crise", existem duas: uma "crise interna" e uma "crise externa". Quanto à "crise interna", o governo que ele tão primorosamente dirige já a "venceu": o famoso "défice" é o "melhor" de sempre, a modernização da economia é manifesta e aumentou, ainda por cima, a protecção "aos que mais precisam". Sócrates pôs Portugal no bom caminho e só merece a nossa gratidão. Mas de repente caiu do céu a "crise externa": a desordem financeira internacional, o preço do petróleo, o referendo da Irlanda, a teimosia da Polónia e outras desgraças. Sócrates não passa de uma vítima inerme e inocente desta catástrofe natural, como a vítima de uma tempestade ou de um terramoto.
E o que vai ele fazer? Nada, naturalmente. Vai continuar, como de costume, a "vencer" a "crise interna" (a espremer o contribuinte). E vai "enfrentar" a "crise externa", com imensa "confiança", "determinação" e "coragem": o que, embora bonito, não promete aliviar o cidadão arruinado ou desempregado. Sucede que Sócrates não se interessa por isso. O que ele quer é introduzir na cabeça de cada presuntivo eleitor uma divisão nítida entre o Sócrates da "crise interna", ele mesmo o herói, e o Sócrates da "crise externa", o mártir da história. E quer também que, em Outubro (ou Julho) de 2009, os portugueses, com esta essencial diferença em mente, votem no Sócrates doméstico do défice e das "reformas". Infelizmente para ele, na miséria geral, ninguém se irá lembrar dessa personagem.
Como é que chegámos até aqui? (2)
Maria Filomena Mónica in Público (04/07/2008)
Os testes de Português podiam ser substituídos por uns papeluchos como os do Totobola
Hoje de manhã acordei a pensar no Ministério da Educação. Num mundo ideal, eu seria professora de Português, consistindo a minha missão em sujeitar a exame todos os membros do Gave (Gabinete de Avaliação Educacional), da DGIDC (Direcção-Geral de Inovação e Desenvolvimento Curricular), do GEPE (Gabinete de Estatística e Planeamento da Educação), da DGRHE (Direcção-Geral dos Recursos Humanos da Educação) e da ANQ (Agência Nacional para a Qualificação), usando para o efeito uma "grelha" por mim elaborada.
Este desejo surgiu depois de ter lido os programas, os exames e os critérios de avaliação em vigor. Com filhos crescidos e netos demasiado pequenos para frequentar a escola secundária, tenho andado arredada da matéria, embora, pelo que ia ouvindo, por esquinas e ruas, suspeitasse de que a asneira tivera carta de alforria.
Há três semanas, durante uma sessão de autógrafos na Feira do Livro, conversei com algumas professoras do ensino secundário. O encontro despertou o meu apetite por analisar as provas de exame de Português. Havia muito - exactamente desde 1997, quando publiquei Os Filhos de Rousseau - que o não fazia.
Não foi difícil obter, na Internet, o seu enunciado, ou antes, não foi difícil depois de o director deste jornal me ter enviado o devido link. Comecei pela Prova Escrita de Português do 12.º Ano de Escolaridade, a qual incluía um texto de Camões, outro de Luís Francisco Rebelo e outro de Guilherme Oliveira Martins.
À cabeça, aparecia o extracto do Canto X de Os Lusíadas, começando em "Que as Ninfas do Oceano, tão fermosas,/..." e terminando em "Que possuí-los sem os merecer". Se a inclusão do maior poeta épico português não me admirou, o mesmo não posso dizer das perguntas sobre ele feitas.
No final da primeira parte, pedia-se ao aluno que comentasse, num texto de oitenta a cento e vinte palavras, a experiência de leitura de Os Lusíadas. Com medo de que esta se reduzisse a nada, fornecia-se, em epígrafe, as seguintes linhas de Maria Vitalina Leal de Matos: "Mas o texto é complexo e, por vezes até, contraditório. Em certos momentos exibe uma face menos gloriosa; aquela em que emergem as críticas, as dúvidas, o sentimento de crise". Não só o excerto era desnecessário, como podia causar perplexidade, uma vez que o esquema a preto e branco inventado pelo Gave não se coadunava com "complexidades".
Por outro lado, pareceu-me extraordinário que, a alunos de 17 e 18 anos, se tivesse de fornecer um glossário, no qual se explicava, por exemplo, o que era o Olimpo. Que andaram os meninos a aprender ao longo de dez anos de aulas de História?
