O MacGuffin: outubro 2005

terça-feira, outubro 18, 2005

"O Expresso"

por Vasco Pulido Valente

"Ao fim de mais de vinte anos, José António Saraiva levou o proverbial "pontapé para cima" e saiu do Expresso. O Expresso nasceu, durante a ditadura, por favor pessoal de Marcello Caetano. Marcello não queria "alienar" os "jovens liberais" que ao princípio o haviam apoiado e, quando eles se afastaram, para os conservar na periferia do regime, deixou que eles fizessem uma "associação independente" (a Sedes, que já morreu) e um jornal, o Expresso, que ainda existe. Muito diferente da imprensa da oposição clássica (a República, o Diário de Lisboa), bem informado, "moderno", subtil, antes de 74, o Expresso foi o símbolo e a esperança de uma vida democrática. Toda a gente o lia: em Portugal, em Angola, em Moçambique, na Guiné ou no exílio. Era o jornal que a história naquela altura pedia.

Veio a revolução e, a seguir, o PREC e o período confuso da tutela militar. O Expresso mudou. Balsemão e Marcelo (Rebelo de Sousa) foram para o Governo e nunca mais voltaram. A pretexto de uma "independência" dúbia, o jornal não passava de um saco onde cabia, e se metia, tudo: o bom e o mau, a esquerda e a direita, a notícia e o frete. Não por acaso, José António Saraiva chegou nesse momento a director. Perfeita encarnação da vacuidade, não incomodava ninguém. Pouco a pouco, o único objectivo do Expresso acabou por se tornar vender "papel" e ganhar dinheiro. A qualidade caiu e voltou a cair. Pouco a pouco, o 1.º caderno começou a roçar o vergonhoso: com informação da véspera, sem opinião e sem análise. Os suplementos, tirando o Actual e a Única, são molhos de publicidade "especializada"; e o Actual e a Única, os dois sobre o mortiço, raramente, aqui e ali, sobem acima da vulgaridade. O Expresso hoje não se lê. Hoje o Expresso é para folhear, e "leva" dez minutos.

Mas, se isto é verdade, então como sobreviveu o Expresso ao Semanário e a O Independente? Primeiro, pela sua prioridade e o prestígio acumulado antes de 74. Depois, porque o Semanário e O Independente, com um apoio financeiro precário, tinham fins políticos puramente tácticos e se esgotaram com eles. O mistério não está aí. O mistério está na fidelidade ao Expresso da classe média portuguesa (cuja iliteracia ele provavelmente reflecte) e na razão por que não apareceu, nem aparece, o concorrente sério de que o país precisa. A remoção de Saraiva é um sintoma de fracasso ou de fraqueza e a oportunidade é agora clara. Quem se arrisca?"

in Público

"Bloqueados"

por Helena Matos

"Será que falarão deles na Cimeira Ibero-Americana? Não, não me estou a referir aos portugueses detidos na Venezuela por tráfico de droga. É certo que espero que se fale do seu caso, mas também tenho a certeza de que, independentemente do papel que tenham ou não tido no tráfico de droga, eles desempenham presentemente um outro papel: o de protagonistas na certificação do funcionamento independente dos tribunais venezuelanos. Culpados ou não culpados, aconselho vivamente estes portugueses a, uma vez regressados à pátria, optarem por uma carreira artística e a voarem para o Dubai, caso pensem dedicar-se de novo (ou pela primeira vez) ao tráfico ou ao consumo de drogas. No Dubai é tudo mais claro: não se tem de fazer de conta que o poder judicial funciona independentemente do político. Basta pedir a Luís Figo para telefonar aos filhos do xeque. Diplomatas experimentados falam com quem tem de se falar. Bons contactos no meio artístico transformam rapidamente a detenção numa causa mediática. E, num ápice, a liberdade chega.

