Aposto que foi no Gambrinus
Entrevista de Vasco Pulido Valente ao i
Vais para a Madeira fazer o quê?
Descansar três semanas. Dormir, ler e nadar um bocadinho.
Deitas-te tarde e acordas cedo ou vice-versa?
Não me deito excessivamente tarde, nem acordo excessivamente cedo. Acordo a tempo de ir para a piscina por volta do meio-dia, estou lá até às três da tarde e depois durmo uma sesta. O hotel tem uma varanda muito bonita e gosto de ler na varanda enquanto bebo um copo. Tudo isto tudo com a Constança [Cunha e Sá], claro. Às vezes ela aparece logo, outras não aparece...
Quando ela desaparece, normalmente desaparece para onde?
Ela normalmente fica mais tempo na piscina e nada no mar, que é uma coisa que eu ainda não fiz, acho que na minha idade já é um bocado problemático.
Adriano, nas suas Memórias, diz que os 60 anos são "a idade em que a vida se torna, para cada homem, uma derrota aceite". Achas que isso é mesmo assim?
Eu não olhei exactamente aos 60 anos, foi um bocadinho mais tarde. Tive um problema de saúde, fiz uma série de operações e aí coloquei a questão.
E mudaste alguma coisa?
Estou um bocado mais desinteressado, um bocado mais prudente, mas também mais afastado das outras pessoas.
Mais isolado?
Não, "isolado" tem sempre o ar de ser imposto. Vivo um bocadinho mais para mim.
Isso é um exercício de egoísmo ou de introspecção e interioridade?
Eu não classifico as coisas assim: se são um exercício ou não. É mais aquilo para que tendo agora. Leio mais do que lia...
Para quem gosta de ler, isso é um privilégio.
É um privilégio, mas também é uma tendência natural. Entretenho-me mais sozinho, dou-me com menos pessoas.
Ficaste ainda mais selectivo?
Por um lado, alguns dos meus amigos morreram, o João Paulo Amorim, o João Bénard da Costa; por outro lado, a maior parte dos meus amigos tem a minha idade e a partir de uma certa altura, quanto mais a pessoa envelhece, mais a vida se complica. A disponibilidade física é menor, já não se fazem grandes noitadas...
Faz-te muita falta o João Paulo Amorim?
[silêncio] Faz-me muita falta. O João Paulo foi uma espécie de porto de abrigo nos últimos 30 anos da minha vida. Quando tinha grandes problemas na vida, ou grandes depressões, quando as coisas me corriam mal, ia passar uns dias ao Algarve com ele.
E o João Bénard da Costa, faz-te falta?
Muita, claro. Era um homem maravilhoso. Conhecia-o há 50 anos e era para mim, um "metro", uma referência, uma medida.
Uma medida de quê, de grandeza na vida?
Para mim era uma medida intelectual, uma medida emocional.
Sendo ele desmedido, era uma medida muito grande.
A opinião dele era uma medida. A opinião dele sobre mim. Não sei se tinha um coração desmedido, mas sei que tinha um grande talento para a amizade. Há pessoas que não têm talento para a amizade, mas ele tinha. Nunca me zanguei com o João.
Nunca na vida?
Nunca. De todos os meus amigos, foi a única pessoa com quem nunca me zanguei, não estivemos zangados nem um minuto.
De quem é o mérito?
Dele, com certeza. Já me zanguei com praticamente todos os outros.
Isso, na tua memória, dá um acrescento de ternura à pessoa dele?
Não sei se dá um acrescento de ternura. Tu pões as coisas de uma maneira que eu nunca poria...[sorriso]. Faz-me falta aquele entendimento que eu tinha com ele, que era muito íntimo e, ao mesmo tempo, muito tranquilo e muito seguro.
Voltando às férias na Madeira com a Constança: nada vos distrai ali, presumo.
Fazemos exactamente o que queremos, não há distracções, não há aquela coisa das férias em que se vai jantar aqui, almoçar ali; em que se vai para a praia ou se vem da praia.
O amor assim vivido nessa rotina, em que parece que nada se passa, mas tudo se passa, assenta-vos bem?
[sorriso] Sou casado com a Constança e é evidente que é amor, mas não estou habituado a que me perguntem essas coisas. Ela gosta muito daquilo, eu também, de maneira que corre sempre bem e depois, como não temos fricções externas, ainda corre melhor. Não há aqueles atritos que existem sempre nessas grandes viagens, como saber onde param as malas, se está a chover e não podemos ir à rua, se ela prefere isto e eu aquilo...
Chateia-te a idade que tens?
Por um lado dá-me uma grande tranquilidade, porque não gosto muito deste mundo e suponho que isso sucede a todos os velhos, não gosto muito deste mundo normativo em que vivemos. A classe média, principalmente no Ocidente, não é uma coisa pela qual eu tenha grande simpatia. Estas preocupações com o corpo e todas as proibições que vêm associadas, como não fumar, são para mim uma espécie de ditadura do politicamente correcto. A esquerda fala muito do pensamento único, mas há outra espécie de pensamento único que é o politicamente correcto: a pessoa não pode ser machista, não pode ser racista, não pode ser xenófoba...
