Um paradigma
Esta notícia diz muito, ou tudo, sobre um país.
Como escrevi aqui, há meses, não faltam por aí indicadores ou sinais – pequenos, grandes, assim-assim – que ilustram na perfeição aquilo a que poderíamos designar de «mentalidade de um povo», caso quiséssemos ou pudéssemos identificar um colectivo homogéneo de faculdades intelectuais e estados psicológicos, num país repleto de idiossincrasias as mais diversas e de gente dissemelhante.
Na altura, referi os sinais de aparência inconsequente ou mesquinha, mas que muito diziam, e dizem, da «mentalidade de um povo» (peço desculpa por insistir nesta mega-categoria, em que eu próprio não acredito, mas que dá um jeito do caraças quando toca a servir argumentos): o número reduzido de pessoas que se observa a ler nos transportes públicos ou na fila para o autocarro (pode distrair a mente e levar à perda da saída ou da entrada); a percentagem ínfima de veículos com caixa automática, com especial e incompreensível incidência no caso dos táxis (prescinde-se, desta forma, de exercitar a perna esquerda no ginásio); o número insignificante de pessoas que recorre a trolleys para transportar as compras do supermercado (a força de braços é bem mais estimulante); a estranha aversão dos cafés e pastelarias em disponibilizar compotas e derivados para servir com ou no pão (manteiga, fiambre e queijo e já é uma sorte!); o grau de utilização de bicicletas nas cidades (é preferível recorrer ao carro por tudo e por nada, até porque procurar lugar para estacionar é desporto nacional); as horas improváveis que a generalidade dos serviços de recolha do lixo escolhe para o fazer (é sempre simpático perfumar uma esplanada cheia de pessoas com o inebriante bouquet dos detritos urbanos). Podia acrescentar mais um: a obsessão, meio idiota, meio saloia, com a «calçada à portuguesa», responsável pelo facto das nossas cidades serem, no mundo dito civilizado, as que oferecem as piores condições de locomoção pedonal.
Estes foram, e são, os exemplos, digamos, «pequenos». Mas se os estimados leitores querem um de peso, apresento-vos o do (estranho) caso do transporte ferroviário.
Em pouco mais de trinta anos, Portugal (ou, se quiserem, os seus decisores), espatifaram, com efeitos que levarão décadas a reverter, a rede de caminhos-de-ferro (que já por si era fraquinha). Recorrendo agora à expressão da ordem, o bendito «modelo de crescimento» fez o seu caminho no Portugal de Abril também com base num tortuoso sistema de contrapartidas: invista-se no macadame, corte-se na ferrovia (com o beneplácito e a gratidão da industria automóvel). Ano após ano, e tirando da equação o trajecto de eleição dos decisores (Lisboa-Porto-Lisboa-Porto-Lisboa-Porto… já chega?), os comboios foram desaparecendo. Os que restaram, parecem do tempo do saudoso Fontes Pereira de Melo (que, com estas notícias, já deve dançar o vira no tumulo). Basta ilustrar o caso com a oferta de serviços disponibilizada pela CP (dados recolhidos há cerca de um ano):
Bem podem os cínicos, perdão, os idiotas da lógica e da objectividade, perdão, os aferidores do binómio causa-efeito, dizer: desapareceram porque as pessoas desapareceram, e a CP - racionalista, certinha, bem mandada -desinvestiu onde não havia razões para investir. Parte-se do confortável princípio de que a rede ferroviária acompanhou o êxodo das populações (nunca o inverso), assim como se parte do princípio de que o encerramento de escolas reflecte directa ou indirectamente a migração do bom povo para o litoral (centro). É assim, em Portugal: há sempre uma explicação certinha, racional, que explica tendências e cauciona decisões políticas.