Sem querer perturbar o silêncio que sempre deve rodear estas negociações, atrevo-me a sugerir que os dirigentes portugueses contactem o Batasuna, ou seja, aquela organização terrorista espanhola que, após uma longa batalha judicial, foi ilegalizada, mas que, neste momento, não só trata tu cá tu lá o Governo espanhol como organiza manifestações várias, nomeadamente de apoio a Hugo Chávez. À hora a que escrevo, não se sabe se os militantes do Batasuna e dos Ezker Batua e Aralar se encontrarão oficialmente com o "líder bolivariano", mas tão excelente canal não é de menosprezar. Com Fidel Castro não se encontrarão de certeza porque este, fazendo jus ao seu estatuto majestático especial, declarou no último momento que não ia. Na verdade também não precisa, porque os líderes presentes não só se apressaram a criticar o embargo americano a Cuba, como, num presente para Fidel, até passaram a denominá-lo bloqueio. À excepção dos EUA, que se auto-impôs um embargo, o mundo inteiro pode fazer os negócios que entenda com Cuba. O bloqueio a Cuba não existe. Antes pelo contrário, e numa daquelas ironias em que a história é pródiga a pátria do capitalismo, esta proíbe fazer negócios com Cuba e penaliza fortemente as suas empresas, caso violem esta disposição. Resultado: os EUA perdem dinheiro e não é certo que tenham ganhos políticos. Quanto às organizações antiglobalização, partidos de esquerda e líderes alternativos, esses, acometidos duma fé sem limites na bondade do comércio livre, responsabilizam o não investimento americano em Cuba e o não comércio dos EUA com aquele país por tudo o que de mau ali acontece, desde que, em 1959, Fidel Castro substituiu Fulgêncio Baptista.

Contudo, enquanto decorre a Cimeira Ibero-Americana, um dos países aí presentes, Portugal, tem de facto a sua fronteira terrestre parcialmente bloqueada. Aliás tem cidadãos seus temendo pela sua integridade física e pelos seus bens no território do próprio país onde tem lugar esta conferência, ou seja, a Espanha. Voltando à pergunta que formulei no início desta crónica: será que falarão deles na Cimeira Ibero-Americana? Mais concretamente, será que é desta vez que as autoridades portuguesas chamarão a atenção das autoridades espanholas para a gravidade política e económica do bloqueio que os seus camionistas impuseram na fronteira portuguesa?
Para quem tenha andado mais desatento, será oportuno recordar que começou esta semana em Espanha uma greve de camionistas. Aquilo que eufemisticamente se designa por piquetes de greve - e que na prática são comités de caciques que obrigam os outros trabalhadores a aderir às suas posições - não exercem apenas o seu questionável controlo sobre os camionistas espanhóis como também sobre os portugueses. Camiões com matrícula portuguesa foram apedrejados, os pneus foram cortados e os camionistas ameaçados... Da parte da sociedade civil, não se vê nem ouve qualquer tomada de posição sobre estes factos, denunciando-os como xenófobos. Nos sites e blogues que se dedicam a esta temática como o sosracismo.blogspot.com, que recolhe diariamente "Notícias sobre imigração e discriminação racial", nem sequer existe um link para as notícias que relatam estes factos. Da parte das autoridades portuguesas esperava-se não só que uma política de solidariedade e protecção dos cidadãos, estejam eles no Dubai, na Venezuela ou em Espanha, mas também se esperava (e espera) que saibam defender os interesses do país. Por exemplo, quem se responsabiliza pelos prejuízos resultantes da suspensão do tráfego de mercadorias? E sobretudo, temos de ser informados do seguinte: enquanto durar a greve dos camionistas, em Espanha, está implícito que a fronteira portuguesa vai ser patrulhada, no lado espanhol, por piquetes de greve que mandam para trás quem lhes apetece?

