E agora falando um pouco de coisas mais sérias
Vasco Pulido Valente in Público (22/08/2008)
O ideal olímpico
"No meio da tanta conversa sobre os Jogos de Pequim, quase não se falou dos Jogos de Pequim. Primeiro, da cerimónia inaugural (que vi em repetição), que lembrava irresistivelmente o congresso de Nürnberg de 1934, na versão de Leni Riefenstahl. A coreografia militar daquela massa indistinta e obediente não celebrava qualquer espécie de acontecimento desportivo, celebrava o novo poder da China e prometia o "triunfo" de uma nova "vontade". Sempre foi assim? Não exactamente. Apesar de tudo, nunca a América se atreveu a ir tão longe. Nem o Ocidente democrático era susceptível de engolir sem protesto aquele espectáculo. A conversa, evidentemente, mudou (como não mudaria?), mas não mudou a ameaça implícita da ordem, do número e da superioridade rácica.
Também não se disse uma palavra sobre o aberração em que pouco a pouco se tornaram os Jogos. O interminável aumento das "modalidades" levou a extremos de ridículo e desequilíbrio. A maior parte das provas "clássicas" só tem uma justificação "arqueológica" (e mesmo essa ténue: quem se interessa hoje pelo lançamento do dardo, do peso ou do martelo?). Outras disciplinas (a natação, a ginástica e o mergulho, por exemplo) são tão minuciosamente divididas, que um único atleta, como Phelps, consegue apanhar oito medalhas. Pior ainda: alguns "desportos" mais recentes (o triatlo, para começar) não fazem o mais vago sentido, excepto provavelmente comercial. E, como se isto não chegasse, o golfe (com dezenas de milhões de praticantes no mundo inteiro) não aparece e o futebol é um campeonato fictício entre equipas de terceira ordem.
Falta acrescentar o mais desagradável: os Jogos não aperfeiçoam o corpo, nem o espírito. O corpo é sistematicamente deformado a benefício dos resultados. Há "modalidades" que produzem monstros: montes de músculo ou de gordura, ou de músculo e gordura; esqueletos a que se pendurou um torso e umas pernas; máquinas concebidas para meia dúzia de gestos, sem beleza e sem uso. De resto, quanto ao espírito, e já para não mencionar as pré-adolescentes da ginástica (um verdadeiro abuso de menores), basta lembrar aquele nadador que ganhou, aos 21, uma medalha para que se tinha preparado 15 anos. Não se imagina nada de mais triste. O "ideal" olímpico acabou num horror sem alívio.
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