terça-feira, agosto 31, 2010
Das causas
Este post é um portento explanatório dos motivos que levam certa gente a manifestar-se em torno de uma determinada causa. O que conta não é tanto a causa, mas tudo o resto: quem esteve (confirmando afinidades), quem não esteve (recalcando ideias feitas ou ódios cultivados), quem ligou a quem e, finalmente, de que forma o festim encheu as medidas iluministas dos que colectivamente se masturbaram em nome do soberbo humanismo que os habita e da deslumbrante sensibilidade que os ilumina (ao contrário dos ignorantes ou dos vorazes e sombrios tubarões do mar humano). “Fulano esteve, beltrano não esteve; sicrano do partido x esteve, representante da igreja y não esteve”. Um nojo.
O problema não está na liberdade de expressão (que é também, já agora, a liberdade de não expressão, sem que isso indicie amoralismo): está na inconsciente ou deliberada tentativa de forjar fronteiras intelectuais e políticas recorrendo a uma espécie de moralismo identitário contra os que, certamente por cobardia, vício ou hipocrisia, não estiveram presentes. Esta forma de relato social tablóide (só faltaram mesmo as fotos de grupo), não reflecte apenas vacuidade e enfatuação. Revela desrespeito por uma senhora chamada Sakineh. Precisamente porque a causa de Sakineh passa ao lado do banzé da Sra. Dona Fernanda e dos amigos da Sra. Dona Fernanda, que mais uma vez parecem ter celebrado o quão cool e amiguinhos dos desfavorecidos são, algures no Chiado. É que, por vezes, o que parece é.
O problema não está na liberdade de expressão (que é também, já agora, a liberdade de não expressão, sem que isso indicie amoralismo): está na inconsciente ou deliberada tentativa de forjar fronteiras intelectuais e políticas recorrendo a uma espécie de moralismo identitário contra os que, certamente por cobardia, vício ou hipocrisia, não estiveram presentes. Esta forma de relato social tablóide (só faltaram mesmo as fotos de grupo), não reflecte apenas vacuidade e enfatuação. Revela desrespeito por uma senhora chamada Sakineh. Precisamente porque a causa de Sakineh passa ao lado do banzé da Sra. Dona Fernanda e dos amigos da Sra. Dona Fernanda, que mais uma vez parecem ter celebrado o quão cool e amiguinhos dos desfavorecidos são, algures no Chiado. É que, por vezes, o que parece é.
segunda-feira, agosto 30, 2010
Ah, é verdade...
... entretanto deixei de ler aquele semanário pardacento que resolveu adoptar, todo moderninho e lusófono, essa monstruosidade a que comummente dão o nome de «acordo ortográfico». O médico recomendou-me distância de atos que conduzem a fatos.
sábado, agosto 28, 2010
Boarding Ana
O programa (Boarding Pass) é anunciado como “magazine semanal, dedicado a viagens”, conduzido por Ana Rita Clara. Lê-se, ainda, no site da SIC, que a Ana “ vai mostrar um roteiro alternativo aos que habitualmente são feitos, para que estes possa desfrutar de uma viagem de sonho” (sic). O português é uma desgraça, mas para quem viu uma única vez o programa, rapidamente percebe que, mais importante do que corrigir erros de concordância, é acrescentar algo à redacção que esclareça o incauto telespectador sobre o que o espera. Proposta alternativa e, esta sim, séria:
"Boarding Pass" é um magazine semanal, dedicado às viagens da Ana Rita Clara.
Conta, para já, com seis destinos, cada um deles dedicado a umas principais capitais europeias que a Ana e o seu namorado (o cameraman) visitaram.
Durante a emissão, o namorado da Ana fará questão de incluir a Ana em cada fotograma, relegando para segundo plano aquilo que, na realidade, pouco ou nada interessa (as cidades), com isso inscrevendo o seu nome no rol de realizadores que usaram o conceito hitchcockiano de «macguffin» (neste caso, as cidades).
