O MacGuffin

quinta-feira, abril 24, 2003

O CONSERVADOR E A CARICATURA

A palavra a Alexandre, O Grande (O’Neill):

O adjectivo? Que horror
quanto não é incisivo,
quando atira para o vago
o pobre substantivo

A esquerda bloguista comete sempre dois pecados venais quando resolve dissertar sobre campos políticos estranhos ao seu: 1) confundir o substantivo com o adjectivo, tratando de desenquadrar semanticamente termos como “conservador” e “tradição”; 2) misturar o campo da política com todos os outros (previsível para quem pensa que tudo é política). Daí que, invariavelmente, a coisa lhe saia mal. O alvo é o porta-aviões mas o tiro quase sempre mergulha fundo nas águas da inconsciência política.

Para a maioria da esquerda indígena (sinal claro da ignorância em termos de ideário político e de um endémico atraso cultural) o “conservador” é mais ou menos uma figura sinistra, autoritário nos modos (de vara ou chicote na mão), amigo de fados e guitarradas, marialva e saudosista, que usa e abusa das patilhas, da bota cardada e das touradas, e que entoa recorrentemente o “Ó tempo, volta para trás...”. Um misto de Nuno da Câmara Pereira, João Braga e Basilio Horta, com uma pitada de disciplina marcial e outra de inconsciência «social». Tradição = estagnação = atraso = antiquado = ultrapassado = conservador = reaccionário, etc. etc. etc.

A esquerda vacila e treme, confusa, sempre que um tipo se apresenta como politicamente conservador e, ao mesmo tempo, demonstra gostos vanguardistas ou sofisticados. Não é por acaso que, quando isso acontece, levam sempre o caso para o terreno do «engano» e do «equívoco». Tudo em nome da defesa da ideia feita e do estereótipo. Alguma vez terão lido Oakeshott? Perceberão eles que o conservadorismo político não tem que ver com “reaccionarismo” ou “autoritarismo”? Entenderão, um dia, que o conservadorismo tem que ver, sobretudo, com uma atitude de desassombro, de humildade e de realismo face ao ser humano e ao mundo que nos rodeia?

A filosofia do conservadorismo é selectiva. Podem e devem existir coisas da «tradição», não todas, que vale a pena preservar. Em termos de princípio, e é disso que estamos a tratar, há um atributo na veneração dos conservadores pelo que é antigo e tradicional: a crença de que, por muito obsoleta que uma dada estrutura ou modus vivendi possa ser, pode existir nele uma função progressiva e ainda vital, de que o homem tira proveito psicológica e sociologicamente.

Olhadas uma a uma, nem todas as tradições são boas. Mas muitas delas são «tradição« por algum atributo (e por favor, parem de pensar em viras do Minho, touradas, pratinhos de barro pintados à mão e saloiices avulsas!). Deve haver ali alguma coisa que distingue essa prática das restantes, ao ponto de lhe chamar tradição. O quê? O factor tempo aliado ao «preconceito» (outro termo que ganhou conotação negativa, hoje em dia) no comportamento humano, onde se joga o tipo de conhecimento de que William James e Oakeshott falavam: um «conhecimento de» e não um «conhecimento acerca». O que muitas vezes está por detrás da tradição, e que é querido ao conservador, é um conhecimento adquirido simplesmente através da experiência e da revelação da vida, incapaz de ser transmitido «by the book». É esse aspecto prático, esse sentido de oportunidade, que é próximo do ideário conservador – e que colide com a maneira como o utopista e o reformista exercem uma devoção por regras, princípios e abstracções que levam a uma voragem e a uma vertigem por lidar com as massas, em vez de lidar com o povo tal como ele é: um conjunto heterogéneo de pais, interlocutores, trabalhadores, consumidores, eleitores, com diferentes aspirações, capacidades, motivações e objectivos. Daí que eu ache que o conservador seja absolutamente realista.

O conservador desconfia e recusa do espírito de inovação alicerçado no culto da mudança pela mudança. Ou seja, o conservador recusa-se a dar ênfase a essa necessidade, superficial, de excitação e motivação por meio de incessantes novidades; a fraqueza idiota de pensar que só na «reforma» e na «mudança» o homem se realiza. Da mesma forma que Disraeli declarou guerra aos estadistas que procuraram formar instituições políticas sobre princípios abstractos de ciência teórica, em vez de lhes permitir que brotassem do curso dos acontecimentos, o conservador percebe que o conhecimento e a organização de uma sociedade deve ser fruto de um processo lento e aturado, onde estão envolvidas pessoas, e não teorias ou modelos abstractos. E que esse processo é muitas vezes intergeracional. Uma espécie de contrato de continuidade (daí que lhe doa o coração quando aparece alguém que, de uma assentada e levianamente, extingue o que levou décadas ou séculos a construir), onde não é só o passado que importa, mas sim o presente e o futuro. Volto a Burke: «Society is indeed a contract. It becomes a partnership not only between those who are living, but between those who are living, those who are dead, and those who are to be born». Ora, isto é completamente acessório para o progressista ou para o utopista reformador. Para estes, o importante não é o que está feito, mas sim o que se vai fazer. Contudo, como disse um dia Falkland, «quando não é necessário mudar, é necessário não mudar». É este o contributo do conservador no mundo de hoje: colocar algumas pitadas de bom senso na cabeça de quem tenta mudar o mundo para melhor, chamando a atenção para o facto de já existirem experiências, vivências e resultados no terreno que funcionam e sobre os quais se deve continuar a tirar proveito.

O conservadorismo é, por vezes, contraditório. Incoerente. A questão é, precisamente, esta: o conservadorismo não existe para dar lições, lançar doutrinas, desbravar caminhos com régua e esquadro, sob a batuta da perfeição racionalista. Ponham isso na vossa cabeça!

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