É de herói e de mártir: espremer, mas com «coragem» e «confiança»
Vasco Pulido Valente in Público (04/07/2008)
As duas crises
Não há economista que não se lembre, e não nos fale, do colapso de 1929 (que, de facto, durou até à guerra). Segunda-feira, António Vitorino, na RTP, disse muito seriamente que a democracia podia estar em perigo. Anteontem, Medina Carreira anunciou que vinha aí "barulho", ou seja, uma forma qualquer de reviravolta à força. E o dr. Amado preveniu o parlamento de que, desde a II Guerra Mundial, a situação da Europa nunca fora tão grave. Este espírito apocalíptico não fica pela gente culta e conhecida. Chegou a toda a parte: à imprensa, à televisão, à rádio, ao agricultor anónimo que prevê o futuro para um repórter meio analfabeto. Parece que, de acordo com uma sondagem recente, os portugueses são o povo mais triste e desesperado da "Europa". O que não admira.
No meio disto, o primeiro-ministro resolveu sossegar o país. E como? Com a "teoria das duas crises". Para Sócrates, não existe uma "crise", existem duas: uma "crise interna" e uma "crise externa". Quanto à "crise interna", o governo que ele tão primorosamente dirige já a "venceu": o famoso "défice" é o "melhor" de sempre, a modernização da economia é manifesta e aumentou, ainda por cima, a protecção "aos que mais precisam". Sócrates pôs Portugal no bom caminho e só merece a nossa gratidão. Mas de repente caiu do céu a "crise externa": a desordem financeira internacional, o preço do petróleo, o referendo da Irlanda, a teimosia da Polónia e outras desgraças. Sócrates não passa de uma vítima inerme e inocente desta catástrofe natural, como a vítima de uma tempestade ou de um terramoto.
E o que vai ele fazer? Nada, naturalmente. Vai continuar, como de costume, a "vencer" a "crise interna" (a espremer o contribuinte). E vai "enfrentar" a "crise externa", com imensa "confiança", "determinação" e "coragem": o que, embora bonito, não promete aliviar o cidadão arruinado ou desempregado. Sucede que Sócrates não se interessa por isso. O que ele quer é introduzir na cabeça de cada presuntivo eleitor uma divisão nítida entre o Sócrates da "crise interna", ele mesmo o herói, e o Sócrates da "crise externa", o mártir da história. E quer também que, em Outubro (ou Julho) de 2009, os portugueses, com esta essencial diferença em mente, votem no Sócrates doméstico do défice e das "reformas". Infelizmente para ele, na miséria geral, ninguém se irá lembrar dessa personagem.
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