Não sei em que ocupam o tempo os camionistas portugueses retidos em Espanha. Mas têm a possibilidade de assistir ao vivo e em directo numa das mais governamentalizadas televisões da Península, a TVE, a um exercício de ilusionismo político. Graças ao casamento gay, à retirada das tropas do Iraque e à aprovação de legislação avulsa como as recentes disposições que permitem à Espanha perseguir responsáveis por genocídios em qualquer sítio do mundo, Zapatero assumiu um imbatível estatuto "progre". Não interessa nada se estas medidas são aplicáveis ou sequer justas: por exemplo, que sentido faz a Espanha perseguir autores de massacres no continente asiático ou em África, quando nunca processou os autores dos crimes ocorridos durante a guerra que a devastou nos anos 30? Ou antes dela? Ou depois dela? Bem podem as Forças Armadas espanholas, aquelas que Zapatero não quis que combatessem no Iraque, ter agora como principal função guardar umas valas das levas de esfomeados que tentam saltá-las. Alguns desses migrantes já foram baleados. Outros espancados. Mas Zapatero continua a sorrir. E tem razões para isso: a propaganda transformou-o num pacifista. Os desgraçados que se atiram do alto das cercas de Ceuta e Melilla chegaram tarde. Alguém lhes devia ter dito que se deviam ter posto em marcha alguns anos antes. De preferência, no tempo de Aznar ou, melhor ainda, no de Franco. Então podiam contar com toda a solidariedade do mundo. Seriam a prova viva da iniquidade desses líderes. Agora, parafraseando um ex-primeiro-ministro português, é a vida. E a vida está difícil em Espanha. Não pelas razões económicas que atormentam os portugueses, mas sim porque no Governo de Espanha está um homem que lida com a emigração, com Marrocos, com as autonomias, com a Constituição espanhola ou com a ETA com as palavras ocas de um relações públicas e o sorriso de quem tira coelhos da cartola. O sorriso de Zapatero é o sorriso do ilusionista que nos olha e sorri da nossa credulidade perante os seus truques. As consequências de tudo isto em Espanha são insondáveis. Para já, e no que a Portugal respeita, convém não ficarmos bloqueados. Económica, geográfica e politicamente falando.

in Público

"O bom aluno"

por Vasco Pulido Valente

"A semana passada, no meio do alarido da campanha autárquica, Rui Machete, antigo presidente do PSD e parceiro do PS no Bloco Central, figura grave e "moderado" de profissão, publicou um artigo muito curioso. Inquieto com o futuro do regime, Rui Machete, saindo por uma vez do seu papel de pilar da ordem, propunha uma revisão constitucional que tornasse o Governo dependente da confiança política de Belém e desse ao Presidente o direito de assistir ao Conselho de Ministros. De toda a evidência, Machete acha hoje que Cavaco deve mandar em Portugal, coisa que nem sempre achou. Mas com certeza sabe que a esquerda nunca aceitaria "presidencializar" a República e muito menos para favorecer Cavaco. A sugestão é, portanto, gratuita, a não ser que no fundo de si próprio Machete queira (e juro que não quer) um golpe militar.

Infelizmente, na ausência de uma revisão, fica o problema essencial: como vai Cavaco mandar na pátria com os poucos poderes que a lei com relutância lhe atribui? De fora, e falando duas vezes por ano, produziu sempre uma grande comoção jornalística, mesmo com as patéticas banalidades da "moeda boa" e da "moeda má". Lá dentro, a falar pelos cotovelos, ninguém o irá ouvir por muito tempo. A famosa "influência" só existe para quem se deixa influenciar e até Cavaco, que não se deixou influenciar, não tem (espero) ilusões sobre isso.