Uma história de amor, portanto.”
sexta-feira, agosto 27, 2010
Duffle coat
Celebra-se este ano o 50.º aniversário de Peeping Tom: o filme proscrito de Powell (e hoje em dia reconhecido como uma obra-prima).
terça-feira, agosto 17, 2010
“Limpem-me as matas, f*****!”
Uma coisa que me suscita sempre um misto de emoção e gozo impudico é a história da «limpeza das matas». Vieram os incêndios? A culpa é (também) das «matas». Há dias, num café nas imediações de Évora (o pormenor das «imediações» é importante), enquanto passavam as notícias sobre «o estado dos incêndios», um frequentador daquela superfície comercial gritou, quase desprendendo o pulmão direito e perturbando seriamente o diafragma até à ingestão do bagaço (que repôs os níveis de testosterona e adrenalina para um patamar capaz de serenar as miudezas), “limpem-me as matas, f*****!” (o Maradona teria escrito «foda-se!», a mim falta-me a coragem).
Parte-se do tocante princípio de que há gente disponível para limpar as «matas» ou da pérfida suposição de que, a haver gente a viver junto às «matas», não está interessada em «limpá-las» (palavra imprópria já que, em linguagem corrente, e por força de usos e costumes, «limpar» passou a sinónimo de «roubar»). A sério?
Não, a sério. O traço mais profundo e indelével do Portugal democrático está relacionado com a alteração de forças dos sectores da economia: o primário foi praticamente pulverizado. O resultado prático desta mudança, está à vista: o abandono dos terrenos agrícolas e a desertificação dos campos, onde se localizam as benditas matas, bosques e florestas, que ardem, no Verão, que nem matas, bosques e florestas.
O problema – sempre um problema – é que não há gente disponível para limpar as matas (e bem pode o Dr. António Serrano exaltar as nacionalizações), porque não há gente interessada na limpeza das matas, porque, pura e simplesmente, há cada vez menos gente a viver do e no campo. Convenhamos que viver do e no campo, dá imenso trabalho. À excepção de uns bravos ou parvos, a quem o inebriante bafo das cidades ainda não tocou, a malta quer condições de trabalho decentes e um clima social que as mime e conforte. No campo, manter o blogue é difícil (a net não chega nas melhores condições), o calor é insuportável, há bichos que picam e plantas que irritam a pele, e desconhece-se o paradeiro dos que estariam interessados em ver o BMW, a malinha Louis Vuitton ou os Tod’s (a única vantagem assenta na total incapacidade da eventual vizinhança em destrinçar o original do contrafeito).
Parte-se do tocante princípio de que há gente disponível para limpar as «matas» ou da pérfida suposição de que, a haver gente a viver junto às «matas», não está interessada em «limpá-las» (palavra imprópria já que, em linguagem corrente, e por força de usos e costumes, «limpar» passou a sinónimo de «roubar»). A sério?
Não, a sério. O traço mais profundo e indelével do Portugal democrático está relacionado com a alteração de forças dos sectores da economia: o primário foi praticamente pulverizado. O resultado prático desta mudança, está à vista: o abandono dos terrenos agrícolas e a desertificação dos campos, onde se localizam as benditas matas, bosques e florestas, que ardem, no Verão, que nem matas, bosques e florestas.
O problema – sempre um problema – é que não há gente disponível para limpar as matas (e bem pode o Dr. António Serrano exaltar as nacionalizações), porque não há gente interessada na limpeza das matas, porque, pura e simplesmente, há cada vez menos gente a viver do e no campo. Convenhamos que viver do e no campo, dá imenso trabalho. À excepção de uns bravos ou parvos, a quem o inebriante bafo das cidades ainda não tocou, a malta quer condições de trabalho decentes e um clima social que as mime e conforte. No campo, manter o blogue é difícil (a net não chega nas melhores condições), o calor é insuportável, há bichos que picam e plantas que irritam a pele, e desconhece-se o paradeiro dos que estariam interessados em ver o BMW, a malinha Louis Vuitton ou os Tod’s (a única vantagem assenta na total incapacidade da eventual vizinhança em destrinçar o original do contrafeito).