Nos grupos II e III, transcrevia-se um texto de Luís Francisco Rebelo sobre O Memorial do Convento de José Saramago, e outro, de Guilherme Oliveira Martins, sobre o P. António Vieira. Do ponto de vista ideológico, o segundo era inócuo, o mesmo não se podendo dizer do primeiro.
Escolha múltipla
Depois de um elogio rasgado ao livro, L. F. Rebelo defendia coisas tão etéreas quanto "a história não é uma categoria imutável e fixa, mas a contínua respiração da realidade, rio cujas águas nunca param e nunca se repetem", desembocando o seu argumento no conceito de "luta de classes", após o que remetia para o poema de Brecht "Perguntas de um Operário Letrado", o qual servia de base para defender que O Memorial do Convento reflectia o conflito entre um "rei beato" e os "servos da gleba".
A fim de serem facilmente classificadas, muitas questões eram de escolha múltipla, ou seja, a seguir a uma frase vinham quatro opções, o que nos leva a pensar que, segundo a ideologia vigente, há uma e apenas uma verdade. Como se isto não fosse suficientemente arrepiante, algumas das supostas respostas certas estavam erradas: a vice-presidente da Associação de Professores de Português chamou imediatamente a atenção para a falta de acordo entre os colegas no que dizia respeito às respostas para o grupo II, 7.
No último grupo, o III, era pedida ao aluno uma redacção, entre duzentas e trezentas palavras, sobre a "temática da dignidade humana e do respeito pelos direitos humanos no nosso tempo". Visto tratar-se de escrever sobre o que passa no século XXI, não entendo a vantagem da inclusão do texto do actual presidente do Tribunal de Contas relativo ao século XVII. Pelos vistos, o contexto temporal desapareceu da cabeça destes pedagogos.
Intrigou-me também a ênfase nos autores contemporâneos. Um anjo-da-guarda explicou-me o motivo. A 4 de Outubro último, através da portaria 1322/2007, Válter Lemos [secretário de Estado da Educação] determinou que, este ano, os exames de Português do 12.º ano passassem a ter como matéria não o que fora dado ao longo do ciclo, como sucedia, mas apenas o leccionado no 12.º ano.
Mutilação planeada
Tal como sucedera no exame de Matemática, a mutilação foi deliberadamente planeada, no sentido de tornar mais simples os exames. Pelo meio, desapareceram autores como Eça de Queiroz e Cesário Verde - declaro, é evidente, um interesse pessoal -, substituídos por Luís de Sttau Monteiro e José Saramago, cujas obras Felizmente Há Luar e O Memorial do Convento são de leitura obrigatória (dada a fama internacional, Fernando Pessoa manteve-se). Em suma, dos clássicos, apenas Camões.
Como qualquer professor sabe, os alunos apenas estudam o que vem para exame, ficando indignados quando lhes "sai" uma coisa não estipulada. A portaria 1322/2007 deu-lhes autorização para esquecer o que eventualmente tivessem aprendido nos dois anos anteriores. Quem viu os telejornais não pode ter deixado de notar as declarações no sentido de que o exame de Português tinha sido "canja" e que, portanto, o futuro iria ser risonho. Não, não vai. Porque os alunos, que hoje ostentam uma face optimista, não tardarão a chorar ao verificarem que não arranjam emprego.
A responsabilidade pelo desastre - porque é de um desastre que se trata - deve ser atribuída a quem ocupa o poder, isto é, em primeiro lugar, a Maria de Lurdes Rodrigues, uma ministra cujo objectivo passou a consistir em baixar o insucesso escolar por via burocrática.
Mas voltemos aos exames. A disciplina de Português, obrigatória para todos os alunos que frequentam o 12.º ano, não é a única que aborda temas literários. Existe uma outra cadeira, optativa, de Literatura Portuguesa, resultado da divisão entre a língua e as obras. Se não é a ler os grandes escritores que se aprende a escrever, então como é? Mas disto não querem saber as luminárias. O programa é, de novo, coordenado pela guru Maria da Conceição Coelho, assessorada, desta feita, por Maria Cristina Serôdio e Maria Joana Campos, não sendo, por conseguinte, necessário voltar a cansar o leitor com citações.