Para mandar, Cavaco precisa, em suma, de um partido. Do PSD? Aceitemos, por hipótese, que ele toma conta do PSD e, correndo com Marques Mendes (um osso duro de roer), instala a sua gente: Dias Loureiro, Ferreira Leite ou António Borges. Dali em diante, desce de Belém à praça pública: a impopularidade do Governo é também a dele e ele fica dependente de uma situação que só em parte e de muito longe controla. Não vejo Cavaco, com a sua vaidade e a sua prudência, a cair numa armadilha dessas. Mas, se não for o PSD, então o quê? Um partido presidencial? Um partido presidencial é uma declaração de guerra aos partidos que existem (a todos, PSD incluído) e, em última análise, um instrumento para subverter e liquidar o regime. Cavaco nunca irá tão longe. Nada na sua vida anuncia um fôlego de revolucionário. Pelo contrário, Cavaco é o modelo do "bom aluno" e, em Belém, como de costume, será um "bom aluno". Obediente à lei, atento e cumpridor. A fantasia do "presidencialismo" não vem dele e, se o lisonjeia, não o atrai."

in Público

terça-feira, outubro 04, 2005

"Desembaraços"

"[A]s reacções à devastação causada pelo Katrina nos EUA, mostram-nos como os velhos chavões, os ódios de sempre, os adjectivos prontos a sacar... estão lá todos, nos mesmos sítios, esperando apenas um pretexto para de novo regressarem" por Helena Matos.

"Quando a jornalista Anne Applebaum visitou a cidade de Praga, após a queda do regime comunista, observou uma situação que de alguma forma veio a constituir-se como a inquietação básica do seu livro Gulag, Uma história: “Havia vendedores de tudo ao longo da ponte [...] Pinturas de lindas ruelas estavam em exposição, juntamente com jóias de ocasião e porta-chaves de Praga. Entre o bricabraque, podia-se comprar toda a parafrenália militar soviética: barretes, insígnias, e pequenos emblemas de lapela, as imagens de lata de Lenine e Brejnev que as crianças das escolas soviéticas um dia prenderam aos seus uniformes.” Os compradores destes souvenirs eram na sua maioria americanos ou cidadãos da Europa Ocidental. Ao olhá-los Applebaum percebe que qualquer um deles “ficaria doente só de pensar usar uma suástica ao peito. Nenhuma recusava, no entanto, usar uma foice e um martelo numa t-shirt ou num boné.”

Para a autora de Gulag, Uma história, esta “falta de sentimentos acerca do estalinismo entre os turistas de Praga” é parcialmente explicada pela escassez de imagens na cultura popular ocidental: “A Guerra Fria produziu James Bond e filmes de espionagem e caricaturas de russos como as que aparecem nos filmes de Rambo, mas nada tão ambicioso como a Lista de Schindler ou a A Escolha de Sofia.”

Sem nome nem rosto os mortos do comunismo são apenas uma estatística. Ou como disse Estaline “A morte de um homem é uma tragédia, a morte de um milhão é uma estatística”. E até hoje não deixou de ser assim.

Mas esta é apenas uma parte da explicação: “O fascismo é a glorificação do carrasco por ele próprio; o comunismo, mais dramático, a glorificação do carrasco pelas vítimas” – escreveu Camus oportunamente citado por Marcello Duarte Mathias no texto sobre Arthur Koestler que escreveu para este número da ATLÂNTICO. Mais perversamente ainda as vítimas não se limitaram a glorificar os carrascos. Como quem pratica um exorcismo difamaram aqueles que, como Koestler, denunciaram as atrocidades praticadas pelo comunismo. E também sobre este exercício não raras vezes de aniquiliação moral se estendeu um piedoso manto.

Nada disto choca nem espanta. Contudo existem circunstâncias, como as reacções à devastação causada pelo Katrina nos EUA, que nos mostram como os velhos chavões, os ódios de sempre, os adjectivos prontos a sacar... estão lá todos, nos mesmos sítios, esperando apenas um pretexto para de novo regressarem. Como bem frisa Henrique Raposo num artigo que significativamente intitulou “A Impunidade Angélica do Marxismo e a Realidade Paralela Vivida na Europa”: “No passado, o marxismo estava identificado com Estados. Hoje, sem esses Estados, o marxismo espalhou-se, perdeu o rosto visível. O marxismo já não é política. É cultura. É hábito. Falhou o ataque frontal, mas começou a flanquear-nos pelos poros da cultura e dos automatismos emocionais que dominam os media.”. Ou seja, a queda do Muro não só libertou a esquerda dum embaraço, como permitiu que novas solidariedades nascessem nessa mesma esquerda.

