A cama de ferro de Procustes
Artigo de Pedro Lomba, Público 10-07-2012
Tribunal ex machina"Há um mito grego que é pertinente lembrar a propósito da decisão do Tribunal Constitucional que declarou inconstitucional o corte dos subsídios do funcionalismo público: a cama de Procustes. A cama de ferro de Procustes onde este investigava a desigualdade entre os cidadãos de Atenas. Os mais altos eram decepados e os mais baixos esticados, pelo que o investigador podia no fim dirigir-se ao Areópago e afirmar que os atenienses são iguais.Certamente não eram iguais. Mas não era esse o problema. O que estava errado na experiência de Procustes era o instrumento de medição, em absoluto inapropriado para comparar as diferenças. E, sendo mesmo inapropriado, restava a Procustes igualizar à força e arbitrariamente as suas vítimas. O que fizeram os nossos juízes constitucionais com a decisão sobre os cortes foi precisamente o mesmo. Mais do que comparar duas realidades que não são comparáveis, a maioria de juízes achou que podia mensurar o incomensurável.Há uma parte no acórdão facilmente acessível a um leigo. É quando o Tribunal, admitindo que quem recebe por dinheiros públicos não pode ser colocado em pé de igualdade com os privados, rejeita comparar os trabalhadores do Estado e os trabalhadores privados pelo facto de o nível de remunerações ser em regra mais elevado para os primeiros ou de o seu vínculo laboral estar mais protegido. Não que as duas situações não sejam, de facto, bem distintas e não apontem, em geral, para um estado de coisas repetidamente mais favorável aos trabalhadores públicos. Mas porque o Tribunal sabe que, para comparar uns e outros, por função, categoria ou remuneração, precisaria de métodos mais sofisticados e conclusivos do que a cama de Procustes. E o Constitucional ainda não é a McKinsey, nem um grupo de estudos. Esta mesma prudência acerca dos seus próprios limites, que na prática deveria justificar alguma contenção e humildade, não a tem depois o Tribunal quando, alegando o princípio da igualdade, conclui que o corte dos subsídios é "evidentemente excessivo" para os funcionários públicos em comparação com os privados. Um corte de 14,3% é um sacrifício excessivo? "Evidentemente"? Até existem, acrescentam os nossos estimados juízes, medidas alternativas também eficazes para a diminuição do défice, quer pelo lado da receita, quer pelo lado da despesa. A propósito, quais são essas medidas? Mas esperem: será que os nossos opinativos juízes descobriram onde é que devemos cortar e mesmo assim não nos dizem?O facto é que Portugal atravessa uma situação de emergência económica. Está fora dos mercados de dívida, precisa de garantir o seu funcionamento reduzindo drasticamente a sua despesa pública, o que inclui cortes nos salários e pensões. O expectável aqui era que o nosso Tribunal Constitucional dissesse que não tem institucionalmente forma de conhecer, quanto mais comparar, os sacrifícios impostos aos trabalhadores públicos face aos privados, a começar porque não passa, isso mesmo, de um tribunal. Que sejam o Governo e as oposições a bater-se no terreno político sobre a legitimidade desses cortes. Em vez disso, temos agora um tribunal ex machina que não se limitou apenas a garantir o que não conhece nem pode conhecer: as medidas políticas alternativas aos cortes. Se tivesse que decidir sobre outras situações em que a medida do sacrifício redundasse em benefício dos privados, nunca teria mostrado este atrevimento. Assim os juízes envolveram-se e acicataram uma luta ideológica que actualmente existe na sociedade portuguesa. E, como Procustes, acabarão eles próprios por ser condenados."
1 Comentários:
O mais admirável comentário que vi, relativamente ao "estranho ?" convite do Constitucional para que sejam retirados também os subsídios aos privados (convite inútil, pois essa foi sempre a intenção governamental, provavelmente com apoios superiores).
Resta aguardar eventual reacção associada ao mito de Sinis, porventura filho do criminoso Procustes...
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