"O homem que passou"
"Deixemo-nos de tretas: independentemente de serem ou não apoiantes de Mário Soares, quantos portugueses preferiam que Mário Soares não tivesse respondido "Fisicamente tenho boas artérias, tenho a próstata em bom estado e não tenho diabetes, portanto, tenho uma vida normal" quando interrogado sobre a influência que a sua idade pode ter nos resultados desta sua candidatura presidencial?!"
por Helena Matos.
"homem que passou é aquele que desempenhou a sua missão, que a desempenhou bem ou mal, não importa, e já não pode desempenhar outra, nem prosseguir a que assumira. Se é orador, a sua palavra jamais será escutada; (...); se é político, as multidões não lhe obedecerão; e nunca mais o seu braço será procurado, nem o seu conselho pedido (...).
"O homem que passou é o homem que já não conta, o homem com quem o tempo não conta por lhe faltar a chama interior do entusiasmo ou o favor da opinião, estas duas energias sem as quais não é possível realizar uma obra ou prosseguir um destino. (...) O que até então fora louvado será diminuído, o que fez de bom será atribuído aos outros, e se lhe mantêm a autoria logo lhe desviam o objectivo; e onde houve o propósito de fazer por bem, logo dirão que fez por mal, onde houve o maior desinteresse, logo lhe assinalarão o maior proveito.
"O homem que passou é como o ano que passa. No momento mesmo em que corta a meta da eternidade, o ano que passou é mal querido e insultado. Começam a insultá-lo aqueles a quem não serviu, ainda que não tenha servido com razão; depois os indiferentes; e, atraídos ou sugestionados pelo clamor, até aqueles mesmo a quem encheu de benemerências. (...) Aquele que não quer passar depois de ter passado, ainda ouvirá palmas, mas já não são palmas, são despedidas e não despedidas com saudades mas com ironias. As palmas são para o tempo, para que seja contente e caminhe mais rápido, para que mais depressa o leve."
Este texto não foi escrito em 2005. Não tem um ano nem dois. Tem quase sete décadas. Foi publicado no último dia do ano de 1938 na primeira página do jornal O Século. Tendo em conta o tema e as funções do seu autor - Manuel Rodrigues, então ministro da Justiça - imediatamente surgiram boatos e rumores sobre a identidade do "homem que passou". Aos olhos dos leitores o homem de que fala o texto só podia ser Salazar que há dez anos, em 1928, entrara para o Governo como ministro das Finanças e há seis, 1932, se tornara presidente do Conselho.
Em 1938, Salazar estava longe de ser um homem politicamente acabado. Novo, tinha então 49 anos, o desfecho da guerra de Espanha e o agravar da crise na Europa davam-lhe um invulgar protagonismo internacional. Internamente a sua liderança era inquestionável e via-se acrescentada pelo lançamento de grandes projectos como a Exposição do Mundo Português. Mas aos olhos de homens como Manuel Rodrigues era então já evidente a sua incapacidade de deixar o poder. Manuel Rodrigues estava longe de supor, quando escreveu este texto, que só trinta anos depois e, mesmo assim na sequência duma queda, Salazar deixaria o poder. Mas a cada ano em que permaneceu no poder ganhavam maior expressão as palavras proféticas de Manuel Rorigues: "Começam a insultá-lo aqueles a quem não serviu, ainda que não tenha servido com razão; depois os indiferentes; e, atraídos ou sugestionados pelo clamor, até aqueles mesmo a quem encheu de benemerências."
Manuel Rodrigues escrevia bem e, felizmente para ele e para nós, os bons textos resistem ao tempo. Infelizmente também os vícios de cada tempo tendem a acompanhar-nos geração após geração. Agarram-se-nos à pele e quando de forma definitiva os dávamos como símbolos do passado, eis que eles regressam e atravancam tudo. E a incapacidade de "passar" em política tem marcado a nossa História.
Desta conjuntura entre a perenidade dos nossos vícios políticos e a intrínseca actualidade dum bom texto resulta que um texto redigido, em 1938, sobre Salazar se aplica notavelmente, em 2005, à candidatura presidencial de Mário Soares. Está lá tudo. As constatações da debandada: "O que até então fora louvado será diminuído, o que fez de bom será atribuído aos outros." Está lá também o retrato cruel mas lúcido do drama do pessoal "homem que passou". Ele é "aquele que desempenhou a sua missão (...) e já não pode desempenhar outra, nem prosseguir a que assumira". E sobretudo está lá esse pudor constrangido de que assiste a esta decadência: "(...) ainda ouvirá palmas, mas já não são palmas, são despedidas e não despedidas com saudades mas com ironias."