Sem a sombra de Moscovo a esquerda pode finalmente unir-se e sobretudo deixar de combater entre si. Unir-se em torno do que não quer – globalização, liberalismo, aliança com os EUA. Tem divergências. Não tem clivagens. Na Alemanha, Oskar Lafontaine, antigo ministro das Finanças de Gerhard Schröder, coligou-se com Gregor Gysi, um antigo comunista, fundou um novo partido de esquerda (ou extrema-esquerda) com um programa que se declina entre o nacionalismo e o proteccionismo económico. Nas recentes eleições a coligação Lafontaine/Gysi obteve mais de oito por cento dos votos.

Em Espanha, o PSOE alia-se, nos governos das autonomias, a movimentos de extrema-esquerda que noutros tempos defendiam a “ditadura do proletariado” e que agora livres dessa tralha histórica adquirem um look fashion e um colorido mediático mas continuam intolerantes e fanáticos como sempre foram.

Mário Soares, fazendo jus ao seu instinto político, percebeu esta mudança há muito tempo. Desfilou ao lado de Louçã contra o outrora amigo americano. Olhou para Carvalho da Silva e achou que ele podia repetir o então milagre de Lula em Portugal. Tirou o socialismo da gaveta. E, na campanha presidencial, não tardará a agitar o espantalho do fascismo.

Provavelmente tal não chegará para fazer dele o próximo Presidente da República. Mas há de chegar para, em Portugal, reacertar as fronteiras duma esquerda desembaraçada do passado."

in Atlântico

segunda-feira, outubro 03, 2005

"Descriminações"

"Durante anos as questões da segurança foram acantonadas na área da direita, quando não mesmo do fascismo. Estava instituído que políticas de solidariedade, acção social e redistribuição de riqueza acabariam com esse problema. Mas, como a realidade é um pouco mais complexa que a bondade das soluções, não só não se resolveu o problema da insegurança como ainda se acabou a menosprezar as vítimas. Não deixa de ser tragicamente irónico que a morte dum colaborador duma companhia de teatro tida como alternativa tenha suscitado uma reacção próxima de histeria, com episódios quase de lenda urbana" por Helena Matos.

"Ele seguia à minha frente. Era novo. Às vezes olhava nervosamente para os lados. É certo que a rua de Lisboa em que nos deslocávamos tem um ar degradado mas o meu companheiro ocasional de passeio era bastante mais jovem do que a maior parte dos transeuntes com os quais nos cruzávamos. Logo o seu ar de quem avaliava o terreno era no mínimo deslocado: se alguém naquela rua tinha força e pernas para assaltar quem quer que fosse, era ele.

Mas eis que, abruptamente, ele atravessou a rua em direcção a um casal idoso. No primeiro momento pensei que os fosse assaltar. Mas não. Educadamente, perguntou-lhes se eram de Lisboa. Não sei o que lhe responderam mas percebi que, quase com tiques de clandestinidade, lhes depositou nas mãos uma folha de papel. E como quem ensaia um peculiar bailado, era vê-lo atravessar a rua ora num sentido ora noutro, abordando taxistas, pessoas com bengalas, senhoras idosas... para, depois de lhes perguntar se eram de Lisboa, lhes deixar nas mãos os tais papéis.

