O MacGuffin: "Bloqueados"

terça-feira, outubro 18, 2005

"Bloqueados"

por Helena Matos

"Será que falarão deles na Cimeira Ibero-Americana? Não, não me estou a referir aos portugueses detidos na Venezuela por tráfico de droga. É certo que espero que se fale do seu caso, mas também tenho a certeza de que, independentemente do papel que tenham ou não tido no tráfico de droga, eles desempenham presentemente um outro papel: o de protagonistas na certificação do funcionamento independente dos tribunais venezuelanos. Culpados ou não culpados, aconselho vivamente estes portugueses a, uma vez regressados à pátria, optarem por uma carreira artística e a voarem para o Dubai, caso pensem dedicar-se de novo (ou pela primeira vez) ao tráfico ou ao consumo de drogas. No Dubai é tudo mais claro: não se tem de fazer de conta que o poder judicial funciona independentemente do político. Basta pedir a Luís Figo para telefonar aos filhos do xeque. Diplomatas experimentados falam com quem tem de se falar. Bons contactos no meio artístico transformam rapidamente a detenção numa causa mediática. E, num ápice, a liberdade chega.

Sem querer perturbar o silêncio que sempre deve rodear estas negociações, atrevo-me a sugerir que os dirigentes portugueses contactem o Batasuna, ou seja, aquela organização terrorista espanhola que, após uma longa batalha judicial, foi ilegalizada, mas que, neste momento, não só trata tu cá tu lá o Governo espanhol como organiza manifestações várias, nomeadamente de apoio a Hugo Chávez. À hora a que escrevo, não se sabe se os militantes do Batasuna e dos Ezker Batua e Aralar se encontrarão oficialmente com o "líder bolivariano", mas tão excelente canal não é de menosprezar. Com Fidel Castro não se encontrarão de certeza porque este, fazendo jus ao seu estatuto majestático especial, declarou no último momento que não ia. Na verdade também não precisa, porque os líderes presentes não só se apressaram a criticar o embargo americano a Cuba, como, num presente para Fidel, até passaram a denominá-lo bloqueio. À excepção dos EUA, que se auto-impôs um embargo, o mundo inteiro pode fazer os negócios que entenda com Cuba. O bloqueio a Cuba não existe. Antes pelo contrário, e numa daquelas ironias em que a história é pródiga a pátria do capitalismo, esta proíbe fazer negócios com Cuba e penaliza fortemente as suas empresas, caso violem esta disposição. Resultado: os EUA perdem dinheiro e não é certo que tenham ganhos políticos. Quanto às organizações antiglobalização, partidos de esquerda e líderes alternativos, esses, acometidos duma fé sem limites na bondade do comércio livre, responsabilizam o não investimento americano em Cuba e o não comércio dos EUA com aquele país por tudo o que de mau ali acontece, desde que, em 1959, Fidel Castro substituiu Fulgêncio Baptista.

Contudo, enquanto decorre a Cimeira Ibero-Americana, um dos países aí presentes, Portugal, tem de facto a sua fronteira terrestre parcialmente bloqueada. Aliás tem cidadãos seus temendo pela sua integridade física e pelos seus bens no território do próprio país onde tem lugar esta conferência, ou seja, a Espanha. Voltando à pergunta que formulei no início desta crónica: será que falarão deles na Cimeira Ibero-Americana? Mais concretamente, será que é desta vez que as autoridades portuguesas chamarão a atenção das autoridades espanholas para a gravidade política e económica do bloqueio que os seus camionistas impuseram na fronteira portuguesa?
Para quem tenha andado mais desatento, será oportuno recordar que começou esta semana em Espanha uma greve de camionistas. Aquilo que eufemisticamente se designa por piquetes de greve - e que na prática são comités de caciques que obrigam os outros trabalhadores a aderir às suas posições - não exercem apenas o seu questionável controlo sobre os camionistas espanhóis como também sobre os portugueses. Camiões com matrícula portuguesa foram apedrejados, os pneus foram cortados e os camionistas ameaçados... Da parte da sociedade civil, não se vê nem ouve qualquer tomada de posição sobre estes factos, denunciando-os como xenófobos. Nos sites e blogues que se dedicam a esta temática como o sosracismo.blogspot.com, que recolhe diariamente "Notícias sobre imigração e discriminação racial", nem sequer existe um link para as notícias que relatam estes factos. Da parte das autoridades portuguesas esperava-se não só que uma política de solidariedade e protecção dos cidadãos, estejam eles no Dubai, na Venezuela ou em Espanha, mas também se esperava (e espera) que saibam defender os interesses do país. Por exemplo, quem se responsabiliza pelos prejuízos resultantes da suspensão do tráfego de mercadorias? E sobretudo, temos de ser informados do seguinte: enquanto durar a greve dos camionistas, em Espanha, está implícito que a fronteira portuguesa vai ser patrulhada, no lado espanhol, por piquetes de greve que mandam para trás quem lhes apetece?

Não sei em que ocupam o tempo os camionistas portugueses retidos em Espanha. Mas têm a possibilidade de assistir ao vivo e em directo numa das mais governamentalizadas televisões da Península, a TVE, a um exercício de ilusionismo político. Graças ao casamento gay, à retirada das tropas do Iraque e à aprovação de legislação avulsa como as recentes disposições que permitem à Espanha perseguir responsáveis por genocídios em qualquer sítio do mundo, Zapatero assumiu um imbatível estatuto "progre". Não interessa nada se estas medidas são aplicáveis ou sequer justas: por exemplo, que sentido faz a Espanha perseguir autores de massacres no continente asiático ou em África, quando nunca processou os autores dos crimes ocorridos durante a guerra que a devastou nos anos 30? Ou antes dela? Ou depois dela? Bem podem as Forças Armadas espanholas, aquelas que Zapatero não quis que combatessem no Iraque, ter agora como principal função guardar umas valas das levas de esfomeados que tentam saltá-las. Alguns desses migrantes já foram baleados. Outros espancados. Mas Zapatero continua a sorrir. E tem razões para isso: a propaganda transformou-o num pacifista. Os desgraçados que se atiram do alto das cercas de Ceuta e Melilla chegaram tarde. Alguém lhes devia ter dito que se deviam ter posto em marcha alguns anos antes. De preferência, no tempo de Aznar ou, melhor ainda, no de Franco. Então podiam contar com toda a solidariedade do mundo. Seriam a prova viva da iniquidade desses líderes. Agora, parafraseando um ex-primeiro-ministro português, é a vida. E a vida está difícil em Espanha. Não pelas razões económicas que atormentam os portugueses, mas sim porque no Governo de Espanha está um homem que lida com a emigração, com Marrocos, com as autonomias, com a Constituição espanhola ou com a ETA com as palavras ocas de um relações públicas e o sorriso de quem tira coelhos da cartola. O sorriso de Zapatero é o sorriso do ilusionista que nos olha e sorri da nossa credulidade perante os seus truques. As consequências de tudo isto em Espanha são insondáveis. Para já, e no que a Portugal respeita, convém não ficarmos bloqueados. Económica, geográfica e politicamente falando.

in Público

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