Não ser xenófobo é mais do que ser politicamente correcto.
Sim, e detesto as pessoas que são. Isto é difícil de explicar mas execro a xenofobia, execro os xenófobos, acho os preconceitos sexuais a coisa mais repugnante do mundo, mas não gosto que isso me seja imposto.
Ou seja, também execras o moralismo?
Não gosto desta imposição de uma ideologia. Por duas razões: primeiro, porque parece que sou assim não por escolha livre, mas porque a ortodoxia dominante me obriga, e isso é uma coisa muito desagradável. Gosto de me sentir livre nas minhas escolhas, mesmo que elas coincidam com uma ortodoxia qualquer; em segundo lugar, porque desconfio que a maioria das pessoas que diz que tem a mesma opinião que eu sobre esse assunto não a tem na verdade. Tem é medo de dizer as opiniões que de facto tem. Toda a imposição cria uma hipocrisia mais ou menos institucionalizada, e isso irrita-me muito.
Dás-te mal com isso?
Dou-me mal se não percebo quando estão a falar comigo sobre certos assuntos. Ou quando leio ou vejo, na TV, certas opiniões. Nunca sei se aquele fulano pensa mesmo aquilo ou se está ali na linha do "agora pensa-se assim, amanhã pensa-se assado."
És um homem experiente, sabes sempre quando estão ou não a ser verdadeiros contigo.
A partir dos 12 anos percebi que as pessoas mudavam de opinião conforme sopravam os ventos. Acho que vivemos numa sociedade hipócrita, numa sociedade excessivamente arrolada, numa sociedade muito mesquinha. A actividade intelectual não é valorizada.
Para além do que lês nos livros, procuras alguma coisa que te transcenda?
Sim. A arte transcende-me. Hoje em dia, sobretudo a literatura e o cinema. Em parte também a arquitectura e a pintura. Certa história é também arte. Eu preciso de arte para viver.
Para ti há qualquer coisa de sagrado na criação artística?
Não diria sagrado.
Dirias fascínio ou exaltação?
Não sei. Sei que tenho uma necessidade, mas nunca tentei pôr uma etiqueta e, por isso, não sei se será do transcendente, disto ou daquilo. É uma necessidade, ponto.
Tens um grande prazer na arte?
Sim, o grande prazer que tenho na arte, como até certo ponto na filosofia, é estar perante um objecto ou uma criação que jamais imaginaria ou conseguiria fazer. É uma coisa que me excede, e excede as minhas possibilidades de imaginação. Mesmo que passasse mil anos sentado numa cadeira a tentar imaginar aquilo, não conseguia.
Estás a falar de um quadro, de uma pintura?
Estou a falar de um quadro, de um romance, de um filme, de uma cena de um filme, de um diálogo de um romance ou de um pormenor de um quadro. São coisas que estão completamente para lá de mim e do que a minha cabeça podia dar. Quando são bons, como é evidente. Há por aí muitos romances que eu era capaz de escrever se me sentasse aplicadamente a uma mesa.
Tais como?
Muitos. Assim como era capaz de escrever muitos livros de história que por aí se escrevem.
Na literatura, na pintura, na arquitectura, no cinema valorizas as coisas que nunca te passariam pela cabeça, é isso?
Sim, há um campo que eles me revelam, que é real e está para lá de todo o meu horizonte. Repara que o meu horizonte foi crescendo à medida em que fui lendo e o fui alargando.
Isso é estimulante, para ti?
É, acima de tudo, uma coisa reconfortante, porque as pessoas que vivem no limite da sua cabeça são sempre pessoas pequenas, pessoas medíocres. Como dizia o Vítor Cunha Rego, outro dos meus grandes amigos que morreu, é preciso que as pessoas tenham noção da sua posição no mundo.
A arte dá-te essa noção da tua dimensão?
Sim, faz-me sentir mais pequeno, aliás como toda a gente se sente perante o que é exaltante. A arte dá-me a noção dos meus limites - não de todos, certamente - mas diz-me que há mais "coisas entre o céu e a terra do que sonha a minha vã filosofia". Isto é uma citação.
É uma citação de Horácio?
Sim, é. É fundamental para o meu equilíbrio ter sempre próximo alguma coisa que me mostre que sou uma pessoa média, porque senão podia estar convencido de que era uma grande pessoa e não há desastre maior do que esse.
Tu não estás convencido de que és uma grande pessoa?
Não, não estou.
A maneira como escreves e como criticas os outros dá essa margem de erro na leitura da tua pessoa e muitos acreditam que te achas acima da média e da crítica.
Isso é um disparate completo.
Não tens qualquer presunção de superioridade?
Não. Fazem essa leitura só porque não estão a ver o objecto que eu critico.
Tens consciência de que as pessoas admiram a tua escrita, mas podem odiar a tua pessoa?