Deixem-me, por momentos, arriscar a idiotice: é provável que as pessoas tomem a decisão (por vezes dolorosa) de sair desta ou daquela cidade ou região porque, entre outras coisas, se sintam incomodados por uma crescente sensação de isolamento físico e psicológico, consubstanciada pelo facto da oferta de serviços (escolas, transportes, comercio, instalações culturais, etc.) tender para a rarefacção ou para a mediocridade. Uma família que decida fugir do bafio e da confusão de uma grande cidade (colocando a hipótese de «investir» no interior), mais facilmente o fará se souber que a sua saída não é sinónimo de isolamento. No mesmo sentido, uma família que, vivendo no interior, precise (por razões profissionais, educacionais, etc.) ou goste (por razões lúdicas) de se «movimentar», mais dificilmente abandonará o «ninho» se souber que o pode fazer sem grandes sacrifícios ou incómodos, regressando à base de forma rápida, segura, confortável e barata. Uma boa rede ferroviária, disseminada pelo território, para além de encher as medidas dos ambientalistas e de ser instrumental na distribuição eficaz de bens e mercadorias, é um dos factores que contribui para a denominada «coesão territorial» (que eu não sei o que é, mas os leitores sabem). Pela simples razão de permitir, ou ajudar a permitir, que as populações se fixem e aí desenvolvam as suas actividades, exigindo mais meios e criando condições para um desenvolvimento, como sói dizer-se, «sustentado».
Ao contrário de Pedro, o Grande, que em 1703, na confluência do Neva com o Báltico, anunciou «aqui haverá uma cidade» (facto que aprendi num livro que eu e o Sr. Maradona lemos há muito), os decisores políticos do Portugal democrático – todos, sem excepção – fizeram questão de anunciar «aqui não haverá comboios» – decisão certamente alicerçada nos infalíveis e inevitáveis estudos custo-benefício. Um dia, não se admirem de vivermos num país estupidamente assimétrico, desigual e esquizofrénico.
Ah, perdão, já vivemos? Não tinha reparado.
Como escrevi aqui, há meses, não faltam por aí indicadores ou sinais – pequenos, grandes, assim-assim – que ilustram na perfeição aquilo a que poderíamos designar de «mentalidade de um povo», caso quiséssemos ou pudéssemos identificar um colectivo homogéneo de faculdades intelectuais e estados psicológicos, num país repleto de idiossincrasias as mais diversas e de gente dissemelhante.
Na altura, referi os sinais de aparência inconsequente ou mesquinha, mas que muito diziam, e dizem, da «mentalidade de um povo» (peço desculpa por insistir nesta mega-categoria, em que eu próprio não acredito, mas que dá um jeito do caraças quando toca a servir argumentos): o número reduzido de pessoas que se observa a ler nos transportes públicos ou na fila para o autocarro (pode distrair a mente e levar à perda da saída ou da entrada); a percentagem ínfima de veículos com caixa automática, com especial e incompreensível incidência no caso dos táxis (prescinde-se, desta forma, de exercitar a perna esquerda no ginásio); o número insignificante de pessoas que recorre a trolleys para transportar as compras do supermercado (a força de braços é bem mais estimulante); a estranha aversão dos cafés e pastelarias em disponibilizar compotas e derivados para servir com ou no pão (manteiga, fiambre e queijo e já é uma sorte!); o grau de utilização de bicicletas nas cidades (é preferível recorrer ao carro por tudo e por nada, até porque procurar lugar para estacionar é desporto nacional); as horas improváveis que a generalidade dos serviços de recolha do lixo escolhe para o fazer (é sempre simpático perfumar uma esplanada cheia de pessoas com o inebriante bouquet dos detritos urbanos). Podia acrescentar mais um: a obsessão, meio idiota, meio saloia, com a «calçada à portuguesa», responsável pelo facto das nossas cidades serem, no mundo dito civilizado, as que oferecem as piores condições de locomoção pedonal.
Estes foram, e são, os exemplos, digamos, «pequenos». Mas se os estimados leitores querem um de peso, apresento-vos o do (estranho) caso do transporte ferroviário.
