"Desembaraços"
"[A]s reacções à devastação causada pelo Katrina nos EUA, mostram-nos como os velhos chavões, os ódios de sempre, os adjectivos prontos a sacar... estão lá todos, nos mesmos sítios, esperando apenas um pretexto para de novo regressarem" por Helena Matos.
"Quando a jornalista Anne Applebaum visitou a cidade de Praga, após a queda do regime comunista, observou uma situação que de alguma forma veio a constituir-se como a inquietação básica do seu livro Gulag, Uma história: “Havia vendedores de tudo ao longo da ponte [...] Pinturas de lindas ruelas estavam em exposição, juntamente com jóias de ocasião e porta-chaves de Praga. Entre o bricabraque, podia-se comprar toda a parafrenália militar soviética: barretes, insígnias, e pequenos emblemas de lapela, as imagens de lata de Lenine e Brejnev que as crianças das escolas soviéticas um dia prenderam aos seus uniformes.” Os compradores destes souvenirs eram na sua maioria americanos ou cidadãos da Europa Ocidental. Ao olhá-los Applebaum percebe que qualquer um deles “ficaria doente só de pensar usar uma suástica ao peito. Nenhuma recusava, no entanto, usar uma foice e um martelo numa t-shirt ou num boné.”
Para a autora de Gulag, Uma história, esta “falta de sentimentos acerca do estalinismo entre os turistas de Praga” é parcialmente explicada pela escassez de imagens na cultura popular ocidental: “A Guerra Fria produziu James Bond e filmes de espionagem e caricaturas de russos como as que aparecem nos filmes de Rambo, mas nada tão ambicioso como a Lista de Schindler ou a A Escolha de Sofia.”
Sem nome nem rosto os mortos do comunismo são apenas uma estatística. Ou como disse Estaline “A morte de um homem é uma tragédia, a morte de um milhão é uma estatística”. E até hoje não deixou de ser assim.
Mas esta é apenas uma parte da explicação: “O fascismo é a glorificação do carrasco por ele próprio; o comunismo, mais dramático, a glorificação do carrasco pelas vítimas” – escreveu Camus oportunamente citado por Marcello Duarte Mathias no texto sobre Arthur Koestler que escreveu para este número da ATLÂNTICO. Mais perversamente ainda as vítimas não se limitaram a glorificar os carrascos. Como quem pratica um exorcismo difamaram aqueles que, como Koestler, denunciaram as atrocidades praticadas pelo comunismo. E também sobre este exercício não raras vezes de aniquiliação moral se estendeu um piedoso manto.
Nada disto choca nem espanta. Contudo existem circunstâncias, como as reacções à devastação causada pelo Katrina nos EUA, que nos mostram como os velhos chavões, os ódios de sempre, os adjectivos prontos a sacar... estão lá todos, nos mesmos sítios, esperando apenas um pretexto para de novo regressarem. Como bem frisa Henrique Raposo num artigo que significativamente intitulou “A Impunidade Angélica do Marxismo e a Realidade Paralela Vivida na Europa”: “No passado, o marxismo estava identificado com Estados. Hoje, sem esses Estados, o marxismo espalhou-se, perdeu o rosto visível. O marxismo já não é política. É cultura. É hábito. Falhou o ataque frontal, mas começou a flanquear-nos pelos poros da cultura e dos automatismos emocionais que dominam os media.”. Ou seja, a queda do Muro não só libertou a esquerda dum embaraço, como permitiu que novas solidariedades nascessem nessa mesma esquerda.
Sem a sombra de Moscovo a esquerda pode finalmente unir-se e sobretudo deixar de combater entre si. Unir-se em torno do que não quer – globalização, liberalismo, aliança com os EUA. Tem divergências. Não tem clivagens. Na Alemanha, Oskar Lafontaine, antigo ministro das Finanças de Gerhard Schröder, coligou-se com Gregor Gysi, um antigo comunista, fundou um novo partido de esquerda (ou extrema-esquerda) com um programa que se declina entre o nacionalismo e o proteccionismo económico. Nas recentes eleições a coligação Lafontaine/Gysi obteve mais de oito por cento dos votos.
Em Espanha, o PSOE alia-se, nos governos das autonomias, a movimentos de extrema-esquerda que noutros tempos defendiam a “ditadura do proletariado” e que agora livres dessa tralha histórica adquirem um look fashion e um colorido mediático mas continuam intolerantes e fanáticos como sempre foram.
Mário Soares, fazendo jus ao seu instinto político, percebeu esta mudança há muito tempo. Desfilou ao lado de Louçã contra o outrora amigo americano. Olhou para Carvalho da Silva e achou que ele podia repetir o então milagre de Lula em Portugal. Tirou o socialismo da gaveta. E, na campanha presidencial, não tardará a agitar o espantalho do fascismo.
