"Não se pára mais"
"Claro que por detrás do episódio, como por detrás da história de Isaltino e de Loureiro, há uma realidade inquietante: o cinismo do eleitorado."
por Vasco Pulido Valente.
"Tenho sempre uma certa relutância em escrever sobre os "pequenos", ou seja, no caso, sobre Fátima Felgueiras, como antes dela tive em escrever sobre Isaltino ou sobre o major Loureiro, embora admita que nem Isaltino, nem Loureiro pertencem rigorosamente à raça. Essa relutância vem de uma razão prosaica: não ando a dormir e, em 30 anos, já pude perceber que os maiores "beneficiários" do regime não foram com certeza as criaturas um pouco patéticas que acabaram na televisão e nos jornais. O tráfego de influência, a fraude a sério, o negócio verdadeiramente corrupto, ficam por força e tradição entre indivíduos muito respeitáveis, que ninguém conhece e que nunca por nunca fazem falar de si. Ainda por cima, o grande crime, bem guardado por um exército de advogados, consegue conservar uma ficção de legalidade: uma assinatura aqui, um despacho ali, uma conversa acolá - e as coisas correm docemente.
Sabendo isto, despejar, tremendo, a indignação da praxe sobre a real insignificância de Isaltino, de Loureiro e de Fátima e opinar, com melancolia e pompa, sobre a famosa "moralidade da vida política" dá a impressão desagradável de bater no bode expiatório. Não porque eles mereçam qualquer condescendência. Mas porque o alarido esconde a enorme vigarice instituída, que os costumes permitem, o Estado consente e a televisão e os jornais largamente ignoram. Se alguém se aplicasse a descobrir o que valem hoje e o que valiam há vinte ou trinta anos certas personagens do regime, não perderia um décimo de segundo com a putativa delinquência de Fátima Felgueiras. Queimar a bruxa (mesmo a bruxa má) não me parece, em princípio, um exercício produtivo e saudável.
Claro que por detrás do episódio, como por detrás da história de Isaltino e de Loureiro, há uma realidade inquietante: o cinismo do eleitorado. Apoiando este extraordinário grupo, o eleitorado, ou pelo menos parte dele, está a comunicar à justiça e aos partidos: "Todos roubam. Toda a política é um roubo organizado, que os senhores protegem. Escusam de nos dizer que eles são piores - não são. São até melhores porque nos trataram bem. Se agora resolveram limpar a casa, comecem por outro lado." Se os três ganharem, ou se um deles ganhar, não importa qual, é o regime que perde. Não vale a pena inventar desculpas. Quando o voto rejeita expressamente a decência comum, não se pára mais."
in Público 24-09-2005
por Vasco Pulido Valente.
"Tenho sempre uma certa relutância em escrever sobre os "pequenos", ou seja, no caso, sobre Fátima Felgueiras, como antes dela tive em escrever sobre Isaltino ou sobre o major Loureiro, embora admita que nem Isaltino, nem Loureiro pertencem rigorosamente à raça. Essa relutância vem de uma razão prosaica: não ando a dormir e, em 30 anos, já pude perceber que os maiores "beneficiários" do regime não foram com certeza as criaturas um pouco patéticas que acabaram na televisão e nos jornais. O tráfego de influência, a fraude a sério, o negócio verdadeiramente corrupto, ficam por força e tradição entre indivíduos muito respeitáveis, que ninguém conhece e que nunca por nunca fazem falar de si. Ainda por cima, o grande crime, bem guardado por um exército de advogados, consegue conservar uma ficção de legalidade: uma assinatura aqui, um despacho ali, uma conversa acolá - e as coisas correm docemente.
Sabendo isto, despejar, tremendo, a indignação da praxe sobre a real insignificância de Isaltino, de Loureiro e de Fátima e opinar, com melancolia e pompa, sobre a famosa "moralidade da vida política" dá a impressão desagradável de bater no bode expiatório. Não porque eles mereçam qualquer condescendência. Mas porque o alarido esconde a enorme vigarice instituída, que os costumes permitem, o Estado consente e a televisão e os jornais largamente ignoram. Se alguém se aplicasse a descobrir o que valem hoje e o que valiam há vinte ou trinta anos certas personagens do regime, não perderia um décimo de segundo com a putativa delinquência de Fátima Felgueiras. Queimar a bruxa (mesmo a bruxa má) não me parece, em princípio, um exercício produtivo e saudável.
Claro que por detrás do episódio, como por detrás da história de Isaltino e de Loureiro, há uma realidade inquietante: o cinismo do eleitorado. Apoiando este extraordinário grupo, o eleitorado, ou pelo menos parte dele, está a comunicar à justiça e aos partidos: "Todos roubam. Toda a política é um roubo organizado, que os senhores protegem. Escusam de nos dizer que eles são piores - não são. São até melhores porque nos trataram bem. Se agora resolveram limpar a casa, comecem por outro lado." Se os três ganharem, ou se um deles ganhar, não importa qual, é o regime que perde. Não vale a pena inventar desculpas. Quando o voto rejeita expressamente a decência comum, não se pára mais."
in Público 24-09-2005
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