Quero apenas notar que a bibliografia, além de tendenciosa, contém lacunas. Manda-se os professores ler R. Andrews, The Problem with Poetry, Piladelphia, Open University, 1991, e M. Bores et alia, Estética Teatral: textos de Platão a Brecht, Lisboa, Fundação Gulbenkian, 1996, mas a História da Literatura Portuguesa, de A. J. Saraiva e Óscar Lopes, não aparece, como não aparece um único livro de João Gaspar Simões. E, por favor, não me venham dizer que são livros datados.
Propaganda pura
A prova de Literatura Portuguesa para os 11.º e 12.º anos é melhor do que o programa, até porque os escritores escolhidos para análise são Camões e Camilo Castelo Branco. Dado os adolescentes serem particularmente sensíveis ao tema - razão menor, mas que aceito - a inclusão do soneto que começa com "Amor é um fogo que arde sem se ver..." e de um extracto do Amor de Perdição não me pareceu má ideia. Trata-se de clássicos cujo mérito ninguém disputa.
No Grupo III, pedia-se aos alunos para, baseando-se na sua experiência de leitura da lírica trovadoresca, escreverem um texto sobre o tema do sofrimento amoroso nas cantigas de amor. O exame mais bem elaborado é aquele a que um menor número de alunos se sujeitou. Se calhar, uma coisa está relacionada com a outra.
No final, lembrei-me de ver a prova de Língua Portuguesa do 9.º ano, um exame a que foram sujeitos dezenas de milhares de estudantes. Do programa, simplório, não reza a História. Desta feita, o escândalo é o próprio exame. O principal texto - o A - versa a União Europeia. Retirado da Internet, é um artigo de propaganda. Espero que ninguém tenha a tentação de me vir explicar, a mim que, nos idos de 1960, queimei as pestanas a tentar perceber o que, na opinião de Althusser, era um AIE (Aparelho Ideológico do Estado), e que, na década seguinte, se deliciou a ouvir o "We don´t need no education" dos Pink Floyd, que a escola transmite valores. Mas uma coisa é estar consciente do facto, outra é aceitar que nela se transmita propaganda pura e dura. Ora é isto que acontece nesta prova.
Não só os meninos foram sujeitos à ideologia veiculada pela nomenklatura europeia, como o que lhes era pedido se limitava a comentários de índole escolástica. Eis o início: "A União Europeia (EU) está empenhada no desenvolvimento sustentável. Para tal é necessário um equilíbrio cuidado entre a prosperidade económica, a justiça social e um ambiente saudável.
De facto, quando visados em simultâneo, estes três objectivos podem reforçar-se mutuamente. As políticas que favorecem o ambiente podem ser benéficas para a inovação e competitividade. Por sua vez, estas impulsionam o crescimento económico, que é vital para atingir os objectivos sociais".
Se eu tivesse sido sujeita a este exame, reprovaria: não porque tivesse lido mal o que lá vinha, mas por saber que algumas das frases tidas como incontroversas são mais do que duvidosas. Finalmente, a classificação das respostas - com um "V", de verdadeira, ou "F", de falsa - revela uma mente totalitária.
Seguia-se um texto de José Saramago sobre o sorriso. Não vou falar do suposto mérito literário do "nosso" Nobel, mas desejo reiterar que me parece absurdo fomentar a leitura com base em autores contemporâneos. Nem estes são de leitura acessível nem, mais importante, sabemos se têm mérito: um grande escritor é-o quando resistiu à erosão do tempo.
Na segunda metade do século XIX, a elite nacional decidiu que o maior poeta português era Tomás Ribeiro, o qual, em 1862, publicara um poema intitulado D. Jaime. O mais conceituado crítico da época, António Feliciano de Castilho, teve o desplante de considerar a obra como mais importante para o estudo da língua portuguesa do que Os Lusíadas, o que não suscitou arrepios. Mas alguém é hoje capaz de ler, sem se rir, as linhas com que abre o D. Jaime: "Meu Portugal, meu berço de inocente,/ lisa estrada que andei débil infante, variado jardim do adolescente,/ meu laranjal em flor sempre odorante/..."? Quem me garante que José Saramago não é o Tomás Ribeiro do século XX?
Faltava-me ler, com atenção, as instruções que o ministério enviou aos professores encarregues de corrigir os exames. Escolhi o caso do exame de Português do 12.º ano. O que vi - quadradinhos com "níveis de desempenho", listas com os "cenários de resposta" e grelhas com a "correspondência correcta" - deixou-me estarrecida. É certo que as instruções foram transcritas pelos jornais, mas, desacompanhadas dos exames, o leitor não tinha oportunidade de se aperceber da monstruosidade do esquema.