Provavelmente tal não chegará para fazer dele o próximo Presidente da República. Mas há de chegar para, em Portugal, reacertar as fronteiras duma esquerda desembaraçada do passado."
in Atlântico
"Quando a jornalista Anne Applebaum visitou a cidade de Praga, após a queda do regime comunista, observou uma situação que de alguma forma veio a constituir-se como a inquietação básica do seu livro Gulag, Uma história: “Havia vendedores de tudo ao longo da ponte [...] Pinturas de lindas ruelas estavam em exposição, juntamente com jóias de ocasião e porta-chaves de Praga. Entre o bricabraque, podia-se comprar toda a parafrenália militar soviética: barretes, insígnias, e pequenos emblemas de lapela, as imagens de lata de Lenine e Brejnev que as crianças das escolas soviéticas um dia prenderam aos seus uniformes.” Os compradores destes souvenirs eram na sua maioria americanos ou cidadãos da Europa Ocidental. Ao olhá-los Applebaum percebe que qualquer um deles “ficaria doente só de pensar usar uma suástica ao peito. Nenhuma recusava, no entanto, usar uma foice e um martelo numa t-shirt ou num boné.”
Para a autora de Gulag, Uma história, esta “falta de sentimentos acerca do estalinismo entre os turistas de Praga” é parcialmente explicada pela escassez de imagens na cultura popular ocidental: “A Guerra Fria produziu James Bond e filmes de espionagem e caricaturas de russos como as que aparecem nos filmes de Rambo, mas nada tão ambicioso como a Lista de Schindler ou a A Escolha de Sofia.”
Sem nome nem rosto os mortos do comunismo são apenas uma estatística. Ou como disse Estaline “A morte de um homem é uma tragédia, a morte de um milhão é uma estatística”. E até hoje não deixou de ser assim.
Mas esta é apenas uma parte da explicação: “O fascismo é a glorificação do carrasco por ele próprio; o comunismo, mais dramático, a glorificação do carrasco pelas vítimas” – escreveu Camus oportunamente citado por Marcello Duarte Mathias no texto sobre Arthur Koestler que escreveu para este número da ATLÂNTICO. Mais perversamente ainda as vítimas não se limitaram a glorificar os carrascos. Como quem pratica um exorcismo difamaram aqueles que, como Koestler, denunciaram as atrocidades praticadas pelo comunismo. E também sobre este exercício não raras vezes de aniquiliação moral se estendeu um piedoso manto.
Nada disto choca nem espanta. Contudo existem circunstâncias, como as reacções à devastação causada pelo Katrina nos EUA, que nos mostram como os velhos chavões, os ódios de sempre, os adjectivos prontos a sacar... estão lá todos, nos mesmos sítios, esperando apenas um pretexto para de novo regressarem. Como bem frisa Henrique Raposo num artigo que significativamente intitulou “A Impunidade Angélica do Marxismo e a Realidade Paralela Vivida na Europa”: “No passado, o marxismo estava identificado com Estados. Hoje, sem esses Estados, o marxismo espalhou-se, perdeu o rosto visível. O marxismo já não é política. É cultura. É hábito. Falhou o ataque frontal, mas começou a flanquear-nos pelos poros da cultura e dos automatismos emocionais que dominam os media.”. Ou seja, a queda do Muro não só libertou a esquerda dum embaraço, como permitiu que novas solidariedades nascessem nessa mesma esquerda.
Sem a sombra de Moscovo a esquerda pode finalmente unir-se e sobretudo deixar de combater entre si. Unir-se em torno do que não quer – globalização, liberalismo, aliança com os EUA. Tem divergências. Não tem clivagens. Na Alemanha, Oskar Lafontaine, antigo ministro das Finanças de Gerhard Schröder, coligou-se com Gregor Gysi, um antigo comunista, fundou um novo partido de esquerda (ou extrema-esquerda) com um programa que se declina entre o nacionalismo e o proteccionismo económico. Nas recentes eleições a coligação Lafontaine/Gysi obteve mais de oito por cento dos votos.
Em Espanha, o PSOE alia-se, nos governos das autonomias, a movimentos de extrema-esquerda que noutros tempos defendiam a “ditadura do proletariado” e que agora livres dessa tralha histórica adquirem um look fashion e um colorido mediático mas continuam intolerantes e fanáticos como sempre foram.
Mário Soares, fazendo jus ao seu instinto político, percebeu esta mudança há muito tempo. Desfilou ao lado de Louçã contra o outrora amigo americano. Olhou para Carvalho da Silva e achou que ele podia repetir o então milagre de Lula em Portugal. Tirou o socialismo da gaveta. E, na campanha presidencial, não tardará a agitar o espantalho do fascismo.
Provavelmente tal não chegará para fazer dele o próximo Presidente da República. Mas há de chegar para, em Portugal, reacertar as fronteiras duma esquerda desembaraçada do passado."
in Atlântico
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