O MacGuffin: Actualidades

terça-feira, fevereiro 01, 2005

Actualidades

”A trombeta soará”
por Vasco Pulido Valente
in Expresso, 16-10-1978
”Ultimamente não se fala senão em sebastianismo. Na televisão ou nos jornais, no Parlamento ou nos comícios, de Manuel Alegre e Magalhães Mota, de Hermano Saraiva a obscuros colunistas hebdomadários com bons sentimentos. São deputados e psicólogos, historiadores e «mestres de pensar». O que dizem merece meditação.

Dizem-nos, fundamentalmente, três espécies de coisas. Primeiro, que a visão sebastianista é uma visão irracional: resultado ou manifestação de ansiedade e insegurança, «desejo do pai», personalização «projectiva» (e megalómana) do poder político. Segundo, que a visão sebastianista revela uma abdicação e uma recusa de participar na vida colectiva, que é uma atitude demissionária, um horror escondido a sujar as mãos e a enchê-las de calos em prol da Pátria. Terceiro, que a visão sebastianista é moralmente reprovável, que é má: por ser irracional, claro, e por não ser democrática. Sebastianismo, nesta teoria, equivale praticamente a fascismo: obediência ao chefe, ditadura, anulação do «eu» civil na massa «histérica» dos convertidos. Numa palavra, e para usar a saudosa linguagem do PREC, «sebastianismo fascista».

Não interessa muito expor os motivos imediatos destas contorsões intelectuais, que oscilam entre a detestação e o medo ao Dr. Sá Carneiro e a detestação e o medo ao general Ramalho Eanes. Interessa mais tentar perceber o que é, na verdade, o sebastianismo, para perceber a natureza e o modo de funcionamento do sistema político português.

Com ligeiras qualificações, os anti-sebastianistas que por aí proliferam partem, como se notou, invariavelmente do princípio de que o sebastianismo constitui uma forma irracional e inadequada de considerar a realidade política nacional. Na sua qualidade de pessoas cultas e civilizadas, só podem atribuir semelhantes aberrações à ignorância, a lamentáveis tendências da psique ou, pura e simplesmente, às péssimas intenções de alguns oportunistas sem escrúpulos. Partamos, porém, aqui, do princípio inverso: a saber, o de que o sebastianismo é ainda hoje, para a informação acessível à maioria do público e para as categorias políticas dominantes, uma interpretação da História do País e uma resposta às condições dele perfeitamente racionais e adequadas. Vejamos porquê.

O que é o sebastianismo? Como a maior parte das formas de milenarismo, o sebastianismo consiste, esquematicamente, no seguinte: 1. Na crença de que de um estado de conflito, injustiça, privação e infelicidade se passará, de um momento para o outro e a curto prazo, para um estado de harmonia, justiça, abundância e felicidade – o milénio; 2. Na crença de que essa passagem, anunciada ou não por um profeta, será operada por uma força ou criatura sobrenatural; 3. Na crença de que a maneira mais eficaz de propiciar a transformação reside em manifestar e espalhar a fé nela. Tomemos cada parte por si.

O milénio - Está provado que o milenarismo ocorre sobretudo em poopulações que não acreditam, ou já não acreditam, no melhoramento parcial e progressivo da sua intolerável situação. Não se podendo ter nada, espera-se tudo. Trata-se de uma defesa assaz lógica, em geral e, em particular, nas conhecidas circunstâncias portuguesas.

De resto, desde o 25 de Abril, que esta expectativa foi explorada por todas as formações políticas. Prometeram-nos a «sociedade sem classes» (ver Constituição), o «socialismo do povo e mais nenhum», a cornucópia da «Europa que estava connosco». Sempre o paraíso ficava atrás da porta, se apenas acreditássemos. Acresce que a omnipotência do Estado e os cortes abruptos com o passado (com o fascismo, com o «gaonçalvismo») encorajam e confirmam a ideia de que o «salto» para um mundo novo é simples e fácil. E porque não há-de ele ser um mundo bom da próxima vez? De existirem falsos profetas não se segue necessariamente que não existam profetas verdadeiros. Ninguém nunca negou a impossibilidade da profecia. Ainda pior: que aí nos não anuncia futuros radiosos, da prosperidade democrata-cristã aos anos 80 socialistas?

Em suma, não é racional interpretar a História do País em termos de sucessivos milénios abortados? Não era 1820 uma «Regeneração» com maiúscula, como a de 1851? E a «Vida Nova» de Oliveira Martins? E os «Endireitas» de Lopo d’Ávila? E a República? E a República Nova de Sidónio? E o Estado Novo? E a «Reconstrução» e «Reestruturação» do 25 de Abril? E não cantámos nós, em ocasiões solenes, «Levantai hoje de novo o esplendor de Portugal…»?

Por outro lado, o que nos resta senão o milénio? Que reformas nos trouxeram vantagens duradouras? Que avanços sólidos, embora pequenos, fizemos que nos indiquem um caminho e sustentem uma esperança? Porque é, então, inadequado esperar pela absoluta salvação e o absoluto salvador?

O salvador - No caso do sebastianismo, o salvador, o introdutor do milénio, depositário da verdade e do poder, é um homem e um homem encoberto, que se descobre apenas no acto redentor. Para não rebuscar muito pense-se só: quem conhecia Salazar em 1926? e Otelo antes de 1974? ou Cunhal? ou Soares? quem conhecia o companheiro Vasco antes do chamado «golpe Palma Carlos»? e Eanes antes do 25 de Novembro? Não são eles uma respeitável colecção de «encobertos»? Que há de irracional e de inadequado em contar com mais outro? Quem, excepto meia dúzia de privilegiados, conhece a lógica profunda e secreta que os catapultou para a cena política? Para milhões e milhões de portugueses, eles vieram, como D. Sebastião, numa manhã de nevoeiro.

A fé - Sustentam os anti-sebastianistas que o sebastianismo leva a esperar passivamente uma salvação que não depende de nós próprios, mas da intervenção alheia. O que não é exacto. A visão sebastianista não provoca uma acção política em sentido estrito. O que, em Portugal, seria – isso, sim - irracional e inadequado. Onde agiríamos nós? Nos municípios falidos, desorganizados e impotentes? Nos partidos centralizados e caciqueiros? Nos sindicatos controlados pelo Dr. Cunhal? Paz, portanto. A visão sebastianista exige uma outra acção, lógica e apropriada às condições do País: a manifestação de fé. Fé no milénio e no homem providencial. Sem ela não há um nem outro. Com ela, com a exibição dela, talvez que alguém se candidate com êxito a D. Sebastião.

Não, não é o sebastianismo que é absurdo e mau. O sebastianismo, se assim se pode dizer, está «certo». O que está errado, e profundamente errado, é Portugal. E se não começamos a emendá-lo, a trombeta do juízo final tornará a soar. Ninguém alimente ilusões.”

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