À medida que na manhã de sexta-feira percebia o teor das declarações que Mário Soares fizera, na véspera, no Brasil perante alguns emigrantes portugueses esta frase de Manuel Rodrigues - "(...) ainda ouvirá palmas, mas já não são palmas, são despedidas e não despedidas com saudades mas com ironias" - tornava-se-me cada vez mais presente. Quase obssessiva! Deixemo-nos de tretas: independentemente de serem ou não apoiantes de Mário Soares, quantos portugueses preferiam que Mário Soares não tivesse respondido "Fisicamente tenho boas artérias, tenho a próstata em bom estado e não tenho diabetes, portanto, tenho uma vida normal" quando interrogado sobre a influência que a sua idade pode ter nos resultados desta sua candidatura presidencial?!
Nos sorrisos que estas declarações geraram existia mais embaraço que alegria - "já não são palmas, são despedidas e não despedidas com saudades mas com ironias" como diria Manuel Rodrigues.
"Mário Soares reagiu com bom humor a uma pergunta sobre se a sua idade não será um impedimento para o cumprimento das funções de Presidente da República durante cinco anos." - lê-se no texto em que a agência Lusa deu conta de tais declarações. Durante quanto tempo mais as notícias sobre deslizes como este serão filtradas e devidamente introduzidas por expressões como "bom humor"?
Os péssimos resultados das sondagens e o caso Alegre são os primeiros sinais do drama. Não tarda que "sugestionados pelo clamor, até aqueles mesmo a quem encheu de benemerências" comecem a desertar. Sairão discretamente de cena. Para que uns não lhes dêem pela falta e outros não se apercebam da sua presença. Mas convém que se lhes fixe o nome e o rosto. Em primeiro lugar porque são responsáveis pela promoção duma candidatura presidencial que representa uma perversão da democracia - tal como Fátima Felgueiras não estava fugida à justiça também Mário Soares se pode constitucionalmente recandidatar. Todos sabemos que assim pode ser à face da lei mas não perante os olhos e a consciência dos portugueses. Em segundo lugar fixemos-lhes os nomes porque eles são responsáveis pelo aviltamento pessoal em que esta campanha se arrisca transformar para Mário Soares. É certo que ele quis ser candidato. É certo que como o "homem que passou" de que falava Manuel Rodrigues também Mário Soares foi eliminando as possibilidades de renovação no seu campo político. Mas nada disto seria suficiente para que Mário Soares avançasse. Agora é tarde. Como lidar com isto? - esta é uma pergunta que não diz apenas respeito aos seus apoiantes. Por amarga ironia, Mário Soares está progressivamente a deixar de ser um candidato a apoiar ou um adversário a combater. Independentemente dos resultados que vier a obter, Mário Soares é o problema desta campanha presidencial. E isso é muito triste."
in Público 24-09-2005
por Helena Matos.
"homem que passou é aquele que desempenhou a sua missão, que a desempenhou bem ou mal, não importa, e já não pode desempenhar outra, nem prosseguir a que assumira. Se é orador, a sua palavra jamais será escutada; (...); se é político, as multidões não lhe obedecerão; e nunca mais o seu braço será procurado, nem o seu conselho pedido (...).
"O homem que passou é o homem que já não conta, o homem com quem o tempo não conta por lhe faltar a chama interior do entusiasmo ou o favor da opinião, estas duas energias sem as quais não é possível realizar uma obra ou prosseguir um destino. (...) O que até então fora louvado será diminuído, o que fez de bom será atribuído aos outros, e se lhe mantêm a autoria logo lhe desviam o objectivo; e onde houve o propósito de fazer por bem, logo dirão que fez por mal, onde houve o maior desinteresse, logo lhe assinalarão o maior proveito.
"O homem que passou é como o ano que passa. No momento mesmo em que corta a meta da eternidade, o ano que passou é mal querido e insultado. Começam a insultá-lo aqueles a quem não serviu, ainda que não tenha servido com razão; depois os indiferentes; e, atraídos ou sugestionados pelo clamor, até aqueles mesmo a quem encheu de benemerências. (...) Aquele que não quer passar depois de ter passado, ainda ouvirá palmas, mas já não são palmas, são despedidas e não despedidas com saudades mas com ironias. As palmas são para o tempo, para que seja contente e caminhe mais rápido, para que mais depressa o leve."
Este texto não foi escrito em 2005. Não tem um ano nem dois. Tem quase sete décadas. Foi publicado no último dia do ano de 1938 na primeira página do jornal O Século. Tendo em conta o tema e as funções do seu autor - Manuel Rodrigues, então ministro da Justiça - imediatamente surgiram boatos e rumores sobre a identidade do "homem que passou". Aos olhos dos leitores o homem de que fala o texto só podia ser Salazar que há dez anos, em 1928, entrara para o Governo como ministro das Finanças e há seis, 1932, se tornara presidente do Conselho.
