O MacGuffin

sábado, março 22, 2003

O CASO NICARAGUA

O Pedro Mexia, no blog Coluna Infame, referiu, a propósito do isolacionismo/voluntarismo da política externa norte-americana, o caso Nicaragua. Sobre o caso Nicaragua, eu preferiria falar da forma como se constróem visões deturpadas da História. E lembro Chomsky e a forma como este professor do MIT, no papel de «opinion maker», driblou factos e deu a volta à história.

Os Sandinistas, que Chomsky retratou como vitimas inocentes dos ‘contra’ e do terror perpetrado pelos EUA, instauraram um regime totalitário na Nicarágua, de inspiração marxista-leninista, com o apoio massivo dos soviéticos. Após o afastamento do poder da família Somoza, anteriormente senhora absoluta da Nicarágua, foi criada uma Junta de Governo e Reconstrução Nacional (JGRN) que agrupava várias tendências políticas, incluindo os Sandinistas. Essa JGRN previa, e trabalhou, na implementação de um regime democrático, baseada no sufrágio universal e na criação de partidos políticos. Os Sandinistas, a partir de certa altura, adulteraram o espirito dessa junta e tomaram, em exclusivo, o poder da mesma, pretendendo ocupar a totalidade do espaço político e social do país. Trataram de criar tribunais de excepção, para condenar quem contra eles se oponha, saquearam ainda mais terras ao camponeses do que alguma vez os Somozistas o haviam feito, semearam o terror, suprimiram a liberdade de expressão, promoveram execuções sumárias, praticaram, nas cadeias, a famosa «tortura limpa» (utilizada em Cuba e na Alemanha de Leste), dizimaram e expulsaram os índios Miskito, Sumu e Rama, tudo com o apoio total da URSS. Desde a primeira hora ficou claro que os Sandinistas não pretenderam a democracia e o pluralismo: pretenderam seguir o modelo castrista de organização política, social e militar. Em poucos anos, destruíram a economia da Nicarágua e provocaram a revolta dos camponeses – que se organizaram em torno dos ‘contra’. À sua volta, os Sandinistas tiveram ainda tempo para apoiar militarmente as guerrilhas comunistas em El Salvador e na Gautemala. Em 1999, Sergio Ramirez, um dos líderes Sandinistas e vice-presidente do regime, veio a confessar que “a base de suporte dos ‘contra’ foram os agricultores e camponeses – na sua grande maioria sem qualquer ligação ao anterior regime dos Somoza” (sic). Já Alejandro Bendana, um dos diplomatas de topo que dava a cara pelo regime Sandinista, afirmou que “os ‘contra’ cresceram para além das expectativas e a sua principal força adveio do espirito de comunhão que o impacto negativo da política e dos erros dos Sandinistas criaram nas populações rurais”(sic). O apoio dos EUA aos ‘contra’, em plena Guerra Fria, partiu, assim, da constatação de todo este cenário e surgiu com o intuito de ajudar os revoltosos a depor o regime totalitário dos Sandinistas. A base de contestação à ditadura era já notória e o processo irreversível. Quando em 1990 o esforço dos ‘contra’, aliados aos EUA, obrigaram o regime a efectuar eleições livres, a opção foi clara: cerca de 55% dos que votaram, votaram contra os Sandinistas. Noam Chomsky sabia, provavelmente, tudo isto, mas retratou a história doutra forma: os inocentes Sandinistas foram alvo de uma guerra injusta, na qual se usaram mercenários e terroristas, apoiados pelos EUA. E depois, Chomsky deu o toque final com a história do Tribunal Internacional. Segundo Chomsky, os EUA foram condenados pelo Tribunal Internacional e, de seguida, rejeitaram a jurisdição do mesmo, sendo contrários ao direito internacional e ao primado da lei. Também aqui a hipocrisia de Chomsky foi gritante. Chomsky sabia que este tribunal era uma criação de governos de vários países e que, nos seus estatutos, a sua autoridade era limitada, a não ser que as partes em disputa concordassem em dar-lhe essa autoridade. Mais: os seus estatutos previam expressamente que os estados nele envolvidos se poderiam retirar da sua jurisdição – coisa que a China, a União Soviética e tantos outros fizeram ao longo dos tempos. Na altura em que se julgou o caso Nicarágua, o tribunal não tinha, por decisão desses estados, qualquer jurisdição sobre o bloco soviético. É sabido que a política externa soviética estava então sobre a doutrina de Brezhnev, o qual não se oponha, antes pelo contrário, ao uso da força para manter determinado país sob órbita comunista. O soviéticos expressavam regularmente a sua condenação pelo facto de os EUA defenderem e prevenirem a expansão soviética, nos mais diversos pontos do planeta, com o termo “agressão”. Mas, o que Chomsky também omitiu é que os países que à altura se encontravam deliberadamente fora da sua jurisdição, facultaram juizes para o tribunal – porque tal estava previsto nos estatutos. Foi neste cenário que Jeanne Kirkpatrick, então embaixadora americana nas Nações Unidas, considerou o tribunal como sendo “semi-legal, semi-jurídico e semi-político, o qual as nações às vezes aceitam e outras vezes não” (sic). E foi nesse espirito que os EUA se retiraram da sua jurisdição - representada por muitos defensores de interesses antagónicos e meramente políticos. Deixo aqui a declaração formal de um dos juizes (um japonês): “A Nicarágua não veio a este tribunal com as mãos limpas. Pelo contrário: veio como agressor, indirectamente responsável por um número brutal de mortes e destruição em El Salvador. As mãos da Nicarágua estão por isso manchadas”. Noam Chomsky é, sem margem para dúvidas, um cínico incorrigível.

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