Contrariamente ao que supunha ser verdade, sempre se vai aprendendo alguma coisa com o
Prós e Contras (segundas-feiras, érre tê pê um). Durante a última edição do programa (2 de Janeiro de 2006, ou seja, há uma semana atrás), dei por mim a pensar na quantidade de depoimentos, testemunhos e análises que me têm passado ao lado por ter escolhido entreténs mais rasteiros (ler umas
merdices do Borges, por exemplo) em detrimento da companhia da inefável Fátinha Campos Ferreira e dos seus ilustres convidados.
A sério: a emissão de 2 de Janeiro foi memorável. Não pelo tema em apreço - pela cagagésima vez, «Portugal» (naquele que é já o mais popular desporto nacional, depois do futebol) – mas pelos convidados. Presentes estiveram Maria Filomena Mónica, José Pacheco Pereira, Miguel Portas e Boaventura Sousa Santos. De todos, Boaventura Sousa Santos era, por assim dizer, o menos conhecido. Pelo menos, o menos televisionado. A minha já enferma atenção recaiu, por isso, sobre a performance do ilustre sociólogo (se Maria Filomena Mônica e Pacheco Pereira eram muito cá de casa e Miguel Portas é o que se sabe, Boaventura Sousa Santos era a incógnita da noite).
Como produto «académico», Boaventura Sousa Santos é um perfeito anorm…, perdão, híbrido. É, essencialmente, um
blend de duas culturas ou tradições um tanto ou quanto antagónicas: por um lado, a velha tradição escolástica portuguesa, enfatuada e afectada, embora pingarelha, avarenta e avessa a influências externas; por outro, a
nouvelle vague académica neo-marxista, aglutinadora de experiências e manifestos transnacionais, expoente máximo na reformulação da velha fábula marxista (a dos «capitalistas» mais a «burguesia» a oprimir o bom do povo). Tudo sob a égide das «novas ordens» e respectivos «paradigmas». Para disfarçar e conferir à coisa um ar minimamente respeitável, certos corredores «académicos» deram à luz um sem número de doutrinas seríssimas (leia-se «abstrusas»), empenhadas em contrariar ou baralhar o princípio metafísico de Leibniz, segundo o qual uma coisa complicada tem que ser composta de partes simples. Portugal, como não podia deixar de ser, não foi imune à onda estruturalista, pós-estruturalista, desconstrucionista, pós-modernista, etc. As coisas mais simples tinham que parecer complicadas e as complicadas tinham que se embrulhar em papel pardo.
A juntar à empresa, ensaiaram-se certos truques de retórica que, não raras vezes, falharam redonda e hilariantemente, fazendo jus à velha expressão “gato escondido, rabo de fora”. À tentativa de expurgar do discurso «académico» certas expressões ou chavões outrora catequizadas e de má memória, temos assistido à desastrosa libertação do velho bafio lexical: as «massas», o «proletariado», a «burguesia», os «explorados» e «vencidos», os «capitalistas», etc. Em Boaventura Sousa Santos, é longo e viscoso o lastro. O seu discurso é toda uma galeria de estereótipos enraizados em «estruturas» que se equilibram em «triângulos», que por sua vez obedecem a «vértices» por onde se movimentam três ou quatro actores colectivos, «homogéneos» e sem rosto: as elites (intelectuais e materiais), o povo (inocente e bom por definição) e, está claro, uns bravos e iluminados sociólogos que andam a topar a marosca vai para décadas, quiçá séculos. E a urdidura explica-se assim: as ignaras elites andam a lixar o bom do povo desde que o homem é homem, apoiadas, há mais de um século, num sistema cruel e brutal que tem servido de catalizador para as «desigualdades sociais». Repare-se que, para Boaventura Sousa Santos, as «elites» são de outro planeta e vivem em universos estanques. Foram aqui colocadas sob o alto patrocínio da
American Express com o intuito de enganar o povo, o qual, se pudesse, há muito tinha tomado conta disto, para gáudio da «humanidade» (embora, é bom lembrar, a esperança seja a última a morrer). Para provar a tese, Boaventura Sousa Santos serve-se da infalível «estatística»: o fosso entre os mais pobres e os mais ricos aumentou (horror!) e uma pequeníssima percentagem da população detém uma monstruosa parcela da riqueza (Armagedão, já!).
Imagine-se, então, um país com uma população de 100. Há vinte anos atrás, era este o cenário:
- 30 viviam com 1€/dia;
- 40 com 10€/dia;
- 20 com 50€/dia;
- 10 com 100€/dia.
Passados vinte anos, e tendo como premissa uma taxa de inflação no período igual a zero, a situação era a seguinte:
- 10 viviam com 1€/dia;
- 10 com 5€/dia
- 20 com 15€/dia
- 40 com 30€/dia
- 10 com 70€/dia
- 10 com 200€/dia
Boaventura Sousa Santos parece ser incapaz de perceber o óbvio: embora 1) a variância tenha aumentado no segundo cenário; e 2) o fosso entre os mais ricos e os mais pobres se tenha alargado; vinte anos depois o cenário é francamente melhor. O exemplo é simplista mas serve sobretudo para enfatizar aquilo que, de facto, se tem passado, e que meio mundo está careca de saber e a outra metade parece não querer enfrentar, não se lhe escape o
leitmotiv: o capitalismo aliado ao liberalismo (político e não só) e à democracia foi responsável, aqui como em boa parte do mundo, por uma melhoria surpreendente de todos os indicadores que servem para caracterizar o bem estar humano: a esperança média de vida; a mortalidade infantil; os níveis de literacia; etc. etc. Sim, Portugal é ainda um país «pobre», mas só um idiota chapado se atreve a dizer que, em perspectiva, regredimos ou que, não tendo havido «regressão», o crescente número de Ferraris e Porsches que rodam no democrático macadame são um sinal claro de crescentes índices de indigência ou de «desigualdade», com base em correlações perfeitas e infalíveis. Se Boaventura Sousa Santos entende o óbvio então não passa de um demagogo, sempre pronto a acenar com a estatística-de-vão-de-escada para consumo de incautos, demagogos ou ignorantes. Mas estou em crer que não se trata de demagogia. É apenas um vulgar caso de obstipação intelectual.