Em 1938, Salazar estava longe de ser um homem politicamente acabado. Novo, tinha então 49 anos, o desfecho da guerra de Espanha e o agravar da crise na Europa davam-lhe um invulgar protagonismo internacional. Internamente a sua liderança era inquestionável e via-se acrescentada pelo lançamento de grandes projectos como a Exposição do Mundo Português. Mas aos olhos de homens como Manuel Rodrigues era então já evidente a sua incapacidade de deixar o poder. Manuel Rodrigues estava longe de supor, quando escreveu este texto, que só trinta anos depois e, mesmo assim na sequência duma queda, Salazar deixaria o poder. Mas a cada ano em que permaneceu no poder ganhavam maior expressão as palavras proféticas de Manuel Rorigues: "Começam a insultá-lo aqueles a quem não serviu, ainda que não tenha servido com razão; depois os indiferentes; e, atraídos ou sugestionados pelo clamor, até aqueles mesmo a quem encheu de benemerências."
Manuel Rodrigues escrevia bem e, felizmente para ele e para nós, os bons textos resistem ao tempo. Infelizmente também os vícios de cada tempo tendem a acompanhar-nos geração após geração. Agarram-se-nos à pele e quando de forma definitiva os dávamos como símbolos do passado, eis que eles regressam e atravancam tudo. E a incapacidade de "passar" em política tem marcado a nossa História.
Desta conjuntura entre a perenidade dos nossos vícios políticos e a intrínseca actualidade dum bom texto resulta que um texto redigido, em 1938, sobre Salazar se aplica notavelmente, em 2005, à candidatura presidencial de Mário Soares. Está lá tudo. As constatações da debandada: "O que até então fora louvado será diminuído, o que fez de bom será atribuído aos outros." Está lá também o retrato cruel mas lúcido do drama do pessoal "homem que passou". Ele é "aquele que desempenhou a sua missão (...) e já não pode desempenhar outra, nem prosseguir a que assumira". E sobretudo está lá esse pudor constrangido de que assiste a esta decadência: "(...) ainda ouvirá palmas, mas já não são palmas, são despedidas e não despedidas com saudades mas com ironias."
À medida que na manhã de sexta-feira percebia o teor das declarações que Mário Soares fizera, na véspera, no Brasil perante alguns emigrantes portugueses esta frase de Manuel Rodrigues - "(...) ainda ouvirá palmas, mas já não são palmas, são despedidas e não despedidas com saudades mas com ironias" - tornava-se-me cada vez mais presente. Quase obssessiva! Deixemo-nos de tretas: independentemente de serem ou não apoiantes de Mário Soares, quantos portugueses preferiam que Mário Soares não tivesse respondido "Fisicamente tenho boas artérias, tenho a próstata em bom estado e não tenho diabetes, portanto, tenho uma vida normal" quando interrogado sobre a influência que a sua idade pode ter nos resultados desta sua candidatura presidencial?!
Nos sorrisos que estas declarações geraram existia mais embaraço que alegria - "já não são palmas, são despedidas e não despedidas com saudades mas com ironias" como diria Manuel Rodrigues.
"Mário Soares reagiu com bom humor a uma pergunta sobre se a sua idade não será um impedimento para o cumprimento das funções de Presidente da República durante cinco anos." - lê-se no texto em que a agência Lusa deu conta de tais declarações. Durante quanto tempo mais as notícias sobre deslizes como este serão filtradas e devidamente introduzidas por expressões como "bom humor"?
Os péssimos resultados das sondagens e o caso Alegre são os primeiros sinais do drama. Não tarda que "sugestionados pelo clamor, até aqueles mesmo a quem encheu de benemerências" comecem a desertar. Sairão discretamente de cena. Para que uns não lhes dêem pela falta e outros não se apercebam da sua presença. Mas convém que se lhes fixe o nome e o rosto. Em primeiro lugar porque são responsáveis pela promoção duma candidatura presidencial que representa uma perversão da democracia - tal como Fátima Felgueiras não estava fugida à justiça também Mário Soares se pode constitucionalmente recandidatar. Todos sabemos que assim pode ser à face da lei mas não perante os olhos e a consciência dos portugueses. Em segundo lugar fixemos-lhes os nomes porque eles são responsáveis pelo aviltamento pessoal em que esta campanha se arrisca transformar para Mário Soares. É certo que ele quis ser candidato. É certo que como o "homem que passou" de que falava Manuel Rodrigues também Mário Soares foi eliminando as possibilidades de renovação no seu campo político. Mas nada disto seria suficiente para que Mário Soares avançasse. Agora é tarde. Como lidar com isto? - esta é uma pergunta que não diz apenas respeito aos seus apoiantes. Por amarga ironia, Mário Soares está progressivamente a deixar de ser um candidato a apoiar ou um adversário a combater. Independentemente dos resultados que vier a obter, Mário Soares é o problema desta campanha presidencial. E isso é muito triste."
in Público 24-09-2005
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