Note-se que as pessoas não deitavam para o chão esses papéis, antes pelo contrário, olhavam-nos e dobravam-nos até com algum cuidado. Esses papéis não eram uns papéis quaisquer iguais a tantos outros distribuídos neste período de campanha autárquica. Esses papéis incitavam ao ódio racial e responsabilizavam os estrangeiros pelo clima de insegurança que aquelas pessoas, pela sua profissão, idade ou condição física, experimentam quando atravessam aquela rua.

Um toque de telemóvel e a busca desesperada do mesmo nas profundezas da mala fez-me perder de vista aquela espécie de semeador de ódios mas imagino-o atravessando Lisboa numa espécie de safra infindável. Quanto tempo demorarão a germinar estas sementes de ódio? Creio que não muito. Para o perceber basta ver o que se escreveu ontem na caixa de comentários da edição on-line do Expresso, mais precisamente nos comentários à notícia que dava conta da identificação, pela Polícia Judiciária, da identidade e nacionalidade do assassino de Miguel Pereira, o colaborador do teatro A Comuna morto na Praça de Espanha.

Transcrevo apenas dois desses comentários porque me parecem suficientemente expressivos e note-se que escolhi entre os menos ofensivos. Um deles pergunta: "Porque não fazem um referendo sobre a imigração??? Simples, porque já sabem o resultado e aos políticos e grandes capitalistas interessa-lhes tudo menos isso... lá se ia a mão-de-obra barata!!!" Outro conclui: "Isto é no que dá isto ser uma República dos Bananas... É que a nossa escumalha, temos que a gramar, mas ter que gramar a dos outros???"

Note-se que esta prosa e outras de teor muito mais grave se encontram numa caixa de comentários do Expresso e não do jornal o Crime. O verniz, seja ele social ou político, estala muito facilmente nesta matéria. Tradicionalmente é de esquerda a zona de Lisboa onde foram não só distribuídos mas cuidadosamente guardados os tais folhetos xenófobos. Mas a verdade é que, tal como entre os leitores das classes A e B do Expresso, também nas velhas zonas operárias de Lisboa a segurança - ou a falta dela - torna as pessoas disponíveis para discursos radicais. Ou melhor, essa disponibilidade é estimulada pela ausência dum discurso dos partidos democráticos sobre este assunto.

Durante anos as questões da segurança foram acantonadas na área da direita, quando não mesmo do fascismo. Estava instituído que políticas de solidariedade, acção social e redistribuição de riqueza acabariam com esse problema. Mas, como a realidade é um pouco mais complexa que a bondade das soluções, não só não se resolveu o problema da insegurança como ainda se acabou a menosprezar as vítimas. Não deixa de ser tragicamente irónico que a morte dum colaborador duma companhia de teatro tida como alternativa tenha suscitado uma reacção próxima de histeria, com episódios quase de lenda urbana. Quantos taxistas já foram assassinados este ano? A reacção a esta morte não só seria diferente caso a vítima fosse taxista e não colaborador do teatro A Comuna, como também seria diferente caso o técnico de luz tivesse sido esfaqueado não à saída do teatro A Comuna com o qual colaborava, mas sim junto do Casino do Estoril onde trabalhava.

Tal como, no passado, as vítimas de violência sexual tinham de provar que não tinham provocado a agressão, actualmente as vítimas da insegurança têm de provar que nada nelas, nem na sua condição social ou profissional justifica a agressão que sofreram. E aí de facto as pessoas do mundo das artes aparecem revestidas duma bondade natural que nenhum taxista pode almejar. Desta mesma discriminação dava conta recentemente, numa entrevista à SIC, Luís Santos, o co-piloto da Air Luxor detido na Venezuela por suspeita de tráfico de cocaína, quando comparou a reacção do Governo português perante o seu caso e o do actor e realizador Ivo Ferreira.

Entre esqueletos no armário e preconceitos, os partidos democráticos vão deixando o campo aberto aos folhetos e à mensagem que gente como aquele rapaz lhes passa. Como uma senha. De mão em mão."

in Público 01-10-2005
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