Examinadores vigiados
Não contente com a interferência na vida das escolas, o poder central entendeu por bem vigiar os examinadores de forma maníaca, não os deixando desviar uma linha do que os burocratas consideram "a" resposta correcta. A fim de que não se pense que sou tendenciosa, cito a primeira pergunta, relativa a Os Lusíadas, na qual se pedia ao aluno que expusesse, sucintamente, o conteúdo das três primeiras estâncias.
Nos critérios de avaliação enviados às escolas, especificava-se existirem três níveis de desempenho: o N3, no qual se expunha o conteúdo das três primeiras estâncias (a que se deveria dar 9 pontos), o N2, no qual se expunha o conteúdo de duas estâncias (que mereceria 6 pontos), e o N1, no qual se expunha apenas o conteúdo de uma das estâncias (ao qual se deveria dar apenas 3 pontos). É isto normal?
Na pergunta seguinte, depois de se ter afirmado que a "Fama" desempenhava um papel fundamental no processo de imortalidade, pedia-se ao aluno que referisse "três dos aspectos evidenciados nesse desempenho, fundamentando a sua resposta com citações do texto".
Seguia-se uma coisa designada como cenário de resposta, cujo objectivo era explicar aos professores o que eles sabem ou deviam saber: "A resposta deve contemplar os seguintes aspectos: a "ilha" (incluindo as Ninfas e Tétis) é o prémio, a recompensa dada aos marinheiros; os "deleites" são os triunfos, os louros (1ª estância); os prémios concedidos pela antiguidade eram atribuídos a quem fazia o difícil percurso da virtude (2ª estância); os deuses não passam de humanos que praticaram feitos de grande valor; daí terem recebido o prémio de imortalidade (3ª estância). Seguiam-se os critérios de avaliação, N3, N2 e N1, com a usual pontuação decrescente.
Na terceira pergunta, pedia-se, entre outras coisas, ao aluno para identificar a apóstrofe presente na estância 92. Lá voltavam a aparecer os "critérios específicos de classificação", com a respectiva pontuação. No "cenário de resposta", especificava-se que a resposta certa era "ó vós que as famas estimais". Se um aluno respondesse, por exemplo, "ó vós" - o que estaria certo -, a resposta teria de ser considerada errada. É isto aceitável?
Demorei-me a analisar este texto porque, de entre todos - e, como viram, a escolha não é fácil -, foi o que mais me escandalizou. Deste novo mundo, labiríntico, burocrático, totalitário, desapareceu a autonomia dos docentes, o dever de julgar e até o estímulo para separar os alunos marrões dos criativos. Se as perguntas de escolha múltipla já me tinham irritado, mais furiosa fiquei ao ver que o método era aplicado ao que antigamente se chamava uma redacção. Em grande medida, estas loucuras derivam da filosofia de avaliação expressa na obra de Válter Lemos, O Critério do Sucesso: Técnicas de Avaliação da Aprendizagem (1986).
Máquinas registadoras
Se isto choca nas chamadas Ciências Exactas, o facto é, nas Humanidades, uma anormalidade, uma vez que analisar um texto literário não é o mesmo que resolver um problema de Química. Nos anos 1960, a crítica literária teve de se defrontar com o marxismo e, depois, e em rápida sequência, com o estruturalismo, o pós-modernismo e a semiótica, correntes demasiado esotéricas para que delas possa, ou queira, falar.
A partir de então, a crítica literária foi tida como uma espécie de ciência. Tudo ficou de pernas para o ar, não me devendo eu espantar que a Língua Portuguesa tenha sido separada da História da Literatura nem que a análise do texto o seja dos respectivos autores. A coroar o disparate, o ministério optou por elaborar exames cujo objectivo é escamotear o facto de estarmos a formar uma geração incapaz de pensar, de falar e de escrever.
À volta da elite burocrática sediada no ministério, existe hoje um enxame de "especialistas" que determina o que é, ou não, "correcto". Os exames que elaboram poderiam ser substituídos por uns papeluchos como os do Totobola, nos quais os alunos fariam ao acaso umas cruzinhas, sendo estas posteriormente contadas por uma máquina.
O actual secretário de Estado da Educação e os seus anões não pertencem à tradição humanística que fez a glória da cultura ocidental, mas a uma corrente pedagógica que vê o aluno como um robot e o professor como uma máquina registadora. O Português não é a sua pátria.