Sim, está bem, mas eu tenho de manter a consciência do valor disso, que é pequeno. Mas repara que também não me quero diminuir. Como disse no outro dia numa entrevista, eu tenho uma vozita, mas é apenas uma vozita.
Quem é que achas que tem uma voz grande neste país?
Neste momento? Ninguém!
E vozes pequenas, como a tua?
Não quero estar a fazer tabelas, mas acho que neste momento não há uma grande voz portuguesa.
Qual foi a última que houve?
Deixa-me pensar bem? talvez tenha sido o Sena.
Uma voz grande, mas também magoada?
Era, mas não faz dele menor. Não vou agora fazer uma análise do Jorge de Sena, mas se tivesse de escolher alguém, escolhia-o. E antes dele o Henrique Pousão.
Gostas do teu nome?
Não gosto nada. Detesto o nome Vasco, é pretensioso. Quando nasci os meus pais eram comunistas. Quiseram dar aos filhos nomes populares e acharam, erradamente, que Vasco era um nome popular. Joaquim sim, seria um nome popular.
De que nomes gostas?
Gosto de nomes simples e, particularmente, de nomes bíblicos.
Como é que gostavas de te chamar?
Pedro. É um nome bíblico universal.
Pulido Valente é o nome da tua mãe. O teu pai não levou a mal?
Não me importava nada de ter usado o nome do meu pai se ele me tivesse posto um nome cristão. Pedro Correia Guedes era perfeitamente aceitável. Agora Vasco Correia Guedes, não! Faz uma cacofonia, tem uma data de sibilantes, nem pensar!
Mas, insisto, o teu pai não te levou a mal?
Um bocadinho, sim. Mas depois reconciliou-se porque acabei por explicar-lhe que não podia usar um nome que ofendia o meu ouvido [risos].
Gostas do que fazes às sextas na TVI? Vês--te?
Nunca me vejo em televisão!
Não gostas da tua imagem?
Não gosto da minha imagem de certeza. Seria louco se gostasse.
Mas isso não te impede de te expores na televisão.
Não tenho uma vaidade a esse ponto, mas há outros problemas para além da imagem. Eu não falo bem.
Sabias isso?
Não, não sabia. Fui instruído agora. As pessoas explicaram-me que não falo nada bem.
O que é que as pessoas te dizem?
Que não articulo bem as palavras. Mas também não fui treinado para isso.
És muito crítico e muito duro com os outros. Porque é que estás sempre maldisposto?
Tenho um ar maldisposto? Às vezes estou maldisposto, mas acho que não tenho um ar sempre maldisposto.
A maior parte das pessoas acha que sim, mas pelos vistos tu achas que não?
Eu tenho consciência de que estou em choque com muitos dos costumes portugueses. Por exemplo, o costume de não cumprir as obrigações à risca, os costume de chegar tarde; os costume de se fazerem mal coisas que é suposto fazer bem; o costume de não ser consciencioso; etc., etc. tudo isto vai das universidades à gestão dos bancos.
A complacência portuguesa enerva-te?
Enerva-me profundamente e fiz sempre tudo na minha vida pessoal para não ser complacente. Quando me dizem que é às sete horas, garanto que estou lá às sete horas, até porque a minha cabeça regista 6h45; se me dizem para entregar um artigo dia 30, eu entrego, porque a minha cabeça regista dia 20, e por aí adiante. Eu cumpro as regras e tenho o direito de ficar irritado, mas ninguém em Portugal reage a estas coisas.
Quando criticas o Sócrates, a Ferreira Leite, ou o Portas, por exemplo, é sempre e só porque achas que estão a ser inconsequentes?
Isto é como se eles fossem médicos. Os médicos têm de saber que o fígado está à direita e não está à esquerda, têm de saber exactamente o sítio onde está a vesícula?
Achas que são muitas vezes maus médicos?
Acho que sim, que às vezes são maus políticos.
Em tua opinião quem faz a melhor e a pior política?
Isso é difícil dizer porque depende dos objectivos que cada pessoa tem. Ficando só pelos que aspiram a ter responsabilidades no país, acho que neste momento o nível dos políticos é muito baixo.
Mas tu votas?
Raramente. Esta certeza faz-me não votar. Não voto por falta de confiança.
Tu e o Miguel Sousa Tavares chegaram a fazer as pazes?
Fizemos as pazes, aquilo foi um absurdo. Toda aquela história foi desde o princípio absurda. Foi uma série de mal entendidos, eu não queria escrever nada sobre o romance dele, não me tinha passado pela cabeça, e acabei por ser forçado a fazê-lo. E até gostava de dizer isto: é uma coisa de que não me orgulho e gosto que a coisa fique limpa.
1 Comentários:
A citação na verdade é de Shakespeare ("Hamlet"): "there are more things in heaven and earth, Horatio, than are dreamt of in our phflosophy". E quem completou essa célebre frase assim "but there is much, too, in philosophy that is not to be found in heaven or earth"?
Enviar um comentário
Subscrever Enviar feedback [Atom]
<< Página inicial