Em pouco mais de trinta anos, Portugal (ou, se quiserem, os seus decisores), espatifaram, com efeitos que levarão décadas a reverter, a rede de caminhos-de-ferro (que já por si era fraquinha). Recorrendo agora à expressão da ordem, o bendito «modelo de crescimento» fez o seu caminho no Portugal de Abril também com base num tortuoso sistema de contrapartidas: invista-se no macadame, corte-se na ferrovia (com o beneplácito e a gratidão da industria automóvel). Ano após ano, e tirando da equação o trajecto de eleição dos decisores (Lisboa-Porto-Lisboa-Porto-Lisboa-Porto… já chega?), os comboios foram desaparecendo. Os que restaram, parecem do tempo do saudoso Fontes Pereira de Melo (que, com estas notícias, já deve dançar o vira no tumulo). Basta ilustrar o caso com a oferta de serviços disponibilizada pela CP (dados recolhidos há cerca de um ano):
- Duração de uma viagem de comboio Évora-Covilhã: 8 horas e 2 minutos; número de partidas diárias: 2;
- Duração de uma viagem de comboio Évora-Portimão: 6 horas e 10 minutos; número de partidas diárias: 2;
- Duração de uma viagem de comboio Évora-Castelo Branco: 6 horas e 30 minutos; número de partidas diárias: 2;
- Duração de uma viagem de comboio Évora-Figueira da Foz: 7 horas e 17 minutos; número de partidas diarias: 2;
- Duração actual de uma viagem de comboio Faro-Elvas: 8 horas e 51 minutos; número de partidas diárias: 1.
Bem podem os cínicos, perdão, os idiotas da lógica e da objectividade, perdão, os aferidores do binómio causa-efeito, dizer: desapareceram porque as pessoas desapareceram, e a CP - racionalista, certinha, bem mandada -desinvestiu onde não havia razões para investir. Parte-se do confortável princípio de que a rede ferroviária acompanhou o êxodo das populações (nunca o inverso), assim como se parte do princípio de que o encerramento de escolas reflecte directa ou indirectamente a migração do bom povo para o litoral (centro). É assim, em Portugal: há sempre uma explicação certinha, racional, que explica tendências e cauciona decisões políticas.
Deixem-me, por momentos, arriscar a idiotice: é provável que as pessoas tomem a decisão (por vezes dolorosa) de sair desta ou daquela cidade ou região porque, entre outras coisas, se sintam incomodados por uma crescente sensação de isolamento físico e psicológico, consubstanciada pelo facto da oferta de serviços (escolas, transportes, comercio, instalações culturais, etc.) tender para a rarefacção ou para a mediocridade. Uma família que decida fugir do bafio e da confusão de uma grande cidade (colocando a hipótese de «investir» no interior), mais facilmente o fará se souber que a sua saída não é sinónimo de isolamento. No mesmo sentido, uma família que, vivendo no interior, precise (por razões profissionais, educacionais, etc.) ou goste (por razões lúdicas) de se «movimentar», mais dificilmente abandonará o «ninho» se souber que o pode fazer sem grandes sacrifícios ou incómodos, regressando à base de forma rápida, segura, confortável e barata. Uma boa rede ferroviária, disseminada pelo território, para além de encher as medidas dos ambientalistas e de ser instrumental na distribuição eficaz de bens e mercadorias, é um dos factores que contribui para a denominada «coesão territorial» (que eu não sei o que é, mas os leitores sabem). Pela simples razão de permitir, ou ajudar a permitir, que as populações se fixem e aí desenvolvam as suas actividades, exigindo mais meios e criando condições para um desenvolvimento, como sói dizer-se, «sustentado».
Ao contrário de Pedro, o Grande, que em 1703, na confluência do Neva com o Báltico, anunciou «aqui haverá uma cidade» (facto que aprendi num livro que eu e o Sr. Maradona lemos há muito), os decisores políticos do Portugal democrático – todos, sem excepção – fizeram questão de anunciar «aqui não haverá comboios» – decisão certamente alicerçada nos infalíveis e inevitáveis estudos custo-benefício. Um dia, não se admirem de vivermos num país estupidamente assimétrico, desigual e esquizofrénico.
Ah, perdão, já vivemos? Não tinha reparado.
(daqui)
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